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Colunas

Por que somos a favor do cancelamento do ano letivo de 2020?

Agência Brasil

Tubarões da Educação

A coluna publica textos sobre a atuação da classe dominante na educação, tendo por referência os estudos marxistas e gramscianos produzidos no Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação (LIEPE), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenação do professor Rodrigo Lamosa.

AMANDA RODRIGUES, Professora das redes municipais de Nova Iguaçu e Itaboraí. Pesquisadora do Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação (LIEPE) e mestranda em Educação pelo PPGEduc/UFRRJ.

Em meados de março, quando a Organização Mundial da Saúde declarou a expansão da COVID-19 uma pandemia, foi imposta à maior parte do mundo a estratégia de isolamento social como a principal medida capaz de frear a expansão acelerada do novo coronavírus, partícula viral recém descoberta em solo chinês. Se na maior parte do mundo, cedo ou tarde, as políticas oficiais dos governos acabaram por fechar o comércio e as escolas por semanas, até que os números de infectados e mortos caíssem, no Brasil, a prática negacionista do governo Bolsonaro, desde os primeiros dias, entrou em conflito com as políticas locais de prefeitos e governadores (estes ansiosos por evitar que as mortes iminentes caíssem sobre suas costas em ano de eleição) e acabou por provocar na população a sensação de exagero quanto à gravidade da doença e diminuiu semana após semana a adesão voluntária às políticas oficiais de isolamento social.

Inicialmente, a necessária política de fechamento das escolas foi sustentada pelos governos locais à despeito da completa falta de centralização para medidas no campo da Educação pelo MEC. Esse vácuo de políticas oficiais foi preenchido pelas orientações mais gerais da articulação global pela educação composta principalmente pelo Banco Mundial, pela UNESCO, OCDE e outros aparelhos de hegemonia da classe dominante. Em março, logo no início da pandemia, o Banco Mundial lança o documento intitulado “Políticas educacionais na pandemia da COVID-19: o que o Brasil pode aprender com o resto do mundo?”  que delineia o escopo de argumentos da burguesia do capitalismo central para o fechamento das escolas mundo afora como uma importante estratégia para refrear a expansão da pandemia. Em consequência, foi defendida a implementação do que chamaram ensino remoto que, na realidade, tratou-se da expansão do mercado de tecnologias educacionais vendidas como a panaceia para a mitigação dos problemas de aprendizagem causados pelo fechamento das escolas. 

No Brasil, essas diretrizes foram traduzidas pela frente empresarial Todos Pela Educação que é dirigida por grandes Fundações e Institutos da grande burguesia, como a Fundação Lemman, Itaú Social, Fundação Bradesco, Instituto Natura, dentre muitas outras (Para melhor conhecer os mantenedores e apoiadores do Movimento Todos Pela Educação, consultar o sítio. Essa Frente, em associação com o Conselho Nacional de Educação, reverberou as diretrizes burguesas para a expansão do ensino remoto no Brasil, expressos em dois objetivos principais: 1) manter as matrículas ativas e pagamento das mensalidades das escolas privadas; 2) pavimentar o caminho para a expansão do uso das ferramentas digitais das grandes empresas Big Data, como a Microsoft, Facebook, Google, dentre outras, nas escolas privadas, mas sobretudo nas públicas (um mercado completamente novo a ser explorado). Não restam dúvidas: os interesses privados se sobrepuseram ao público durante todo esse processo e se não atentarmos os próximos passos, chocaremos o ovo da serpente.

