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Especiais

O antifascismo nas eleições

Partisans italianas em Milão, abril de 1945

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

O desemprego aumenta e a miséria grassa. Ocorre uma profunda e intencional reconfiguração da força de trabalho no Brasil, cujo horizonte é a existência de uma ingente massa de homens e mulheres que, desprovida de tudo, terá que se vender por quase nada apenas para conservar sua própria existência. Em meio à fumaça, violência, vírus e caos, a vida da sociedade brasileira caminha, célere, para se tornar “a vida do que está morto movendo-se dentro de si mesma”, nas palavras do então jovem Hegel quando alinhavava a temática da alienação.

Nesse movimentar automático da morte, nessa naturalização que o regime social faz de si mesmo, ocorrerão, quase que por força do hábito, por assim dizer, as insípidas eleições municipais. A correlação de forças é extremamente desfavorável para os defensores da vida, e em boa parte das capitais do país a “polarização ” se dá entre o mortifero neofascismo ultraneoliberal e o ultraneoliberalismo da direita tradicional, o qual compartilha com o primeiro uma inclemente plataforma de destruição de direitos, ainda que o faça segurando corretamente os talheres na hora de cortar na carne dos trabalhadores.

Cada vez mais blindada e com seus traços bonapartistas à mostra, a democracia liberal brasileira não permite mais que qualquer estratégia gradualista da esquerda seja seriamente cogitada. Embora estrategicamente equivocada no que tange à construção do socialismo, a opção tática por um crescimento gradativo por dentro das instituições encontrou, entre fins da década de 1980 e ao longo da de 1990, um terreno concreto até certo ponto favorável, ainda que seus adeptos, reformistas, não tenham, quando vitoriosos, ido além de um “reformismo fraco” (Singer) ou um “reformismo sem reformas” (Arcary). Se aquele caminho fomentava ilusões quanto a uma transformação estrutural da sociedade brasileira, obscenamente desigual, ao menos ele, o caminho, tinha um chão por debaixo, e as ilusões, portanto, tinham em que se apoiar, mesmo que não deixassem de, por isso, serem ilusórias.

Agora, contudo, não há qualquer realidade terrena sobre a qual possa se apoiar o desejo celestial de, por dentro das instituições, se alcançar um mundo melhor na Terra. Não há chance alguma de qualquer setor da esquerda repetir a saga do petismo, salvo como uma farsa fadada ao fracasso. A jusante do rio neoliberal é a mesma, mas suas heráclitas águas não. O capitalismo periférico já não suporta qualquer tipo de reformismo, nem mesmo aquele que se limitou a políticas sociais compensatórias, aumento do salário, crédito consignado, redução do desemprego e políticas afirmativas. Agora os limites são outros, ainda mais limitados e, talvez por isso, o neofascismo bolsonarista seja, no limite, algo por ora necessário à burguesia brasileira, mesmo que uma boa parte desta lhe torça o nariz- enquanto lhe abre a boca e saliva anelando por lucros ainda maiores. Em consonância com isto, com esses limites do ultraneoliberalismo na periferia, o regime político brasileiro não abre mais a menor brecha para que seus espaços possam ser gradativamente ocupados pela esquerda. Não é verdade que “um dos nossos lá dentro poderá puxar outros”, nem de que é possível “mudar a cara dos parlamentos e das prefeituras” – ou melhor, talvez só as caras é que possam mesmo ser mudadas, e olhe lá. Os eventuais furos na blindagem que consigamos nestas eleições devem ter como precípua função fortalecer as lutas antifascistas aqui de fora, e não tentar oferecer “uma nova forma de fazer política” (adágio já usado, aliás, por Gabeiras e Marinas da Silva). As eventuais vitórias em termos de “representatividade” em nada alterarão o caráter do nosso sistema representativo, do mesmo modo que alguns poucos penetras não costumam alterar o cardápio culinário e musical de um grande baile, ainda que alguns deles possam reclamar de forma estrepitosa da comida e da música, enquanto outros possam preferir se comportar pra permanecer na festividade e, assim, acabem até eventualmente se enamorando lá dentro, e, por conseguinte, justificando com a razão que só o coração entende a necessidade de não perder por nada a sua trincheira insurgente no campo do inimigo.

Desse modo, a principal tarefa da esquerda socialista nestas eleições de 2020 é a denúncia do governo Bolsonaro e seus aliados regionais. Não se trata, por tanto, de ser “propositivo”, como muitos insistem. Nao pode existir um programa de transição municipal a não ser como parte de um programa de transição federal. As eleições são municipais, mas seu sentido é, talvez mais do que nunca, nacional. É impossível melhorar substantivamente a vida do povo em qualquer cidade sem uma derrota nacional do bolsonarismo, e todo posto eventualmente conquistado por nós terá que estar, em primeiro lugar, a este serviço. O nosso signo nas urnas não pode ser outro que não o do antifascismo. Trata-se, portanto, de “explicar pacientemente às massas” a necessidade de se organizar politicamente para derrotar o bolsonarismo – e olha, Vladimir, que elas andam impacientes com a vida (e com a morte), e muitos de nós impacientes com o atraso subjetivo delas, mas, como diz o provérbio popular, “ninguém disse que seria fácil”.