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TEORIA

Karl Marx: crítica à religião e crítica à crítica à religião (1844)

Este é o décimo-primeiro texto de uma série sobre a vida de Marx.

Wesley Carvalho, de Niterói, RJ

“… a fim de que ele gire em torno de si mesmo
 e, assim, em volta de seu verdadeiro sol.”

No nosso texto anterior, vimos aspectos pessoais e políticos da vida de Marx em Paris, entre 1843 e 1844. Daqui para frente, vamos expor algumas das principais ideias que Marx publicou e desenvolveu ao longo de 1844. No presente texto, estaremos restritos à questão da religião.

Na Europa da década de 1840, de uma forma geral, o anticlericalismo era bastante difundido entre liberais e radicais. Protestantes, católicos ou ateus, setores à esquerda tinham grande hostilidade a instituições eclesiásticas sendo essa inclusive uma das principais expressões do radicalismo político. (01) A questão tinha contornos bem específicos na Alemanha e já vimos, apesar da brevidade, como e por que a religião estava no centro do debate político nesse país (02) , cabendo por ora apenas recuperar alguns elementos do cenário intelectual de finais dos anos 1830 e início dos anos 1840. Para alguns pensadores, o protestantismo teria teor iluminista e seria uma das chaves para que o Estado agisse de forma racional e ética resolvendo os problemas referentes à liberdade política e justiça social, enquanto o catolicismo significaria um reforço obtuso do absolutismo (poderes concentrados no rei) e retrocesso cultural. No início da década de 1840, outros intelectuais alemães foram tendo posturas mais radicais enxergando que o ateísmo seria fundamental para construir a liberdade e a razão nas esferas política e social. Não poderia haver conciliação entre, por um lado, a religião e, por outro, a ciência, a filosofia e a política. Assim, estavam lançando um desafio politico à monarquia prussiana, que se sustentava, de forma crescente com seu novo rei, na ideia de que seu poder era de origem divina. Frederico Guilherme IV, para quem a Revolução Francesa (iniciada em 1789) era a besta do Apocalipse, declarou sua oposição a uma constituição dizendo que ele não permitiria que um pedaço de papel estivesse entre “nosso Senhor Deus” e seu país. Com tons cruzadísticos, (03) aqueles foram anos de recrudescimento da ideologia religiosa e do absolutismo na Prússia, que ampliou sua repressão sobre muitos destes intelectuais. A perda de posições universitárias, o fechamento de jornais e o exílio acabaram sendo destinos comuns para uma geração de pensadores críticos, entre os quais, Marx. 

No início da década de 1840, as ideias socialistas e comunistas vão dando seus primeiros passos na Alemanha e se desenvolvendo com mais repercussão na França. Recentemente influenciado por estas perspectivas, no início de 1844, Marx publicou dois textos no periódico que organizava em Paris, os Anais Franco-Alemães: “A questão judaica” e “Crítica à Filosofia do Direito de Hegel – Introdução”. Ali, pela primeira vez se identificando publicamente com o comunismo e o proletariado, Marx procurou dar novos termos ao debate sobre religião (que ele, pelo menos desde 1842, considerava ter um foco estreito).(04) Em ambos os escritos, Marx mantém a ideia de que a religião cumpre um papel negativo politicamente, associando-a à ignorância e à alienação da humanidade. (05) Entretanto, expõe também que estão enganados seus colegas que pensam ser a crítica da religião algo central na política. Haveria algo mais profundo, que estaria sendo perdido de vista. 

Na “Introdução”, Marx aponta que a crítica à religião na Alemanha havia sido muito bem construída. A filosofia havia demonstrado que a religião é a expressão de uma humanidade alienada, embrutecida, oprimida. É uma felicidade ilusória e só existe por conta da miséria. É uma consciência errada sobre o mundo, é o sentimento da humanidade que ainda não conquistou a si mesma. E também um recurso para suportar um mundo de sofrimento. “Ela é o ópio do povo”. (06)

Entretanto, essa humanidade que sofre não existe abstratamente, mas em um contexto onde devem ser considerados o Estado e a sociedade que produzem a religião. (07) A crítica, portanto, não deve se dirigir apenas à ilusão, mas à condição que faz as pessoas necessitarem de ilusão. Por isso, é  preciso fazer não apenas a crítica do céu, mas a crítica da terra; não apenas a crítica da religião, mas a crítica do direito; não apenas a crítica da teologia, mas a crítica da política.

Ao pensar dessa forma, a crítica pode fazer com que a humanidade gire em torno de si mesma, descartando a ilusão do giro de um sol, a religião (08): “Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem. […] A crítica da religião tem seu fim com a doutrina de que o homem é o ser supremo para o homem, portanto, com o imperativo categórico de subverter todas as relações em que o homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezível”. (09) Aqui, Marx a um só tempo valoriza o trabalho intelectual da crítica (que tem que se apoderar das massas) e entende que o problema de fundo é prático, material: “A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma…”. E essa emancipação só poderia ser realizada pelo proletariado – mas isso é objeto de nosso próximo texto.

