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TEORIA

Estamos vivendo uma Distopia?

Rafael Rodrigues, Resistência - São Paulo (SP)

Escrevo este texto a todas e todos que pelos dilemas da vida atual encaram a realidade como mais brutal que qualquer obra de ficção jamais escrita. A vocês que se angustiam quase que como em um estado permanente e acreditam que estamos em um momento ameaçador. Permitam-me brevemente apresentar-lhes uma reflexão, fruto de minhas meditações levadas com diligência e atenção, não vos busco despertar esperança tola e ingênua e nem pessimismo lúgubre, apenas acertar um lampejo de cogitação, o que pode levar a uma ação (ou seria reação?) sobre nossa moléstia. Para tanto, tolerem minha pequena digressão filosófica aos bastiões da crítica de nossa melancólica civilização.

No século XVIII, o filósofo Jean-Jacques Rousseau escrevera um polêmico ensaio em forma de discurso que consistia na resposta a uma pergunta: o estabelecimento das ciências e das artes contribuiu para a purificação dos costumes? A resposta de Rousseau seria categórica, o progresso técnico da civilização resultou numa diminuição dos valores éticos da sociedade. Para o autor franco-suíço, a sociedade do avenir estava sendo gestada por premissas existenciais vazias e impregnadas de vaidade e  corrupção. Entenda-se “ciências” e “artes” tais como o sentido dado à época, isto é, ciência como um conhecimento sistemático levado a cabo por pensadores e filósofos e de artes como o conhecimento técnico capaz de avançar a tecnologia. Importante essa distinção porque ela nos permite compreender que a crítica de Rousseau não se limitava apenas aos “filósofos”, mas a sociedade que estava sendo gestada, ou seja, a sociedade burguesa. 

A crítica de Rousseau se assentava em premissas ligadas a uma natureza humana originária que em linhas gerais ele identificava como sendo despida de corrupção e vilania. A velha imagem do “bom selvagem”, uma visão um tanto quanto grosseira e vulgar do pensamento rousseauniano, criou o estereótipo de um passado primitivo idílico onde o ser humano seria bom por natureza. Na verdade, Rousseau não diz que o ser humano é “bom” ou “mau”, mas inocente. Inocência, o estado daquilo que é brando, manso, ausente de malícia. Claro que essa diferenciação não fez muita diferença aos olhos de seus críticos, a academia logo se apressara a apontar um caráter “ingênuo” em seu pensamento, no afã de apontar seus erros epistemológicos simplesmente se abstiveram de analisar de fato a crítica feita por este, uma crítica que ia ao sentido de apontar uma faceta humana obscura que estava se desenvolvendo dentro da vida em civilização, que não consistia em algum tipo de desvio moral pessoal de alguém, mas através de uma nova forma de sociedade que estava sendo parida.  Sinteticamente, para Rousseau, é da natureza humana que o ser humano sinta piedade e complacência pelo seu semelhante, o sofrimento de uma pessoa causa em nós um impacto, de fato, se analisarmos bem, o sofrimento de qualquer ser sensível causa em nós um desconforto, e isso porque seria da natureza humana a capacidade de sentir empatia. Essa capacidade natural teria, inclusive, ajudado o ser humano a ser mais sociável e, logo, permitido que a espécie conseguisse reunir os elementos necessários ao seu desenvolvimento e reprodução. 

