Pular para o conteúdo
Colunas

Sobre a militância (24): A direção

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A luz com que vês os outros, é a luz com que os outros te vêem a ti.

O vento não quebra uma árvore que se dobra

Sabedoria popular africana

Um dos temas mais difíceis e mais delicados na militância é a direção. Há muitos perigos quando encaramos a questão da direção. Podemos subestimar ou superestimar sua importância. As lideranças são essenciais na luta pela transformação social e política, mas não são em si, decisivas. O máximo protagonismo e exposição geram uma ilusão de ótica. As grandes personalidades deixam o registro do seu estilo. Na verdade, ninguém faz sozinho tanta diferença no curso mais fundamental dos acontecimentos.

Mas, quando outros fatores estão muito equilibrados, o que é raro, a diferença de qualidade dos dirigentes, como a maior lucidez e ousadia, ou a determinação e carisma, pode desempatar o desenlace de uma luta. Então, a questão da construção da direção, é central.

É mais central ainda, porque surgem em todas as lutas ativistas com talentos potenciais de liderança, mas a maioria se perde pelo caminho. Perdem-se, porque a formação de lideranças populares é um processo, comparativamente, às outras classes em luta, mais difícil: os efeitos combinados de repressão, desmoralização e cooptação são brutais.

Mas o primeiro e mais comum dos perigos quando iniciamos uma militância é o de idealização. A idealização dos que vieram antes de nós é um entusiasmo da imaginação embriagada pelo desejo. Na militância é comum a armadilha da idealização. Desejamos ter segurança na organização em que participamos, e esse desejo fermenta a credulidade.

A credulidade pode se expressar na idealização dos sujeitos sociais: a classe operária ou os trabalhadores, os camponeses ou o povo, as mulheres ou a juventude, os negros ou os LGBT’s. Pode ser a idealização dos sujeitos políticos: os sindicatos, os movimentos sociais, os partidos. Mas o mais comum é a idealização dos dirigentes. Uma glorificação da liderança “heroica”.

Não é um bom critério. Por isso, na tradição marxista se cultiva o principio da esperança, não da fé. Não precisamos de heróis. Precisamos de lideranças sérias, lúcidas, honestas e comprometidas. Tudo na vida é imperfeito. Nossas apostas não podem ser tudo ou nada. Tudo ou nada é uma simplificação infantil.

Quando tratamos da relação da militância com a direção estamos diante do dilema da confiança e da desconfiança. Confiança absoluta ou desconfiança absoluta é uma infantilização do desafio. A confiança é um processo: precisa ser construída com paciência e maturidade. Não há espaço na vida adulta para confiança absoluta. Nada, nem ninguém, são perfeitos. Nem as massas, nem as organizações que construímos, nem as pessoas. A idealização política é a antessala da desilusão.

Pior ainda, a credulidade política nos inimigos de classe é fatal. Mas o contrário da credulidade não é um erro menor. Medo, desconfiança, raiva e ressentimento não permitem trabalhar em equipe. Mentes zangadas não são mais inteligentes. Manter uma atitude aberta em relação aos outros é indispensável para militar juntos.

Ninguém pode ser julgado por aquilo que pensa de si próprio. Todos devemos ser julgados pelo que fazemos, ou seja, pela nossa coerência. Mas, todos os militantes merecem o benefício da dúvida, até prova em contrário. Apostar na confiança não é se deixar iludir pelos outros.

O fenômeno dos militantes desiludidos é muito comum. A expectativa de uma direção infalível é uma ilusão ingênua, mas não é inusitada. Ela esteve na raiz da manipulação do culto à personalidade, uma das deformações mais grotescas da esquerda do século XX, introduzida na URSS por Stalin.

O perigo simétrico da prevenção ou suspeição crônica. Não é, tampouco, madura ou inofensiva. A alternativa à credulidade não deve ser a paranoia. A desconfiança pode, facilmente, se transformar em delírio de perseguição. Mentes susceptíveis se deixam aprisionar por pensamentos conspiratórios. O endereço final de discussões exaltadas é a depuração dos dissidentes e a consolidação monolítica. O monolitismo é a antessala da destruição de uma equipe de militância, e a afirmação de uma liderança individual. Devemos, portanto, discutir sobre a formação de lideranças nas nossas organizações. Lideranças não nascem prontas, são educadas.

A construção das lideranças das organizações obedece, necessariamente, a um processo de seleção interna. Toda seleção envolve alguma competição e rivalidade. Essa seleção poder construída com critérios claros e um plano, ou pode ser brutal e “selvagem”. Eleições das lideranças são processos democráticos que introduzem transparência e educam em métodos saudáveis. Mas eleições regulares não evitam erros. Apenas favorecem a correção de erros.

Uma organização é um coletivo de militantes ativos que têm a disposição de assumir responsabilidades nas lutas sociais e políticas. Esse compromisso é uma escolha, uma doação, uma entrega. Militantes são lutadores. Mas têm capacidades, habilidades, inclinações e, também, disposições diferentes.

Há camaradas com grande inteligência e pouca resiliência. Outros têm imensa coragem, mas são intratáveis. De novo, ninguém é perfeito. Todos são necessários na luta anticapitalista. A melhor direção é sempre um trabalho de equipe. Em diferentes graus e cumprindo diferentes papeis, pela divisão de tarefas, em função de experiências distintas, há lugar para todos. Direções coletivas são sempre, sem exceção, superiores a direções unipessoais. Direções heterogêneas são sempre, sem exceções, superiores, a direções monolíticas.

A relação com os dirigentes deve ser regulada por muitas variáveis. O critério principal, em abstrato, deveria ser o acordo com as posições políticas. Ele é muito importante: a centralidade do programa. Mas militantes experientes sabem que não é tão simples. Porque a concordância de ideias não pode ser um critério exclusivo, e há boas razões para que não seja. Todas as pessoas são maiores que as ideias que defendem, em determinado momento. Outras variáveis merecem ser, também, consideradas. Trajetória, formação, caráter, constância, abnegação.

Em qualquer experiência de convivência social encontramos pessoas que são distintas de nós, e surgem desconfortos, estranhamentos, até conflitos. Quando militamos em uma organização socialista não é diferente. A desconfiança é a suspeita de que aqueles diferentes de nós poderão nos decepcionar. Mas as identidades que facilitam os acordos podem ser muito ilusórias. É sempre mais fácil concordar com os que compartilham a mesma identidade. Operários com operários, jovens com jovens, mulheres com mulheres, intelectuais com intelectuais, nordestinos com nordestinos, e por aí vai. Acontece que a construção de instrumentos coletivos só é possível com a convivência entre os diversos, porque o que deve nos unir é um programa. A chave para o trabalho de equipe é o respeito, portanto, a tolerância.

Se em cada discussão em que surgem diferenças de opinião já estabelecemos uma desconfiança no outro, não é possível lutar juntos. A aposta na luta contra o capitalismo exige a construção de ferramentas de luta. Só grandes organizações podem ter peso nos desdobramentos da luta social e política. Separar a mensagem do mensageiro é elementar. Camaradas maravilhosos podem não concordar conosco. E se formos nós que estamos errados?

Marcado como:
Série militância