Bruno BauerNo outro trabalho publicado nos Anais Franco-Alemães, “A questão judaica”, Marx também discute religião. Esse texto foi escrito contra Bruno Bauer, antigo professor e amigo de Marx da época da faculdade. Bauer criticava os judeus que lutavam pela liberdade religiosa (ameaçada de várias formas na Alemanha), considerando esta uma postura limitada e mesquinha. Apontava que os judeus deveriam, em realidade, lutar pela libertação política da humanidade de uma forma geral. Mais que isso, para Bauer, os judeus precisariam abandonar a sua religião. Aliás, seria com o fim de todas as religiões que poderia haver um Estado racional e igualdade civil. Bauer assim entende a religião como obstáculo para maiores realizações políticas. “Se os judeus querem se emancipar, dizia, devem começar por emancipar-se de sua própria religião; não faz sentido o judeu cobrar do Estado uma postura laica enquanto ele próprio não abandonar o judaísmo”. (10)  Como sintetiza o próprio Marx, “De acordo com Bauer, o homem deve renunciar ao “privilégio da fé” para poder acolher os direitos humanos universais” (11)

Marx tem uma outra compreensão teórica da sociedade, o que o leva a pensar de forma contrária a de Bauer: “Não transformamos as questões mundanas em questões teológicas. Transformamos as questões teológicas em questões mundanas.” Tal como no outro texto que Marx publicou nos Anais, aqui insiste em que se observe não o giro do sol ilusório da religião, mas o mundo das relações em que as pessoas estão inseridas. Como Bauer, Marx entende a religião de forma negativa e que deveria ter um fim. Porém, para Marx, o fim da religião só se daria com  mudanças relacionadas à propriedade privada e à esfera econômica. Inclusive, para Marx, não bastaria se ter um Estado “ateu” (laico), já que a religião poderia continuar existindo no âmbito privado. O judaísmo que deve ser combatido, para Marx, não é o religioso, mas aquele que tem a ver – e aqui Marx opera com um estereótipo ofensivo (12) – com os negócios, isto é, com funções básicas da sociedade burguesa. (13) Inclusive por isso, para Marx, liberdades políticas e religiosas, apesar de serem importantes, não são o fundamental. Como pensador crítico, agora elege outros alvos como o centro do problema: propriedade privada, dinheiro, negócio e a ação egoísta (14) ligada a estes elementos. Sob a influência de seu colega alemão Moses Hess, ele diria, por exemplo, em um óbvio paralelo com a crítica à religião, que o dinheiro “…é a essência do trabalho e da existência humanos alienada do homem; essa essência estranha a ele o domina e ela a cultura.” (15)

Há um outro elemento importante da postura de Marx a respeito da religião. Apesar de criticá-la e apesar também de apontar que as liberdades religiosa e política não devem ser o centro da política revolucionária, Marx atuou em 1843 junto a uma associação de judeus redigindo uma petição parlamentar sobre direitos. Conquistas de liberdades civis significariam para Marx abrir “buracos” para inserir visões racionais dentro do “Estado cristão” (ou seja, o Estado absolutista ideologicamente referenciado no cristianismo). (16)

Marx ainda não tem nestes escritos do começo de 1844 uma teoria sofisticada das questões econômicas. (17) Aliás, as referências teóricas que ele elogia nesse momento seriam alvo de sua discordância meses depois. Mas o importante é que agora Marx tem seus olhos voltados para aquilo que será seu objeto de estudos e reflexão pelo resto da vida. Com isso, ele muda os termos do debate político. A crítica à religião, de que ele tanto se ocupou nos anos finais da faculdade (18), estava longe de bastar. O estudioso Daniel Bensaid resume assim o texto de Marx: “O que ele combate […] são as ilusões de um ateísmo que é apenas uma crítica abstrata e ainda religiosa da religião, que permanece no plano não prático das ideias.” (19) É de se notar que franceses, com quem Marx agora convivia, achassem estranho que os alemães exilados se ocupassem tanto da questão do ateísmo. Na França, o cristianismo era mais reapropriado do que criticado pela esquerda, havia uma tradição jacobina religiosa e socialistas e comunistas reivindicavam o cristianismo como fundamento de suas teorias. (20)

No nosso próximo texto ainda estaremos ocupados com as publicações de Marx nos Anais Franco-Alemães. Veremos como esse jovem de 25 anos pensava o Estado, a revolução e o proletariado.

 

NOTAS

1 –SPERBER, Jonathan, The European Revolutions, 1848–1851, Cambridge : New York: Cambridge University Press, 2005, p. 81

2 – Ver o nosso texto “Karl Marx: ateísmo e política na Prússia (1836-1841)”

3 – SPERBER, Jonathan, The European…pp. 75-6.

