Por RODRIGO LAMOSA, Prof. Dr. Da UFRRJ/PPGEduc e coordenador do LIEPE
É público e notório que as condições de trabalho em que estão inseridos os trabalhadores brasileiros são marcadas por um traço de intensa precariedade, traço da superexploração na periferia do capitalismo que articula formas modernas e arcaicas de dominação. A precariedade no mundo do trabalho avançou enormemente no período da pandemia, elevando exponencialmente a categoria dos trabalhadores denominada por Ruy Braga como “precariado”. Esse precariado, atualmente, é formado por cerca de 40% da classe trabalhadora no país, dividida entre: desempregados (incluindo o desemprego por “desalento”), subempregados (parte considerável dos trabalhadores com contratos temporários) e aqueles submetidos ao trabalho indeterminado e intermitente em que se pode estar ou não ocupado, dependendo do dia, semana ou mês e que impacta, sobretudo, as mulheres e, ainda mais, as mulheres negras.
A expansão do precariado no Brasil avançou sobre diversas categorias e vem sendo impulsionada pelo “teletrabalho”, “home-office”, entre outras formas de precarização do trabalho. Médicos, professores, advogados, operadores de telemarketing, profissionais da indústria de produção de software, entre outras, são categorias que vêm sendo impactadas pelas novas metamorfoses do mundo do trabalho no século XXI. É uma engenharia que tenta destituir os trabalhadores e, destacadamente, as trabalhadoras da sua condição de classe, impondo novas formas de contrato, conceitualmente expressas nas definições de “pessoa jurídica (PJ)”, “empreendedor” e “parceiro” que se constituíram nas formas dominantes do trabalho, segundo Ricardo Antunes, no “privilégio da servidão”.
Na educação a expansão do precariado está associada a submissão de parcela dos professores, parte significativa formada por mulheres, às novas formas de exploração do trabalho. Em sua pesquisa, Amanda Moreira analisou a “precarização de novo tipo” do trabalho docente, a partir de duas categorias fundamentais para compreender a atual e heterogênea composição de parte dos trabalhadores da educação: 1) precariado professoral (conjunto de professores submetidos à relações de trabalho definidas pelo tempo indeterminado e intermitente); 2) professorado estável-formal (professores concursados que passam por diversas formas de precarização: congelamento e atraso nos salários, perdas nos planos de carreira, intensificação de horas extras, entre outras). Assim, seguindo o movimento geral de metamorfose do mundo do trabalho, verifica-se um processo de ampliação da primeira categoria sobre a segunda, traço que revela a intensificação dos níveis de exploração do trabalho na educação brasileira.
Na Constituição Federal de 1988, artigo 206, inciso V, consta a previsão de que o ensino deverá ser ministrado com base na valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, pela existência de planos de carreira e ingresso, exclusivamente, por concurso público de provas e títulos. Isto é reforçado na legislação educacional por meio da Lei de Diretrizes e Bases –LDB, lei nº 9.394, e pelo Plano Nacional de Educação. Nos últimos anos, entretanto, quase 50% das redes públicas estaduais, segundo levantamento realizado por Thayse Gomes, tiveram um número maior de professores contratados em regime temporário do que professores concursados para cargos efetivos. Isto ocorreu em diversos estados, como Espírito Santo (73%), Minas Gerais (57%), Alagoas (82%), Mato Grosso (64%), Acre (64%), Piauí (64%), Ceará (58%), Pernambuco (50%), Santa Catarina (55%), Mato Grosso do Sul (64%), tendo ainda duas redes estaduais com números superiores a 40% de professores contratados: Roraima (47%) e Tocantins (45%).
Esses trabalhadores que formam o “precariado professoral” estão expostos à condições de trabalho caracterizadas: 1) pela alta rotatividade; 2) pelo assédio moral; 3) pela constante ameaça de suspensão dos contratos; 4) por uma remuneração mais baixa do que aquela recebida pelo “Professorado estável-formal”, em uma operação que fere de morte a isonomia do serviço público, divide esta categoria de trabalhadores e impele milhares de professores à condições onde a reprodução torna-se cada dia mais difícil. Esse “precariado-professoral” está, em decorrência desta condição de superexploração, intensificada no caso das mulheres, submetido a essa jornada que impõe dificuldades para sua organização sindical e mesmo no interior das próprias escolas (muitas vezes quatro, cinco, seis escolas).
