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Especiais

Boulos no segundo turno

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Considerando as pesquisas disponíveis neste momento, antes do início da campanha eleitoral no horário das TVs e rádios, a situação atual é que a esquerda lidera em três capitais: em Porto Alegre com Manuela D’Ávila do PCdB, em Vitória no Espírito Santo com João Coser do PT, e em Belém com Edmilson Rodrigues do PSol. A esquerda está em segundo em duas capitais, em Fortaleza com Luizianne Lins e em Recife com Marília Arraes, ambas do PT, embora a intensa dinâmica da campanha de Boulos possa surpreender, superar Russomano, e chegar ao segundo turno.

São Paulo será “a mãe de todas as batalhas”. Sete fatores merecem ser considerados, sem autoengano, quando refletimos sobre as possibilidades. Boulos ainda é pouco conhecido. Boulos está empatado com Covas, em primeiro lugar, na pesquisa espontânea. A transferência de votos de Erundina na periferia ainda está por acontecer. Boulos está muito bem posicionado na juventude. A potência da campanha do PSol nas redes é muito grande. A militância voluntária está muito empolgada e são milhares de ativistas. Mas o mais importante é que Boulos se consolidou como a candidatura nos setores organizados da classe trabalhadora, que foi por onde o PT se construiu nos anos oitenta.

A centro-esquerda, organizada em torno do projeto de Ciro Gomes lidera somente em uma capital, João Campos (PSB) no Recife, com o apoio dos governos municipal e estadual.

O Centrão articulado pelo DEM, PSDB e MDB, os partidos que concentram a representação tradicional da burguesia, e se articularam em torno de Rodrigo Maia no Congresso Nacional lideram em sete capitais.

O DEM está na frente em: Gean Loreiro atual prefeito em Florianópolis (44%), Rafael Greca, também prefeito (47%) em Curitiba, Bruno Reis em Salvador, com o apoio do atual prefeito ACM Neto (43%), e Eduardo Paes, ex-prefeito no Rio de Janeiro (27%). Em Belo Horizonte o atual prefeito Kalil do PSD de Kassab é candidato à reeleição, até no primeiro turno com 58%.

Bolsonaristas lideram em três capitais: São Paulo com Russomano do Republicanos, Capitão Wagner em Fortaleza do Pros, com o apoio de mais sete partidos do Centrão, e Eduardo Braide em São Luis do Podemos.

Se considerarmos quem está em segundo lugar neste momento, nas mesmas capitais, o bloco do Centrão (DEM, MDB e PSDB e satélites) tem candidatos em dez capitais. O PSDB:em São Paulo com Bruno Covas (21%). O MDB em Belém com José Priante (10%) e Maguito Vilela Goiânia (20%), por exemplo. Os bolsonaristas tem candidatos em três capitais.

Eleições municipais são um processo de disputas simultâneas que têm significados distintos. Não se pode perder o sentido das proporções. As eleições nas grandes capitais têm uma importância, desproporcionalmente, maior. Porque se trata de posições de grande poder. A bússola que deve orientar a esquerda é a compreensão de que se trata de luta para acumular posições para derrotar Bolsonaro.

Eleições são um terreno de luta de classes. São um terreno desfavorável para a esquerda, porque a disputa se desenvolve em condições muito desiguais. Mas eleições alteram a relação política de forças entre os partidos de forma direta. E vitórias ou derrotas eleitorais incidem na relação social de forças entre as classes. Precisamos aprender as lições da história.

A campanha das Diretas Já em 1984 foi convocada pelo governo de São Paulo um ano depois da eleição de Franco Montoro. Desde o golpe de 1964 o MDB nunca tinha chamado as massas populares às ruas contra a ditadura militar. O PT tinha iniciado a campanha, corajosamente, com o comício de novembro de 1983 no Pacaembu em São Paulo, mas reuniu duas dezenas de milhares de ativistas e simpatizantes. No dia 25 de janeiro o Ato na Praça da Sé superou trezentas mil pessoas.