Contudo, para Rousseau, na medida em que passamos a acumular conhecimento passamos a nos enriquecer, e esse enriquecimento material também se refletiria numa divisão social, entre os letrados, ligados as classes dominantes, e os iletrados, os dominados. Na mesma proporção que os seres humanos avançavam na sua busca pela compreensão da natureza, mais desiguais eles se tornavam. Esse atestado dado pelo filósofo acabaria compreendendo a desigualdade como a marca da sociedade burguesa, como a chaga da degeneração. Para ele, a desigualdade seria a fonte da corrupção e da desumanização. Para Rousseau, o avanço do pensamento burguês trouxe premissas sociais vãs e vis que passaram a ser almejadas por todos. A ideia de progresso, intrinsecamente ligada ao acúmulo de riquezas, criou um modelo a ser perseguido por cada um, o que para ele, nos colocou numa espiral de degeneração e sofrimento. Um exemplo é o luxo. Para Rousseau, o luxo passou a se tornar uma necessidade, e a cada luxo que compramos mais nos tornamos “sensíveis”, mais vulneráveis ficamos, logo, passamos a necessitar de mais polícia, mais exército, mais militares, mais vigias que vigiassem nossas coisas formando um ciclo vicioso de insegurança, medo e violência. Os ricos criaram um aparato de controle para se defenderem, a si e a suas propriedades, mas isso não quer dizer que nós também não queiramos ter as mesmas coisas que eles, porque isto é algo que também nos corrompe, é uma forma de viver que nos é compelida. Para ele, isso não se trata de um desejo natural, mas de um produto de nossa vaidade. Queremos dominar a outros, assim como os ricos dominam porque esta é a forma de ter “sucesso”. Essa forma social se impõe como uma estrutura objetiva, dito de outra forma, não se trata de uma mera escolha individual, mas de uma forma de viver em sociedade que nos leva a agir assim.

Em Rousseau encontramos a primeira crítica radical ao modelo da sociedade burguesa antes da sua plena consolidação, talvez por isso mesmo ele mire em seus contemporâneos iluministas como personagens que encarnariam intelectualmente as aspirações de uma dada classe social. Ao criticá-los ele aponta questões como a crescente vaidade e o fato que ao se limitarem a fazerem um culto da sociedade mercantil criavam uma ilusão de prosperidade comum a todos. Rousseau dirá que as artes e as ciências de seu tempo solapavam a liberdade original com que nascíamos e faziam com que amassemos a escravidão, que cultivássemos a dependência às coisas frívolas e vis e a submissão para com os detentores da riqueza e do poder. Elas fomentariam a desigualdade e a tirania, isso ocorreria na medida em que elas passaram a fomentar novas necessidades, novas formas de dependência. “os pensadores antigos sempre falaram de moral e de virtude, os atuais falam apenas de comércio e dinheiro“.

A questão da desigualdade social é central em seu pensamento porque ela é a expressão da desumanização. A partir da desigualdade nosso prazer é aumentado pelas diferenças que temos com os outros que são mais pobres que nós, nosso prazer é aumentado porque podemos nos diferenciar e nos sentir superiores. Rousseau expressa lástima com a desigualdade, pois a desigualdade reduz a oportunidade para sentirmos compaixão e aumenta a oportunidade para causarmos dor. Segundo ele, o fato de sermos naturalmente desiguais – uns são mais fortes que outros, mais altos etc. – é pesadamente inflado dentro da sociedade já que a desigualdade social passou a se tornar dinâmica estrutural do sistema.

Outra questão frontalmente atacada pelo crítico do iluminismo é a vaidade, isto é, a forma com que as pessoas passavam a se comportar, como se o seu gozo individual estivesse acima de tudo. Para Rousseau, quando passamos a querer ser de um jeito para agradar as pessoas, passamos a ser falsos, a ser hipócritas; a deixar de ser o que éramos originalmente, isto é, autênticos. Isso criaria o que ele chama de “sociedade de atores” – no sentido de uma atuação. Na mesma esteira, coisas que antes eram luxos passam a se tornar necessidades. Desejas algo e quando o obtém, tampouco sentes prazer algum por isto, porém se os perdes isso lhe dói. Assim, abandonando nossa busca por uma vida autêntica, honrada, enobrecedora, passaríamos a suprir esse abdicar através da distinção social dado pelas nossas riquezas.