Assim, os Pareceres do Conselho Nacional de Educação formalizaram a medida exata dos encaminhamentos do TPE: em princípio, a reorganização do calendário letivo contando com a obrigatoriedade das 800 horas de efetivo trabalho letivo (Parecer CNE/CP 5/2020 atualizado pelo parecer CNE/CP 9/2020). – no primeiro movimento – e a resolução mais recente que prepara as escolas para implementação dos protocolos de retorno às atividades presenciais (Parecer CNE/CP 11/2020). Esse último parecer aduba o solo da opinião pública para a construção do consenso sobre a necessidade do retorno às atividades presenciais, certamente porque a escola segue sendo requisitada a cumprir a tarefa de “depositar” as crianças e jovens e a liberar os pais e responsáveis para o retorno às atividades produtivas. Segundo o Censo Escolar de 2019, no Brasil são 47,9 milhões de crianças e jovens na Educação Básica (INEP. Censo da Educação Básica: Resumo Técnico. Brasília, 2020). Dessas, mais de 32,5 milhões estão matriculadas nas escolas públicas (municipais, estaduais e federais) (Ibid). A pensar no contingente de adultos em condições de trabalho que estão fora do mercado para manterem os cuidados básicos dessa enorme quantidade de crianças e jovens – oriundas majoritariamente da classe trabalhadora -, podemos compreender a ansiedade pelo retorno presencial colocada hoje pela grande burguesia.

Em nota lançada no dia 18 de setembro “Reabertura das escolas: governos devem se planejar para retorno assim que a pandemia for controlada, o TPE se posiciona de maneira assertiva pelo retorno às atividades presenciais, dando a nova linha do debate público a ser colocado pela grande mídia, sua porta-voz. Ele inicia o debate defendendo que “Recuperar o atraso na aprendizagem é possível com as ferramentas pedagógicas certas, mas quanto maior o tempo até a retomada da rotina escolar, mais desafiador será o preenchimento das lacunas, especialmente para os mais pobres”. E prosseguem: “Portanto, a decisão de adiar a discussão sobre a reabertura das escolas para 2021 gera riscos enormes de enfraquecer o senso de urgência quanto ao planejamento e execução de providências necessárias para a eventual reabertura”.

Nesse sentido, podemos perceber que para a grande burguesia, o retorno deve ser o mais breve possível e contar com toda sorte de recursos tecnológicos de apoio para a correção do “atraso de aprendizagem”. Por certo, é mais uma vez do fundo público de onde vai minar a fonte de recursos para uma adequação sanitária inócua. O omisso Ministério da Educação acaba de lançar um documento estabelecendo protocolos de retorno seguro (sic) (MEC. Guia de implementação de protocolos de retorno das atividades presenciais nas escolas de educação básica) e promete destinar 525 milhões de reais para adequação das escolas via PDDE para a realização desse impossível retorno seguro. A volta às escolas também demandará dos gestores públicos traçar estratégias para estruturação de avaliações diagnósticas e plataformas de complementação remota das 800 horas de carga horária obrigatória, todas elas realizadas majoritariamente por agentes privados, revelando mais um canal de escoamento do fundo público.

Ainda que massacrados pela grande mídia com argumentos de toda sorte, mães, pais, responsáveis, educadores e os próprios estudantes– em suma, a comunidade escolar – ainda são massivamente contrários ao retorno presencial. As diretrizes de greve pela vida tirada pelos sindicatos se mostram estratégias acertadas para aumentar a pressão sobre o poder público e impedir o retorno. Ainda assim, vimos sofrendo derrotas sistemáticas, com a volta às aulas nas redes privadas e o retorno das séries finais do Ensino Médio da Rede Estadual do Rio de Janeiro a partir do dia 19 de outubro. 

Nesse sentido, esse debate ganha novos contornos. Ainda que seja consenso entre os trabalhadores da educação que o retorno presencial das atividades escolares antes de alcançarmos níveis seguros de controle da pandemia faça parte da política genocida reforçada pela ideologia do “novo normal”, ainda divergimos quanto ao que fazer quando esse retorno efetivamente se der. Basicamente duas posições são colocadas sobre a mesa: 1) A suspensão do calendário letivo; 2) cancelamento do calendário letivo. A primeira proposta se debruça em pensar estratégias para acomodar os dias letivos de 2020 no ano letivo de 2021 (Não é tarefa desse artigo se debruçar sobre as nuances das propostas de suspensão, mas, tão somente traçar em que linhas o debate se estrutura). E a segunda, em assumirmos que o ano letivo de 2020 não existiu do ponto de vista pedagógico e propormos um recomeço para os nossos estudantes quando de fato for seguro retornar.