Conquistar posições de poder e ter a disposição de usá-las para inflamar a luta popular faz diferença, como Brizola, em seu melhor momento, já tinha provado ao formar a rede em defesa da legalidade para garantir a posse de Jango. Ou como agiu Vargas, a partir do Rio Grande do Sul, ao iniciar a revolução de 1930 contra a fraude eleitoral da República Velha.

Inversamente, o governo liderado pelo PT em 2016 não convocou as massas às ruas quando do golpe parlamentar. O discurso de defesa que Dilma fez no Senado foi de grande dignidade. Mas, infelizmente, naquele contexto, a direção do PT não teve a clareza estratégica de que era necessário que o governo usasse todos os imensos recursos da presidência para se defender.

A única forma de neutralizar a ofensiva reacionária era a mobilização popular. O PT resistiu e organizou o grande comício na Paulista. Mas não era o bastante. A miopia dos excessos de republicanismo impediu o PT de compreender que um governo legítimo tem o direito de se defender, e não deve terceirizar para o partido que é maioria no seu interior, ou para as organizações populares que influencia, a tarefa de impedir um golpe reacionário.

Precisamos de uma esquerda que saiba se inspirar nas lições do passado, e tenha inteligência tática e valentia política para derrotar o governo de extrema-direita. Bolsonaro se fortaleceu, mas não conseguiu legalizar a sua Aliança pelo Brasil a tempo de poder participar nas eleições municipais. Também por isso a extrema-direita se apresenta fragmentada em quase todas as capitais, em geral com pelo menos dois, às vezes três, e até quatro candidatos. Não se deve diminuir o significado da rejeição a Bolsonaro nas grandes cidades, que é muito superior que no interior do país.

A implantação do bolsonarismo é maior no sudeste e no sul do país, mas a extrema-direita só tem candidato competitivo nessas capitais em São Paulo. Uma vitória em São Paulo teria, infelizmente, impacto catastrófico. Mas é improvável que Russomano possa vencer um segundo turno, e é plausível que nem sequer passe para o segundo turno. Esta é batalha central de novembro de 2020.

Este momento do cenário eleitoral não deve alimentar a conclusão que Bolsonaro não tem perspectivas de longo voo. A estratégia de Bolsonaro em 2022 é unir os partidos da fração do Centrão que entrou no governo, uma fauna de mais uma dezena de partidos de aluguel que não terão escrúpulos de apoiar a extrema-direita, e irá articular uma amplíssima Frente. O centrão liderado por Maia no Congresso Nacional pode sair como o principal vencedor das eleições, mas não é um obstáculo sério no caminho da corrente neofascista. Essa tarefa está nas mãos da esquerda.

A luta eleitoral ainda não começou de verdade. Eleições se decidem no Brasil na última semana. Em todos os últimos processos eleitorais pelo menos um quarto do eleitorado fez a escolha do voto nos últimos cinco dias. Todas as pesquisas de opinião feitas até agora indicam que mais da metade dos eleitores estão ainda tateando suas inclinações.

As posições relativas das candidaturas e dos partidos são sinalizações tão importantes quanto as oferecidas pelas taxas de rejeição. Ainda por cima, tudo indica que, infelizmente, não teremos debates nas principais cidades. E o bombardeio de fakenews pelas redes sociais deverá ser um pesadelo.

O debate sobre o papel dos governos nacional e locais diante da pandemia, com o Brasil superando os 150.000 mortos, e caminhando para duzentos mil até o fim do ano será central e, paradoxalmente, o impacto do auxílio emergencial pode favorecer a reeleição de prefeitos. Mas a situação do país sugere que o fenômeno do voto útil será avassalador, em especial, entre a base social antibolsonarista.

Neste momento, levar Boulos ao segundo turno é o maior desafio da esquerda brasileira. Conquistar nas grandes cidades trincheiras para deter o neofascista é a maior tarefa das eleições.