A corrupção para ele é um tema importante, é interessante notar que há bastante diferença entre a ideia que temos hoje onde corrupção é vista quase como apenas um sinônimo para a apropriação indevida de bens. Em seu pensamento a corrupção é aquilo que distancia o ser humano dos valores antigos: a glória, a virtude, a honra, e, finalmente, a própria natureza humana. Nesse ponto fica claro que para Rousseau existe um avanço na corrupção paralelamente ao avanço da desigualdade social. Logo, a sociedade burguesa, a sociedade da mercantilização seria a sociedade que teria como premissa a desigualdade e, portanto, a própria corrupção como seu derivado. Um homem que não enxerga em seu semelhante como sendo seu igual comum, não pode ver problema em agir indevidamente, mesmo que isso vá contra o bem público. Ou seja, o que Rousseau vislumbrava era uma sociedade futurística onde os interesses privados se sobreporiam ao bem comum e acabariam por degenerar toda a espécie humana.

Entretanto, ainda partindo da sua caricatura da natureza humana, o filósofo acreditaria que esta busca vil acabaria por ir contra nossa natureza também no que tange a liberdade. Para Rousseau, parte da natureza do ser humano consiste em lutar contra a desigualdade e se sentir instado a agir contra a opressão. Os seres humanos estariam sendo pervertidos em sua busca pelo desejo natural de liberdade e de ir contra o sofrimento alheio, esse tipo de perversão se atesta quando Rousseau aponta que os ricos são felizes pelo fato de existirem pobres. Esse debate entre “liberdade x igualdade” não nasce com Rousseau, mas permeia toda sua obra. É fato que dentro da tradição iluminista o conceito de liberdade acabou sendo posto num pedestal, ao mesmo tempo em que a ideia de igualdade foi posta na margem da discussão, os motivos são claros: a ideia de liberdade iluminista atendia aos interesses de uma dada classe social em ascensão na Europa do século XVIII, quando se falava em igualdade o máximo que se ia era dentro de uma lógica jurídico-formal, nada parecido com as críticas radicais apresentadas por Rousseau. O que podemos concluir de tudo isso? A primeira conclusão é que Rousseau acreditava estar diante do nascimento de uma sociedade despida de um ideal ético, o único ideal presente na sociedade burguesa seria aquele ligado ao acréscimo pessoal, ao acúmulo individual, seja de prestígio, bens ou poder, em detrimento do bem comum, da busca pela diminuição da desigualdade. A segunda é que talvez pela primeira vez na história da humanidade os seres humanos passaram a construir uma sociedade que tem como base a desumanização.

No século XIX, Karl Marx surge talvez como um herdeiro direto do pensamento de Rousseau, suas origens iluministas e ao mesmo tempo críticas são a marca de sua “herança” para como filósofo franco-suíço. A marca mais clara da filiação de Marx a obra de Rousseau sem dúvidas é a crítica a sociedade burguesa. Todavia, enquanto aquele limitou-se a uma crítica moral, indo no máximo a uma idealização da natureza humana, este operou uma crítica dentro das condições concretas que organizavam as classes sociais dentro da nova sociedade. Porém, é inegável que a tradição crítica de Rousseau, marca tão vívida do pensamento moderno, representou um sólido assentamento dentro do edifício teórico de Marx. E quando digo “crítica” não me refiro a um conceito genérico de crítica, mas a uma crítica específica que pode ser nitidamente contrastada dentro do pensamento dos dois autores. Trata-se de uma crítica às classes dominantes, ou mais limitadamente, ao modelo de sociedade mercantil. E por que essa crítica, do ponto de vista teórico, é importante para nós? Ela é importante porque apresenta uma filiação intelectual dentro do racionalismo, isto é, dentro da busca pela conquista da razão sobre o mundo passou a existir uma distinção entre o que se entende por “racional”, o que acabou por ir ao encontro de entender as limitações e contradições da razão e, logo, permitir a existência de uma razão consciente crítica, ou seja, não de uma consciência simples de si, mas de uma razão que entende, que é ciente das próprias contradições do pensamento racional seja na esfera individual de cada um, seja na esfera coletiva, mas sobretudo, consciente do papel social na forma de moldar as relações humanas. Uma razão que é consciente mesmo dos limites da própria ideia de razão.