4 – JONES, Gareth. Karl Marx: greatness and illusion. Cambridge: Belknap Press, 2016. p. 132

5 – Haveria para Marx, entretanto, um outro papel da religião: ela é também uma forma de lidar com um mundo de angústia ou mesmo, como destaca Löwy, um protesto contra o mundo. LÖWY, Michael. “Marxismo e religião: ópio  do povo?” IN:  BORON, Atilio; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, Sabrina. A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2006  p. 272-5.

6 – MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 145.

7 – “Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.” MARX, Karl. Crítica… p. 145

8 – MARX, Karl. Crítica… p. 146

9 – MARX, Karl….p. 151-2

10 – FREDERICO, Celso, O jovem Marx 1843-44: as origens da ontologia do ser social, São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 95.

11 – MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. LUKÁCS, György. “O jovem Marx. Sua evolução filosófica de 1840 a 1844” IN: O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. p. 166

12 – Para Marx, o judeu é o protótipo do indivíduo egoísta da sociedade burguesa e é neste sentido que o judaísmo é estereotipado e criticado. Essa identificação era bastante comum à época de Marx mesmo entre autores judeus. É entretanto incorreta, como pontua Bensaid, mesmo considerando dados de que judeus controlavam vários dos principais bancos da Alemanha, ou de que em grande proporção se dedicavam a atividades mercantis (cerca de metade dos judeus da Prússia trabalhava em comércio, e um terço de comerciantes da Renânia eram judeus). De qualquer forma, foram muitas as acusações de que Marx seria um antissemita. Algumas delas inclusive fantasiando a respeito de uma repressão religiosa familiar durante a infância. Uma outra chegou a ver no texto de 1844 um “apelo ao genocídio”. O tema é discutido com propriedade por Daniel Bensaid destacando o anacronismo das suposições de antissemitismo do Marx. BENSAID, Daniel. “Posfácio” IN: MARX, Karl, Sobre a questão judaica… Mesmo biógrafos antipáticos a Marx, como Sperber e Jones, não reforçam uma identificação rasteira entre Marx e antissemitismo, mas fazem considerações bastante ponderadas e contextualizadas. SPERBER, Jonathan. Karl Marx…pp. 107;110-6; JONES, Gareth. Karl Marx….pp. 165-7.

13 – “A emancipação em relação ao negócio e ao dinheiro, portanto, em relação ao judaísmo prático, real, seria a autoemancipação da nossa época.” “Uma organização da sociedade que superasse os pressupostos do negócio, portanto, a possibilidade do negócio, teria inviabilizado o judeu.” “No momento em que a sociedade conseguir superar a essência empírica do judaísmo, o negócio e seus pressupostos, o judeu terá se tornado inviável, porque sua consciência não terá mais nenhum objeto, porque a base subjetiva do judaísmo, a necessidade prática, terá sido humanizada, porque o conflito entre a existência sensível individual e a existência do gênero terá sido superado. A emancipação social do judeu equivale à emancipação da sociedade em relação ao judaísmo.” MARX, Karl. Sobre a questão judaica..

14 – O “egoísmo” fazia parte do diagnóstico de  outros intelectuais próximos a Marx como Ludwig Feuerbach e Moses Hess . LÖWY, Michael, A teoria da revolução no jovem Marx, Petrópolis: Vozes, 2002, pp. 97-8.

15 – FREDERICO, Celso. O jovem Marx…p. 101. BENSAID, Daniel. “Posfácio” IN: MARX, Karl. Sobre a questão judaica.. LÖWY, Michael. A teoria da revolução… pp. 96-7.

16 –  MCLELLAN, David. Karl Marx: his life and thought. Londres: the Macmillan Press, 1973. p. 86. Há julgamentos, a nosso ver equivocados pelo exposto no parágrafo, de que Marx desprezava a questão das liberdades civis  em 1844. Um exemplo está no livro JONES, Gareth. Karl Marx…. Daniel Bensaid critica essa posição nos textos de apresentação e posfácio que escreveu em MARX, Karl. Sobre a questão judaica…

17 –  Sobre os limites que a “ausência da Economia Política” acarreta para a reflexão política de Marx nos textos dos Anais, ver FREDERICO, Celso. O jovem Marx…p. 124-5.

18 – Ver nosso texto “Karl Marx: ateísmo e política na Prússia (1836-1841)”

19 – BENSAID, Daniel. Marx, manual de instruções. São Paulo: Boitempo. Capítulo “De que morreu Deus?”. Adiante, interpretando para além dos próprios termos de Marx no texto, Bensaid dirá: “O ateísmo filosófico é, assim, a ideologia da burguesia esclarecida, que percebe a necessidade de liberar a economia dos entraves da religião sem tocar na ordem social. Ele encontra no positivismo e no culto ao progresso sua expressão mais persuasiva.”

20 – JONES, Gareth. Karl Marx…p.148-9; MCLELLAN, David. Karl Marx….p.79; SPERBER, Jones. Karl Marx….p. 105. Décadas depois, Engels, considerando o problema do ateísmo ultrapassado, criticaria figuras de esquerda que pretendiam “transformar pessoas em ateias”. BENSAID, Daniel. Marx, manual de instruções…