A formação deste “precariado professoral” vem sendo realizada, em grande medida, pelas escolas de Educação a Distância (EaD) que se multiplicaram pelo país e, atualmente, formam uma “fábrica” de produção de professores. A oferta em Instituições de Ensino Superior (IES) privadas de matrículas em licenciaturas chegou a 61,7% em 2015, cabendo à esfera pública apenas 39,3%. Está em curso, neste exato momento, a formação de um modelo de licenciatura barata e minimalista. Esse modelo, por um lado, conforma a formação docente aos parâmetros impostos pelos grupos privados e, por outro lado, fortalece a atuação dos fundos de investimento que têm expandido sua atuação na educação brasileira. Em 2017, segundo o INEP, 42% das matrículas em cursos de formação de professores já era realizada à distância, sendo a maior parte nas IES privadas com fins lucrativos.
Este “precariado-professoral” que se expande no país, impulsionado pela formação em EaD, e que está submetido ao trabalho indeterminado e intermitente, inserido em categorias como “professor eventual”, recebe muitas vezes abaixo do piso nacional. Segundo levantamento do DIEESE, dezesseis estados da federação pagam abaixo do piso nacional, incluindo São Paulo. A média salarial dos professores no Brasil é a metade dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e significa pouco mais de 70% da média salarial paga a profissionais com o mesmo nível de formação no país. Entre todos os estados, o Rio de Janeiro é aquele que paga o segundo pior piso no país, calculado em R$ 1.709,38 para uma jornada de 40 horas.
No Rio de Janeiro, a condição do “precariado professoral” vem se expandindo, sobretudo, nas redes municipais de ensino. No período da pandemia as demissões de professores com contratos temporários de trabalho foram inúmeras vezes divulgadas na imprensa e denunciadas pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (SEPE-RJ). Na rede estadual de ensino, embora os números de contratos temporários seja reduzido, verifica-se nos últimos anos uma piora substantiva das condições de trabalho do “professorado estável-regular”. Sob o argumento que reivindica a lei de responsabilidade fiscal, os governos que se sucederam nos últimos anos não reajustaram os salários, impuseram inúmeras lutas contra o plano de carreira e ampliaram enormemente os números de professores sob a realização de hora-extra. Parcela expressiva destes trabalhadores, embora concursados, se defrontam também com condições de superexploração que se aprofundaram enormemente com a pandemia da COVID-19 (sobretrabalho imposto pelo “ensino remoto”, ameaça de perda da remunerações oriundas da hora-extra, assédio moral, entre outras).
Nos últimos meses o governo do estado produziu três resoluções para reestabelecer o retorno das atividades presenciais na rede estadual. Por meio das resoluções n.º 5.873/2020, n.º5.876/2020 e n.º 5.879/2020 o governo do estado anunciou aquelas que julgam ser as normativas sobre este retorno para estudantes, professores e demais trabalhadores da educação, sem, entretanto, ouvir qualquer uma das partes. Em síntese, nenhuma das três resoluções apontam para uma agenda que incorpore os principais sujeitos que formam as comunidades escolares e suas demandas. Mais uma vez e, agora, sob a tutela de um preposto dos interesses mercantis dos proprietários dos estabelecimentos privados de ensino a SEEDUC-RJ propõe uma espécie de “pedagogia da morte” em que o valor da vida, sobretudo dos professores, vale pouco ou quase nada.
Os professores se veem diante de um dilema que não é mais aquele de meses atrás: retornar às atividade presenciais ou se adequar as propostas de “ensino remoto”. O dilema agora é outro, assim como o conteúdo da chantagem. Neste período, os dominantes e seus prepostos convocam os professores para a experiência do “ensino híbrido” (presencial + remoto), acompanhada da retomada da experiência da “aprovação automática” e, por fim, para um salto no escuro em um precipício que eles denominam como “reestruturação curricular” ou “ciclo único”.