Ora, essa tradição crítica não era comum a todos os autores iluministas, que em grande parte tendiam a mitificar a razão quase como uma entidade espiritual dotada de sua própria vontade. Uma razão que por muitos seria incarnada pelo Estado, ao ponto de justificarem as práticas despóticas dos tiranos como sendo “desígnios da razão universal”. Um dos pontos mais nítidos desse tipo de pensamento é quando nos remetemos ao conceito de progresso, fundamental para os iluministas. Enquanto esses pregavam que a razão levaria a humanidade ao patamar do progresso pleno, críticos como Rousseau e Marx enxergavam os limites desse pensamento. Evidentemente, tanto uns quanto os outros viam que o progresso social detinha relações diretas com a razão, isto é, na medida em que a humanidade passava a se empenhar em racionalizar processos, matematizar atividades, organizar e planejar relações sociais sejam elas através do comércio, das ações do Estado, ou dos próprios costumes passou-se a perceber que a atividade econômica crescia, e junto a ela inúmeros benefícios sociais tais como o aumento do conhecimento científico, técnico, da produção material etc. isso fez com que o prestígio do pensamento científico imperasse sobre o puramente ético e religioso. Entretanto, esse progresso material não pode ser encarado como sinônimo de avanço moral, e era isso o que os autores críticos da modernidade apontavam.

E de fato, eles estavam certos. Iniciemos pela comparação entre duas visões apontadas por Rousseau e Marx. Como apontado mais acima, Rousseau já no século XVIII identificara que o predomínio dos bens materiais e do dinheiro levaria o ser humano a perfídia, a uma forma de existência vil e vazia, uma existência de aparência, que vive em função da opinião do outro, mas precisamente vive em busca de uma prática corrupta, do acúmulo de dinheiro e da perpetuação da desigualdade social. Vejam bem, fala-se em perpetuação da desigualdade social não como um problema residual do processo de enriquecimento, mas de uma necessidade própria da atividade de busca da felicidade. Percebem a tragédia? Sou feliz porque tenho mais do que outros, sou bem sucedido porque sou um vencedor num mundo de fracassados. Sou superior ao meu semelhante. Rousseau não disse, e nem poderia dizer já que na sua época a estrutura do capital não era tão bem montada quanto passou a ser na época de Marx, mas aquilo que ele chama de “corrupção” é na verdade o dever de todo o burguês, dito de outra forma, é o predomínio do dinheiro, do capital, dos “negócios” sobre as vidas humanas. Não é por mero acaso que na principal obra de Marx – O Capital – o primeiro capítulo traga em si uma análise que estabelece uma estrutura psicossocial integrada ao modo de produção da mercadoria. Ora, o que é a mercadoria se não um signo de um tipo de sociedade que desumaniza os seres humanos, isto é, que trata os seres humanos como meras engrenagens em uma máquina. Esse fenômeno de desumanização é apresentado como algo naturalizado e tão caro ao funcionamento do sistema uma vez que ele é a forma pelo qual o sistema se auto justifica, “se tudo sempre foi assim porque teria eu que questionar?”. Esse tipo de estrutura desumanizadora degenera os seres humanos da sua busca pela emancipação, limita-nos a pura vaidade, a desejos frívolos, transforma-nos em monstros egoístas e mesquinhos.

