Somos uma mandata que entende o racismo como estruturante de todas as nossas relações e, portanto, temos a luta antirracista como pilar fundamental. Partindo disso, queremos compartilhar algumas reflexões.
Vivemos um período de avanço conservador, da extrema direita e de retrocesso da já frágil democracia brasileira. A política de ódio e da morte, o autoritarismo e o fundamentalismo andam de mãos dadas. Há uma explícita ameaça de fechamento do regime em curso e o impacto deste momento, num país estruturado pelo racismo, é vivenciado de forma muito mais aguda pelo nosso povo negro.
Negros e negras das favelas, periferias e quebradas nunca foram plenamente amparados pelas instituições brasileiras. Essa situação é aprofundada nesse momento grave da história: morrem mais na fila dos hospitais sem atendimento numa pandemia global; vivenciam o desemprego e a informalização do trabalho; estão entre as que não vão se aposentar; são as vítimas da absurda letalidade policial no Brasil, em especial no estado do Rio de Janeiro. O enxugamento do já frágil Estado de Direito se combina perfeitamente com o alargamento do Estado Penal Policial no aprofundamento de um racismo histórico e estrutural. Portanto, enfrentar a extrema direita, o fascismo e a ameaça de fechamento de regime é tarefa urgente na construção de um projeto de liberdade e justiça social para população negra. Esse projeto é necessariamente antirracista e, em nosso ponto de vista, anticapitalista e socialista.
Nesse sentido, a candidatura do companheiro Wesley Teixeira a vereador em Duque de Caxias é uma necessidade destes tempos. Jovem, negro, evangélico que enfrenta o fundamentalismo religioso, periférico, Wesley encarará nesta eleição o desafio de se opor à política genocida acirrada nos últimos anos. E fará isso sendo um dos seus principais alvos, ainda mais tratando-se de um território dominado por milicianos, poderosos e coronéis da velha política elitista e racista.
Porém, se é fundamental enfrentarmos de frente a velha elite racista, que nos remete a uma lógica escravocrata e que nunca saiu do poder, entendemos que, definitivamente, esse enfrentamento não será feito com colaboração do grande capital. Primeiro, porque, historicamente, foram esses setores que sempre fomentaram ou colaboraram com políticas de precarização e genocídio do povo negro. Foi assim no desmonte da previdência pública, é assim nas sistemáticas tentativas de flexibilizar os direitos trabalhistas, no avanço das indústrias de armamento, na defesa de políticas genocidas, como o Pacote Anticrime aprovado no Congresso Nacional. Segundo, porque talvez o maior problema da política institucional seja a relação perigosa entre público e privado. Sistematicamente, doadores de campanha tornam-se definidores das políticas aprovadas e implementadas por seus “apadrinhados”. Por isso, acreditamos que receber recursos oriundos do grande capital gera consequências muito graves depois. É ilusão achar que pode ser diferente.
Essa não é uma questão que envolve um indivíduo. Jamais reduziremos esse grave equívoco a uma única figura, em especial sendo um jovem negro periferico. Rejeitamos frontalmente o fato, por exemplo, da companheira Luciana Genro ter recebido dinheiro da Gerdau em 2008. Do mesmo modo, o fizemos quando o camarada Marcelo Freixo recebeu dinheiro de Guilherme Leal, dono da Natura, em 2012. Os raros momentos em que alguma figura pública do PSOL tomou essa decisão equivocada, que contraria princípios que nos fundam e que estão explícitos no estatuto partidário, contaram com nossa radical e coerente discordância. O momento de agora carrega especificidades, sabemos, e exige unidade de um campo em torno de garantias democráticas, mas isso absolutamente não pode abrir brecha para que recebamos financiamento do grande capital.
O PSOL desde sua fundação denuncia e se opõe ao financiamento de campanha feito pelo grande empresariado e pelo setor financeiro, justo por entender que são estes setores que há anos dominam a agenda política brasileira, impondo seus interesses sobre os da maioria da população. São setores que, longe de ocupar um papel secundário, estão no centro da atual política de descarte do povo preto e favelado. Segundo o Estatuto do PSOL, “não serão aceitas contribuições e doações financeiras provindas, direta ou indiretamente, de empresas multinacionais, de empreiteiras e de bancos ou instituições financeiras nacionais e/ou estrangeiros, sempre no marco das vedações contempladas pelo art. 31 da Lei 9096/95”.
Entendemos que “quem paga a banda escolhe a música” e que a autonomia e a independência financeira são condições para que tenhamos liberdade em defender as nossas pautas. Como socialistas e antirracistas, entendemos que não podemos estabelecer qualquer dependência daqueles e daquelas que são responsáveis pela política ultra neoliberal e de austeridade, porque sabemos bem na pele de quem chega a conta. Como bem aponta Silvio Almeida, a austeridade é racista. Justamente por isso, temos desacordo com a naturalização deste debate. Receber auxílio financeiro de Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e ferrenho defensor das políticas neoliberais, e de herdeiros do Itaú não nos auxilia na luta anticapitalista e antirracista.
Mas é preciso também reconhecer o quanto as estruturas partidárias muitas vezes reproduzem a lógica racista, inclusive na distribuição de recursos em campanha eleitoral. Nesse sentido, consideramos muito acertada a recente deliberação partidária. No último dia 8 de agosto, no Diretório Nacional do PSOL, foi aprovada a destinação de mais recursos a candidaturas à vereança de mulheres (30%); negros e negras (50%), indígenas, quilombolas e LGBT (15%); pessoas com deficiência-PCD (10%), em relação a candidaturas de homens brancos na mesma faixa de prioridade. Essa resolução nacional foi uma vitória dos setores oprimidos que se organizam internamente e representam o PSOL, para fora, nas lutas e batalhas.
Entendemos que esta deliberação deve ser aplicada com rigor em todos os municípios. Não há negociações possíveis em relação à urgência e à importância desta deliberação, ainda mais nesta conjuntura de franco ataque aos setores da nossa classe. E não há como falar de classe no Brasil de forma apartada da questão racial. Temos pleno acordo que a luta antirracista precisa encontrar materialidade para além dos discursos, e estamos na linha de frente desta luta, seja enfrentando as contradições internas existentes no PSOL, seja nas ruas e no parlamento.
Por fim, mas não menos importante, há mais uma questão que precisa ser abordada. A política é um não lugar para pessoas negras. No estado do Rio de Janeiro, em especial, tem sido muito duro para mulheres negras, para negros e negras periféricos tocarem a luta. O crime que levou à execução política de Marielle Franco segue, mais de dois anos e meio depois, sem solução. Uma grande parte dos territórios fluminenses está dominada por milícias, grupos armados com braços dentro do Estado Brasileiro. Tem sido um risco à vida de muitos de nós ocupar a política.
Queremos reforçar duas coisas diante desse quadro. Primeiro, como dissemos, não acreditamos que os recursos originados de representantes do grande capital nos ajudarão a enfrentar esse quadro de violência política. Quem financia cobra conta. Sempre foi assim. A conta é alta e violenta o nosso povo preto. Segundo, nunca foi, por isso, tão necessário que, definitivamente, as estruturas partidárias direcionem de forma prioritária seus recursos para ampliar a participação de negros na política, visibilizar suas ações e ajudar a garantir a vida de quem topou a tarefa de estar a frente das lutas por justiça social.
A perspectiva antirracista precisa estar evidente na prática cotidiana de que assim se denomina e, pra nós, há um enlace indissociável entre a luta antirracista e a luta anticapitalista. É deste lugar que partimos. É por este caminho que seguimos construindo nossa mandata coletiva como instrumento pra maioria do povo brasileiro.
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