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Especiais

Márcio França não é de esquerda

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

O primeira debate demonstrou que existe uma possibilidade de levar Boulos ao segundo turno em São Paulo. Será muito difícil, exigirá muita inteligência tática e muita militância, mas é possível. Seria uma façanha eleitoral. Seria, sobretudo, uma vitória política de toda a esquerda brasileira. Porque tirar Russomano, o inimigo principal, do segundo turno, é impor uma derrota monumental a Bolsonaro.

O debate de ontem à noite permitiu tirar quatro conclusões:

(a)    Além de Russomano, com uma indisfarçável cara de quem parecia estar sob efeito de algum medicamento pesado, pelo Republicanos, partido controlado pela Igreja de Edir Macedo, outros dois candidatos disputam, furiosamente, o espaço da extrema-direita, e podem se devorar em “canibalismo” politico explícito: Joice Hasselmann, candidata pelo PSL, partido que elegeu Bolsonaro, mas que seu filho deputado não tem controle em São Paulo, e Artur do Val, ou Mamãe falei pelo Patriotas, que é uma legenda de aluguel que lançou o Cabo Daciolo, o “bombeiro doido” em 2018. Joice é a porta-voz da Lava-Jato e, portanto, de uma possível candidatura de Sergio Moro em 2022. Muito mais articulada que Russomano abusou de rompantes anticomunistas. Artur Mamãe falei é um aventureiro neofascista escandaloso que procura visibilidade pessoal em voo solo falando barbaridades primitivas. Ambos tiveram como tática no debate um enfrentamento com Russomano para desmascará-lo como um oportunista frouxo. A hostilidade foi brutal sinalizando que não haverá trégua. Russomano se refugia trêmulo na imagem de cuidador e candidato de Bolsonaro prometendo um auxílio, justamente, quando o governo federal vai suspender o auxílio, e não se sabe como vai financiar o novo Bolsa-família.

(b)    Covas está em uma situação mais confortável e sabe disso, porque a imagem de um jovem conservador anti-petista doente dialoga com a base social histórica dos tucanos, que seria suficiente, se não houver maior turbulência, para chegar no segundo turno. Não tem ímpeto, liderança, ou qualquer carisma, mas terá muito tempo nas TV’s e radios, o benefício do fator inércia, potencializado pela pandemia, e o apoio das máquinas do Estado. Mas está pressionado por Andre Matarazzo, pomposamente, agressivo com a imagem imaculável de aristocrata italiano em exílio no Morumbi. O candidato do Novo navega, também, em águas turvas.  Filipe Sabará é uma fraude arrivista que saiu de uma festa de cocktails na Faria Lima: participou durante anos de governos tucanos, e não tem nada a dizer, a não ser que é contra impostos, e a favor de privatizar tudo. Resume-se a uma distração eleitoral. Marina Helou, pela Rede se comportou como uma linha auxiliar de Covas, uma espécie de sub-legenda que pede votos para não perder um vereador.

(c)    Márcio França, pelo “centro do centro descentrado”, é o principal elemento de confusão nesta eleição. França não é de esquerda. Não é sequer de centro-esquerda. Não falou um ai contra Bolsonaro. Acusou Boulos de “invasor”, uma agressão típica da ultradireita. Não tem qualquer intensidade, apenas uma descontração demagógica. Saiu da obscuridade em que merecia vegetar, porque as terríveis circunstâncias das eleições de 2018 lhe deram de presente, injustamente, uma montanha de votos úteis, somente, para tentar derrotar Doria. É candidato pelo PSB, que tem socialista no nome, mas se transformou em uma legenda de aluguel, controlada desde Pernambuco pelo atual governador Paulo Câmara. França foi vice-governador em chapa com Geraldo Alckmin, e estava exercendo o mandato no Palácio dos Bandeirantes, e apoiando a candidatura do PSDB em 2018. A relação com Alckmin vem de longe. Foi eleito prefeito em 1996 e reeleito em São Vicente. Em 2011 assumiu a secretaria de Esporte, Lazer e Turismo de São Paulo, no governo dos tucanos. O PSB já foi representado em São Paulo pelo presidente da FIESP, Paulo Skaf, que concorreu a governador em 2010. Nessa eleição, teve o apoio de Márcio França que era deputado federal.

(d)   São três candidaturas em disputa pelo espaço da esquerda: mas isso não significa que é impossível chegar ao segundo turno. Ainda há tempo. O mais importante a destacar do desempenho de Jilmar Tatto, Orlando Silva e Guilherme Boulos é que não se hostilizaram. Ao contrário, suas intervenções foram, essencialmente, complementares. Orlando, indômito, denunciou com força Bolsonaro, e defendeu com dignidade a justa luta da juventude negra. Tatto, com simplicidade simpática, desafiou Covas e desmascarou a crueldade antipopular de Doria que suspendeu a distribuição de leite, e ainda tentou passar uma merenda de farinhas. E Boulos assumiu o papel que lhe cabe de principal liderança da esquerda na cidade: confrontou Russomano. Foi firme quando era hora de ser firme, e foi ousado na hora de ser ousado. Ainda há tempo.