O conceito de coisificação que deriva da obra de Marx é crucial para a compreensão da atual situação da humanidade, e me permitam apontar porque. Diante das incertezas para com o futuro, em plena disseminação do medo e do pânico por conta da pandemia de covid-19, seria fácil simplesmente apontar esse infortúnio como sendo a marca clara da distopia, mas não, é preciso entrarmos no cerne da questão, e qual seria? A marca da sociedade atual sem dúvida são as redes sociais. Em muitos assuntos e temas nossos dois pensadores se oporiam, talvez Rousseau seja excessivamente moralista quando fala da natureza humana empática – embora hoje saibamos que fisiologicamente os chamados “neurônios espelho” exercem a função de fazer com que nós identifiquemos rapidamente as emoções e as expressões dos outros, sejam elas no campo da fala, do gestual ou comportamental, o que prova uma “natureza empática” humana -, algo que evidentemente Marx não compactuaria, mas, de fato, se existe algo que ambos os pensadores têm em comum é o fato de ambos constatarem que a sociedade burguesa desumaniza os seres humanos.

Agora pensar na sociedade do século XXI sem pensar nas redes sociais seria como pensar no feudalismo sem pensar no papel da Igreja, e porque comparo a Igreja? Evidentemente porque era no seio da vida religiosa que se compartilhava a vida em comunidade. Essa reflexão ainda é muito pouco expressa, em parte porque o fenômeno é demasiadamente recente e em parte também porque todos estamos envolvidos no processo, mas o fato é que no curso de pouco mais de 15 anos as redes sociais passaram de poucas centenas de milhares para bilhões de pessoas como suas usuárias. Não trata-se de algo meramente trivial, as redes sociais são uma expressão exteriorizada de como a sociedade burguesa, a mesma que era vislumbrada pelos nosso dois pensadores, entende-se a si mesma e se expressa. A corrupção, encarada como a busca pela ostentação individual, pela exibição de uma imagem puramente de fachada, da perfídia que fala Rousseau é a base das redes sociais, e aqui é preciso ir além da mera imagem do usuário, mergulhando no modo de operação das redes sociais enquanto empresas que almejam o lucro máximo.

Neste instante estamos diante de ao menos duas ou três empresas que conectam bilhões de pessoas ao redor do mundo, elas acumulam dados pessoais, enclausuram as pessoas dentro de “bolhas sociais” e pregam a lógica do vício como forma de exploração. Ao nos depararmos com o conceito de coisificação de Marx fica nítido como existe uma correspondência direta entre aquilo que ele entendia como sendo um “fetiche da mercadoria” e a maneira como as empresas detentoras das redes sociais veem seus usuários. Dentro da lógica das redes sociais nós somos um tipo de mercadoria extremamente valiosa, e para alcançar tal mercadoria elas utilizam uma estratégia de enclausura social, isto é, para nos manter entretidos e ligados o máximo de tempo tudo pode ser propagado com esse objetivo, pouco importando se trata-se de um conteúdo verdadeiro ou não. As redes sociais não têm compromisso com a verdade, mas apenas com o lucro. Elas instrumentalizam as pessoas e suas emoções a fim de enriquecerem seus proprietários, pregando a competição e a superficialidade. No limite temos uma inversão aqui: ao invés das pessoas dominarem as redes sociais, são as redes sociais que dominam as pessoas.

Aqui surge a necessidade de reforçarmos uma questão: todo negócio produz algo, mas o que produz as redes sociais? A resposta é simples: elas produzem usuários, nós somos o seu produto, isto acontece na medida em que o que elas vendem é a nossa atenção a terceiros. Mas toda essa breve constatação é apenas a “nata que beira sobre o leite”. Voltemos aos nossos dois pensadores, mais acima foi exposto que a nova sociedade moderna nascente se orientava pela reprodução de valores éticos historicamente reprovados. Uma vida voltada unicamente ao acúmulo de bens, era vista como algo que desviava o homem da sua busca pela honra e virtude. Para a Igreja, histórica instituição avessa aos interesses puramente mercantis, a busca pelo dinheiro retirava o ser humano do caminho da paz e do bem, impregnando em seu espírito a vilania e a sujeira da vida mundana, rogava-se que uma vida puramente “materialista” naturalmente corrompia o homem. Certamente essa lógica de pensamento influenciou Rousseau, muitos vêm no “conservadorismo” de Rousseau um saudosismo por um tempo que nunca foi real.

