Um convite à leitura: Memórias do Confinamento, de Abel Ribeiro

Mauro Puerro

“O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.”
Carlos Drummond de Andrade

Ao ler “Memórias do Confinamento”, escritos durante a pandemia que nos assola, recordei-me, na hora, do poema “Mãos Dadas” de Drummond. Seus dois últimos versos abrem este prefácio. “Mãos Dadas” é um dos poemas do livro “Sentimento do Mundo” publicado pelo genial poeta brasileiro em 1940. Suas poesias foram escritas entre 1935 e 1940, período de ascensão do nazi-fascismo e início da segunda guerra mundial, que deixavam muitas dúvidas sobre o futuro da humanidade. O “gauche” Carlos, homem com ideias de esquerda, buscava soluções coletivas nesta época difícil. O eu-lírico de “Sentimento do Mundo” refletia este paradoxo da época: a pressão de uma realidade que amedrontava cada indivíduo versus o olhar coletivo para a humanidade.

Abel Ribeiro, professor, sociólogo, ativista, pessoa dedicada a mudar o mundo, escreve seus versos confinado, num momento em que a humanidade novamente está com terrível dúvida sobre seu futuro. A crise sanitária, econômica e política pressiona e amargura cada indivíduo. Muitos não têm certeza de estar vivos na próxima semana. E, se estiver, o que farão para sobreviver. E também se conseguirão sobreviver ao perigo fascista que voltou ao mundo e ao país como um pesadelo terrível do qual pensavam já ter se livrado.

É neste cenário que o paraense Abel, confinado em Florianópolis escreve seus versos. Óbvio que este paralelo para apontar similaridades entre os eu-líricos não significa igualar “Memórias do Confinamento” com “Sentimento do Mundo”. Quando de sua publicação Drummond já era um poeta maduro e exuberante. Abel está lançando seu primeiro livro.

Guardadas as devidas proporções e diferenças de períodos históricos distintos, o eu-lírico de “Memórias do Confinamento” também está prensado por uma contradição: a individualização física e todas suas consequências imposta pela pandemia de um lado, e de outro a solução coletiva necessária para a humanidade.

Já em “Confinamento”, poema de abertura, o paradoxo que aflige o eu-lírico surge com força e evidência:

“Quando comecei a ficar em casa
Sala, cozinha, quarto, banheiro…
O dia inteiro
Comecei a me sentir ferido
O animal social que havia em mim
Ficou dividido”

Aqui está cristalino o conflito imposto pela realidade: o indivíduo forçado à solidão e à introspecção em choque com o social que não o abandona. E mais adiante: “Percebi que o mundo queria me esmagar”. Mas há uma luz que aponta para uma possível solução do conflito: a palavra. Sua força pode ser a janela para o “novo amanhecer”, metáfora de um novo momento, momento no qual se fundiria os desejos do indivíduo e do coletivo. Esse poder da palavra surge em várias outras poesias de Abel.

“Palavrear, reverbear minha vida.
Foi então que descobri
Um novo amanhecer!”

O tempo, a vida e as pessoas deste difícil momento presente constituem-se na matéria prima dos poemas e textos do livro. Perpassa por quase toda as composições. Em “O Polissêmico”, o vírus, inimigo mortal da humanidade na atualidade é personificado através de prosopopeias bem construídas.

“Ele é invisível, insensível e imprevisível;
Multissintomático nos seus sintomas
Indiferente e hostil lhe proíbe o abraço
Provoca cizânia, afasta você das pessoas que gosta”

Também em “Palmas para a Ignorância”, “As Feridas da Vida” e “De Improviso” surge com força o olhar crítico, às vezes ácido, sobre o presente, a vida e as pessoas. Já em “Ponto de Chegada” essa tríade salta associada à esperança:

“Apertem os cintos, o velho mundo entrou em crise, começou a ruir.
O sistema da mercadoria pariu uma nova situação. O deus mercado parou!”.

E mais abaixo:

“Sim! É preciso abrir o coração de esperança
A tempestade é sóbria
E como dizia Einstein: “é na crise que se aflora o melhor de cada um”
“Sem crise todo vento é uma carícia”

Apesar da situação crítica, opressora e do momento difícil durante o qual foram gestados seus textos, Abel consegue lhes dar um estilo leve, variado. Várias vezes namora com o concretismo – “Procurando o sentido”; “Brindando palavras”; “Estranho espelho”. Outra vezes brinca com a estrutura textual: “Divórcio com a forma”. Um dos pontos altos está em “Tirei uma Cartola do Bolso” ao utilizar o recurso da intertextualidade para dialogar com “O mundo é um moinho”, música do magistral compositor carioca.

Mesmo quando se volta para o passado, seu ponto de partida é o presente. É o que se vê na bela e sensível homenagem a Ângela Maria e por tabela ao pai, à mãe e ao avô em “Poema para Abelim Maria”. É um livro escrito, em tempos sombrios, com delicadeza e esperança. Merece ser lido na solidão da pandemia ou de “mãos dadas” num ato de rua.