Nessa análise, partimos demarcando uma importante diferença entre o que entendemos por trabalho remoto e o ensino remoto, léxico que foi importado por nós (muitas vezes de maneira acrítica) nessa pandemia diretamente dos grandes aparelhos de hegemonia da burguesia. O trabalho remoto, para a nossa categoria, se configurou no principal instrumento laboral de garantia da vida e bem estar da comunidade escolar, na medida que possibilitou a manutenção do vínculo dos estudantes com a escola, dirimindo os impactos de uma suspensão de atividades tão extensa. Para a comunidade escolar, a tarefa que nós trabalhadores da educação vimos desenvolvendo de forma remota é fundamental por firmar a garantia de que a luta pela manutenção das escolas fechadas nesse momento é o que de mais importante podemos ensinar sobre respeito à vida em dias de negacionismo e de uma política genocida de (não) combate à expansão do coronavírus.

Por outro lado, o ensino remoto é o verdadeiro Cavalo de Troia capaz de impactar sensivelmente a escola pública e, sobretudo, o trabalho docente. Sem sombra de dúvidas, a pandemia foi um verdadeiro laboratório de experimentação acelerada dessa modalidade de ensino mediada por Tecnologias da Educação e que viu no isolamento social a janela histórica de formação compulsória de milhões de educadores e estudantes a essa nova linguagem. A pandemia não criou a oferta de mercadorias educacionais, mas certamente trouxe a oportunidade de chegar a um consenso em todos os estratos sociais da sua utilidade e importância.

De acordo com a professora Olinda Evangelista e Arthur Souza:

A pandemia vem sendo chamada para justificar mudanças profundas que se pretende impingir à rede pública de ensino, não apenas durante ela mas, especialmente, após. A quarentena tem recebido a designação eufemística de “período de transição” para o modelo de ensino remoto – ou aprendizagem virtual, tecnológica, digital e mesmo educação a distância – que se estabilizaria e manteria como regra na Educação Básica. Não é sem razão que a OCDE (2020) e a UNESCO (2020) sugerem aos países em quarentena que revejam seus marcos legais para que as alterações possam ser “operacionalizadas” já e possibilitem sua permanência em seguida. As suas orientações, somadas às do Banco Mundial, abrangem um amplo conjunto de flexibilizações: dos currículos, da avaliação, dos métodos de ensino, da jornada letiva, das certificações, dos materiais didáticos. De outro lado, defendem a tese da incapacidade dos professores para lidarem com a situação, resultando na proposta de reconversão docente via formação contínua, “ágil e efetiva”, tendo em vista superar a deficiência. A formação de gestores e familiares também está no horizonte, seja porque é preciso uma liderança competente, seja porque os pais teriam necessariamente de se transformar em “auxiliares de ensino”. 

Assim, a ideologia do “novo normal” na escola pública do pós-pandemia se desenha como um futuro que acomoda o trabalho presencial – há de se pensar que para o capital a escola tem como uma das tarefas prioritárias a liberação da força de trabalho para o mercado – e o ensino remoto, no que vem sendo chamado ensino híbrido, garantindo que as centenas de plataformas que vendem “soluções educacionais” sigam lucrando a partir da venda no varejo – para a capacitação das famílias ao ensino remoto – quanto no atacado – a partir dos contratos com as secretarias de educação municipais e estaduais.