Realmente devemos apontar essa crítica a Rousseau, mas isso não permite não compreender uma questão fundamental apontada por ele, a saber, o fato de que na medida em que a humanidade vive apenas voltada para a aparência, para as relações puramente frívolas e vis isso cria uma sociedade que deixa de reconhecer a si mesma, que deixa de conhecer seus reais problemas, que nega princípios invioláveis tais como a busca pela liberdade, pela igualdade e pela emancipação humana. No limite, para Rousseau, uma sociedade que chega nesse nível está diante do seu inevitável declínio, é interessante imaginar que o declínio catastrófico das diversas civilizações do passado se deu a partir do seu apogeu territorial, técnico e social. Seria como se o suposto “sucesso” refletido através do “progresso” inebriasse a sociedade e a auto iludisse, criando uma sociedade que se move quase como um carro sem piloto. Impossível não pensar no conceito de reificação apresentado por Marx, num tipo de sociedade que vive de alienação múltipla e contínua de seus integrantes.

Vejam, atualmente a sociedade passou a ser um palco onde o prestígio da aprovação pública é almejado a ferro e fogo por seus participantes, queremos mais fama, queremos mais glamour, queremos mais espetacularização. Uma sociedade que se auto embriaga com suas postagens só pode ser uma sociedade que é composta por integrantes dentro de um abismo existencial. Percebam, preciso do outro cada vez mais, preciso cada vez mais da sua aprovação, da sua chancela, de como me visto, me comporto, de como ser enquanto pessoa. Cada like equivale a o petisco que o treinador dá a besta, um pequeno alento que nos conforta como pessoas. Mas vejam, pra que serve toda essa estrutura no final, no limite? Para que um pequeno punhado de acionistas de empresas digitais enriqueça e movimente a sua máquina capitalista. Todas nossas atividades passando a integrar um mercado, que não vende mercadorias típicas, mas pessoas na forma de usuários que serão potenciais consumidores, no limite, o que se vende é o nosso próprio tempo de vida. Vejam o absurdo dessa sentença: todas nossas expressões sensíveis, nossas imagens, as coisas que pensamos e escrevemos nossas preferencias e mesmo a nossas formas básicas de ser estão sendo racionalmente capturadas, catalogadas, arquivadas e vendidas como dados. Ora, seria pueril ter ciência disso e achar que estamos apenas “vendendo nossas informações”, um esquema de tamanha proporção não trata-se de apenas uma via de mão única, muito pelo contrário, as redes sociais não se contentam a apenas “receber” mas a também orientar a maneira como devemos ser.

Reflita sobre o seguinte: em algum momento vocês já se sentiram pessoalmente mal por alguma reprovação nas redes sociais? Se sim, isso demonstra como nós estamos nos orientando em função de algo, não mais como sujeitos, mas como sujeitados. Outro exemplo, vocês já pararam para analisar quanto tempo gastam nas redes sociais? Não digo literalmente “interagindo” com algo, mas simplesmente descendo a linha do tempo para que ela seja atualizada? Uma ação repetitiva que parece, de fato, nos fazer acreditar que estamos “ganhando alguma coisa”. Mas estes são meros exemplos individuais, levemos a reflexão a um âmbito macro social. Atualmente as redes sociais definem o que é a “verdade”, e isso é feito não apenas simplesmente mentindo às pessoas, mas definindo as possibilidades daquilo que elas podem saber como verdade. Esse detalhe sutil é crucial, as redes sociais definem o que sabemos e recebemos com base naquilo que elas definem que seja de nosso interesse, é um típico movimento que visa o vício e a auto validação de nossa própria opinião, a analogia mais clara disso seria a de uma máquina caça niqueis que sempre nos fornece moedas para que continuemos a jogar. Com efeito, essa é a melhor forma de entender como é o princípio de “engajamento” usado pelas redes. Essa forma de operação elevada a um país inteiro traz consequências catastróficas, é a forma mais clara de manipulação em massa.