As propostas de “ensino híbrido” vêm sendo difundidas por diversas instituições, destacando-se a Associação Nacional de Educação Básica Híbrida. A ANEBHI iniciou no dia 14 de outubro de 2020, véspera do “dia dos professores”, a realização do “Seminário Internacional de Educação Básica Híbrida, certificado pelo Centro Universitário de Jaguariúna (Unifaj). As mesas-redondas foram compostas por intelectuais reconhecidamente ligados às fundações e institutos empresariais que atuam na educação, organizados pelo Todos Pela Educação que articula como uma espécie de partido, produzindo coesão ao projeto dos dominantes. Claudia Costin, Maria Helena Guimarães Castro, Guiomar Namo de Mello, Mozart Ramos, entre outros, foram alguns dos intelectuais presentes. As mesas tiveram como temas: formação docente, desafios da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), as avaliações externas, gestão educacional, materiais didáticos, plataformas, tele-aulas, entre outros, e o evento deverá continuar com simpósios temáticos até o mês de dezembro. Deste encontro deverá se produzir uma agenda que irá ser apresentada às “autoridades educacionais deste país”. Isto significa, além do MEC, o Conselho Nacional de Educação, nos quais alguns destes intelectuais são os próprios conselheiros. OTPE, por meio da ANEBHI e Unifaj e de uma série de fundações e institutos (Ayrton Sena, Unibanco, etc), em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) são os agentes e as agências da nova e sinistra agenda da politca educacional.
No Rio de Janeiro, o governo, apesar de reconhecer que 70% dos estudantes não tiveram qualquer tipo de interação remota, os governos propôs validar como dias letivos todo este período de exclusão de milhões de alunos. Nos parece que, sob o véu da ideologia do “novo normal”, a sentinela dos dominantes, mais uma vez, toca no ritmo fúnebre do negacionismo. A troca dos governadores não parece alterar o curso do rio. A tarefa de pensar o futuro da educação, definitivamente, não cabe aos poderes palacianos. As estratégias para a formação dos trabalhadores da educação não passa pelo Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro, assim como não passa pelo Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, ou pelo Palácio da Liberdade que, uma vez ocupado por Romeu Zema e seus batalhões, inspira bem menos do que aquilo que o nome poderia sugerir. Cabe, neste sentido, aos trabalhadores e, particularmente, aos professores darem uma duríssima lição nesses governadores e seus financiadores.
Existem, portanto, inúmeras razões que definem uma materialidade que nos força a pensar neste dia dos professores com o “pessimismo da razão”. Por outro lado, também é possível identificar nesta mesma materialidade movimentos de insubordinação que vêm mantendo viva a esperança insurgente tão necessária e que reforça o “otimismo da vontade”. Nesse contexto, a “greve pela vida”, bem com as frentes contra o ensino remoto que se espalham pelo país vêm impondo derrotas a agenda dos dominantes que precisam ser destacadas. Já são conhecidas as lutas que impuseram limites às propostas de normalização no Colégio Pedro II, mas é importante destacar também o papel que milhões de professores deste país tiveram no período da pandemia nas ações de solidariedade de classe. Foram inúmeras escolas, sindicatos e cursos pré-vestibulares que reuniram esforços para manter contato e oferecer todo tipo de auxílio às comunidades escolares. Esse trabalho é parte fundamental do papel que os professores e suas organizações assumiram neste momento histórico.
Essas lutas e a experiência produzida, a partir da solidariedade de classe, constituirão as gerações de professores que atravessam esse período histórico. Esses professores vêm forjando, em um exercício teórico-prático realizado à contrapelo, a consciência que é exigida dessa categoria na atual conjuntura. As articulações que envolvem sindicatos, associações e movimentos de trabalhadores da educação vêm reunindo forças para responder aos desafios que estão colocados. Essa luta, para além dos professores, deve envolver estudantes e todo conjunto dos trabalhadores da educação. Essa luta é necessária e terá enorme peso nas definições da conjuntura que se avizinha. Ainda dá tempo de virarmos esse jogo!
Me despeço lembrando da vida de luta de todas todos os professores e demais trabalhadores da educação que faleceram no último período. Não poderia lembrar de cada um, pois, infelizmente, não foram poucos. Mas deixo o registro do companheiro Jorge Cezar Gomes Maia, militante de muitas jornadas, lutador de muitas lutas, pai carinhoso, amigo de sempre e que sintetiza a história de lutas travadas por este conjunto de trabalhadores. Uma saudade enorme! Jorge Cezar! Presente!
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