Nesse aspecto, não restam dúvidas de que a principal tarefa dos trabalhadores da educação hoje é o combate feroz ao ensino remoto que só pode ser garantido quando deixamos de assumir qualquer compromisso com a reposição do calendário letivo de 2020 que, factualmente, não existiu para a maioria expressiva dos estudantes brasileiros. É certo que essa proposta soa radical à primeira vista, mas ela é a que propõe à categoria o debate mais qualificado quanto aos fins da escola pública, trabalho docente, direito de aprendizagem. A tentativa de dar conta de dois calendários letivos em um significa sobrecarga de trabalho docente, complementação pedagógica a partir do trabalho remoto – afinal, ainda precisaremos cumprir as 800 horas de efetivo trabalho pedagógico, não mais em um ano, mas em seis meses – e a perda de mais um ano letivo (A nossa experiência com greves e outras formas de paralisação de dias letivos não ultrapassaram, na sua esmagadora maioria, quatro meses. A reposição de dez meses significa acomodar os conteúdos de dois anos letivos em um).

A seguir, elenco alguns argumentos contrários à proposta de cancelamento e alguns elementos para enriquecer o debate:

 

Aprofundamento do fosso educacional entre redes públicas e privadas

Essa linha defende que, ao propor o cancelamento do ano letivo apenas das escolas públicas, estaríamos aumentando as disparidades educacionais entre escolas públicas e privadas. 

Para dialogar com esse argumento, precisamos recorrer à materialidade. O fosso entre escolas públicas e privadas JÁ aprofundou-se com a pandemia. Nossos estudantes já estão em situação de defasagem na medida em que não dispuseram das mesmas condições de aprendizagem que os alunos das escolas privadas, sobretudo as grandes. Recomeçar o ano letivo seria a maneira mais honesta de fornecermos a eles condições equivalentes de aprendizado.

 

“Trabalho jogado fora”

Como defendemos, o trabalho realizado pelos profissionais da educação em tempos de pandemia e escolas fechadas foi imprescindível para a manutenção do vínculo e apoio emocional com a comunidade escolar. Precisamos defender a importância de nos mantermos, mesmo de forma remota, como uma referência aos nossos alunos e alunas. Além disso, o trabalho remoto para categorias de trabalhadores não essenciais é a garantia do direito à vida e à segurança sanitária, principalmente para os trabalhadores ou familiares próximos enquadrados como grupo de risco.

 

Evasão escolar

A pandemia certamente agravou o quadro desse problema endêmico da educação pública e para dirimir essa questão será necessário um grande esforço de toda a comunidade escolar para resgatar os estudantes que se desestimularam, seja por não possuir as condições materiais e os recursos técnicos, seja por não se adaptarem ao vínculo remoto. Qualquer quadro que seja – retomada do ano letivo de 2020 ou cancelamento do calendário -, a evasão precisará ser tratada como problema central.  

 

Estigma da reprovação

Com a proposta de cancelamento do calendário, não estamos falando de aprovação ou reprovação, mas sim de recomeço do trabalho suspenso em 2020.

 

O ensino híbrido como solução ao problema da sobrecarga de trabalho e enxugamento do currículo

Alguns setores do movimento sindical incrivelmente defendem a expansão das TICs nas escolas públicas para complementação de carga horária letiva no ano de 2021. Defendem que plataformas públicas poderiam cumprir esse papel, o que resolveria a questão da invasão do setor privado sobre o público. Ainda não sabemos se é por uma leitura equivocada da conjuntura educacional e todas as investidas dos grandes conglomerados sobre o fundo público ou por expectativa de futuras concertações, mas, por certo, essa defesa acabará contribuindo para o rebaixamento do trabalho docente e o desmonte dos fins da escola pública. 

Com esse documento, esperamos enriquecer o debate e desvelar as contradições inerentes à proposta de retomada do calendário letivo de 2020 em 2021 (qualquer que seja o nome que essas propostas recebam), e é endereçada sobretudo aos segmentos da categoria docente que ainda cultivam ilusões sobre a volta a uma condição de escola pública pré-pandemia.