Com certeza, as redes sociais não inauguraram essa forma de manipulação, a respeito do que já faz a televisão e os meios de comunicação em geral, mas é fato que em nenhum momento na história da humanidade essa forma de manipulação foi tão impessoal e intrinsecamente ligada a validação de nosso próprio ego. A forma mais danosa de debate é aquele que não tem espaço para o contraditório. Sem espaço para tal o que encontramos é um ambiente livre para o obscurantismo, para um pensamento altamente destrutivo e irracional. É quase como se as redes sociais formassem uma sociedade submetida a um mecanismo de ilusão coletiva, de formação de uma distração que inibe a compreensão dos reais problemas que nos cercam e que se retroalimentam dessa própria enganação. Essa sociedade, parcialmente deslumbrada pelos críticos da modernidade, parece se impor sobre nós neste exato momento de uma forma tanto mais massacrante quanto, aparentemente, sem escapatória. As redes sociais traduzem de forma nítida o que é uma sociedade do espetáculo, mas vão além, criando ao mesmo tempo um instrumento de flagrante controle social.

Aquilo que nem em seus mais terríveis pesadelos os críticos da modernidade concebiam hoje se apresenta a nós como concretamente possível de ser criado, isto é, uma sociedade de controle total, inclusive, de nossa própria forma de pensar. A isto chamo de “era da distopia” uma era em que o controle social pode – e efetivamente o é – ser feito da maneira mais tirânica possível, porém, aquilo que forma o lado distópico não é o fato de isso poder ser feito, não, mas que nós aceitamos isso como sendo algo bom para nós. Nós estamos a abrir mão de nossa liberdade de bom grado – tal como Rousseau apontou – porque nos identificamos com a própria perfídia assentada sobre o ato da tirania. Vejam, quais são os nossos principais exemplos literários sobre distopias? Podemos citar Isaac Asimov e sua ideia de “psico-história”, isto é, uma ciência fictícia que criava previsões de comportamento da massa através da aplicação da estatística, da psicologia e da economia. Para Asimov, essa ciência seria uma nova forma de “engenharia social”. Qual é o tamanho da nossa surpresa ao compreender que isso atualmente se chama “big date” e é operado principalmente pelo ofício do “analista de dados”. Exatamente isso, uma série de técnicos passam horas analisando nossos dados, atualizando seus algoritmos como forma de saber quais serão nossas preferencias a fim de poder nos influenciar em nossas decisões. Não é mais ficção, é a “alta tecnologia”. Outro exemplo? Aldous Huxley o homem que pintou um quadro presciente de nossa era. Para ele, o caminho da humanidade não seria o “totalitarismo despótico” do qual George Orwell relata em suas obras, principalmente, 1984, mas a aceitação passiva da dominação. Enquanto os pessimistas vislumbravam um mundo autoritário cuja violência arbitrária seria praxe para os governos, Huxley foi para o outro lado, o da democracia como uma mera caricatura.

Tal caricatura seria o mero involucro democrático de um sistema que se baseia no relativismo e na mentira sistemática, onde o absurdo e o chocante rapidamente são naturalizados. Vejam, olhem a atual situação do mundo e seus líderes negacionistas, que pregam o elogio à ignorância como forma de virtude! Observem, ao longo da história temíamos que um governo pudesse proibir ideias e livros, mas nunca imaginámos que a proibição perderia sentido na medida em que as próprias pessoas não os vissem mais como necessários, esse é um resumo do pensamento de Huxley, o desinteresse e a aceitação tácita da massa para com seus déspotas. Com as atuais redes sociais é possível criar tudo isso, e de fato se olharmos para o Brasil e os Estados Unidos isso está a ocorrer agora. Não se trata de constatar um porvir, um futuro tenebroso, mas de constatar um presente. Agora, evidentemente isso não se impõe como um absoluto, tal como pensava-se através do conceito de totalitarismo – isto é, um poder total que controla tudo e todos, que não escapa nada, uma forma de poder quase que omnipresente -, mas como um dos cenários que opera dentro da sociedade de massas. Ou seja, embora uma parcela da massa esteja sob esse controle, isso não significa que as contradições presentes na luta de classes não escapem a esse domínio virtual, o que demonstra que a luta de classes permanece como sendo uma fonte para romper com toda essa estrutura. Isso é importante, porque se assim não o fosse, não conseguiríamos nem ao menos pensar essa estrutura, tecnicamente nem este mesmo texto poderia ter sido escrito.

Constatar que vivemos uma época distópica não equivale a dizer que a derrota é iminente ou que ela já foi consumada. Trata-se de um exercício de percepção realista do mundo atual, que nos alerta que a atual sociedade atravessou uma fronteira para aquilo que passou a ser aceitável. Essa constatação nos força a também transpormos as nossas. Se a sociedade caminha no sentido do orgulho da irracionalidade, precisamos redirecioná-la para o caminho da razão crítica. Evidentemente, esse caminho não será feito numa simples batalha textual ou argumentativa, mas dentro de um embate físico sobre o campo da política. A humanidade vive um momento de decisão para com suas premissas naturais, sobretudo com sua premissa de conservação enquanto seres vivos. Estamos diante de talvez a maior tarefa que a humanidade já teve que enfrentar trata-se da catástrofe climática e ambiental que se aproxima. A busca por uma mudança de nosso modo de produção a fim de frear as abruptas mudanças climáticas que estamos provocando deve ser encarada como uma questão de vida ou morte. Não temos espaço para um surto coletivo tal qual este, que mistifica a realidade com suas “pós-verdades” e conspirações fantásticas. Esse momento crucial da humanidade precisa ser vencido pela lucidez e a compreensão da problemática que estamos passando em um nível hegemônico, isto é, pela massa humana que se faz presente ao redor do mundo.

Adianto-me a lhes dizeres que o “bê-á-bá” da mudança não é único e nem sairá da cabeça de um singular guru letrado. Também reafirmo que a fronteira entre o ficcional e real pode ter sido solapada, mas ela ainda existe. O mundo ainda é o que é: pessoas buscando sobreviver, tal como quaisquer outros seres vivos almejam. Aceitemos o caráter catastrófico de nosso futuro para que consigamos nos lançar em seu resgate, essa estrutura está aí, podemos vê-la e senti-la, mas, diferentemente do que disseram os distópico, nós podemos destruí-la. Não se trata de tola esperança farsesca, mas da constatação do contraditório presente na realidade humana, elemento que atesta o verdadeiro real e que grifa que a distopia jamais será total e integral. A vos que por específica ventura pôde ter a fortuna de compreender o opróbrio que nos intimida exorto-lhes para que façamos da “distopia” a nossa utopia.

Publicado originalmente em: https://rodriguesrafael.tumblr.com/post/631159773433331712/no-s%C3%A9culo-xviii-o-fil%C3%B3sofo

Referências:

ASIMOV, Isaac. Fundação e império. Aleph, 2015.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Livraria do Globo, 1945.

MARX, Karl. Livro primeiro: o processo de produção do capital. Tomo I (Prefácios e Capítulos I a XII). O capital: crítica da economia política, v. 1, 1983.

___________. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo Editorial, 2015.

ORWELL, George. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 1984.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Discurso sobre as ciências e as artes: discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.” Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret (2010).

O Dilema das Redes (The Social Dilemma). Direção: Jeff Orlowski, Produção: Larissa Rhodes, Estados Unidos, Netflix, 2020, Online.

Marcado como:
distopia / teoria