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BRASIL

A vida acima da Dívida: anulação, não pagamento e reparação, já

Joana Benario e Fátima Dias, do Rio de Janeiro, RJ

A Rede Jubileu Sul/Américas, que agrupa organizações, diversas pastorais sociais e movimentos populares, ecumênicos, políticos, ecológicos e de Direitos Humanos no Continente, lançou, no final de julho de 2020, uma campanha continental, com o lema: “A vida acima da dívida” e propõe a todas as organizações sociais que mobilizem suas bases sobre o não pagamento da dívida.  A atual iniciativa dialoga com o plebiscito realizado há 20 anos, para trazer, com força, questões sobre o problema da dívida nos dias atuais.  A campanha se prolongará até dezembro e será organizada uma semana de ações de 10 a 17 de outubro.  Queremos chamar todas as organizações sociais a somar e participar da campanha.

A campanha 2020: “A vida acima da dívida!”

No documento político da campanha Jubileu Sul, se pronuncia claramente para a “Anulação, não pagamento e reparação das dívidas financeiras onerosas e ilegítimas ás quais nossos países são submetidos”. Por meio da campanha, procura-se “evidenciar o impacto destrutivo do acúmulo e pagamento de dívidas públicas ilegítimas na vida de nossos povos e da natureza”.

“A campanha visa alimentar as populações de informações gerando opinião pública e reposicionar o peso da dívida na agenda política, relacionando-a com a crise social, econômica, alimentar e ambiental que é enfrentada pela maioria dos povos de nossa região”.

Segundo Vladimir Lima, articulador do Cone Sul na Rede Jubileu, “pretendemos fazer deste momento um tempo para aprofundar o debate sobre o porquê insistimos no não pagamento e cancelamento ao invés da moratória ou reestruturação dessas dívidas.” Exigimos destinar esses recursos para enfrentar a crise sanitária e alimentar, agravada pela pandemia do COVID 19 e para cuidar da população, ou seja, a campanha quer fortalecer a reivindicação pela anulação total da dívida e alertar sobre os impactos e consequências do seu pagamento, agravados pela crise sanitária, política e social atual.

A campanha pretende também trazer as demandas dos povos frente ao Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), empresas transnacionais e governos da região.

Além da dívida financeira, o sistema da dívida aumenta a dívida histórica dos países imperialistas com os países do Sul, que inclui a dívida ecológica, com a destruição do meio ambiente via extrativismo exacerbado nessas últimas décadas, seja com a grande mineração ou petróleo, seja com o agronegócio ou megaprojetos de infraestrutura e superexploração dos territórios.

O Jubileu Sul/Américas denuncia também “uma profunda relação da dívida financeira com a militarização e a criminalização das lutas sociais, políticas e culturais, resgatando a imperativa necessidade de abordar a reparação do crime de escravidão e da conquista dos povos originários.”

Outra ênfase focaliza o peso e impacto da dívida, particularmente na vida das mulheres. Historicamente, mais sujeitas à exploração do sistema capitalista (salários baixos, precariedade e informalidade) e à opressão (machismo, racismo, LGBTfobia e outros), hoje elas estão ainda mais afetadas pelas consequências quotidianas das políticas impostas para pagamento da dívida como as contrarreformas e cortes de orçamento público.  Mas as mulheres estão também na linha de frente da resistência, que é uma palavra feminina, como menciona Magnolia Said, membro da ESPLAR, uma das organizações da campanha.[

20 anos do plebiscito popular: “Não devemos, não pagamos!”

Em setembro do ano 2000, milhares de pessoas participaram do Plebiscito Popular da Dívida Externa no Brasil, em uma imensa mobilização popular, com mais de 50 mil urnas em 3000 municípios.  A Rede Jubileu Sul e um conjunto de entidades, movimentos populares com ativa participação da Igreja Católica, conseguiram unificar centenas de grupos e organizações sociais e mobilizar milhares de ativistas, sindicatos, fábricas, escolas e associações comunitárias.  Foram quase 6 milhões de votantes. Naquele momento, sob o governo de FHC, o pagamento da dívida comprometia 65% do orçamento do país.  Com isso, o governo justificava a política de corte de gastos e de privatizações.  As discussões sobre a dívida externa ganharam força durante toda a década de 90, com alguns eventos importantes como o Tribunal da Dívida Externa em 1999, no Rio de Janeiro. No plebiscito de 2000, mais de 90% votaram NÃO ao pagamento da dívida.

As três perguntas do plebiscito foram:

1) O governo brasileiro deve manter o atual acordo com o FMI?

Resultados:  NÃO: 93,81% – Brancos/nulos: 1,63%

2) O Brasil deve continuar pagando a dívida externa, sem realizar uma Auditoria Pública desta dívida, como previa a Constituição de 1988?

Resultados: NÃO: 98,4% –  SIM: 0,23% –  Brancos/nulos: 1,37%

3) Os governos federal, estaduais e municipais devem continuar usando grande parte do orçamento público para pagar a dívida interna aos especuladores?

Resultados: NÃO: 95,8% SIM: 2,47% – Brancos/nulos: 1,67%

O ano 2000 também foi ano de eleições municipais e o tema da dívida foi pauta dos debates entre candidatos a prefeituras e governos em todo o país.  Houve ainda outras atividades culturais para evidenciar e denunciar as desigualdades sociais nas condições de vida das maiorias populares, como a famosa exposição de fotos em preto e branco do célebre Sebastiao Salgado.

Essas atividades tiveram repercussão em todo o continente.  Baseado nessa experiência, em 2002, a Aliança Social Continental organizou uma grande campanha contra ALCA (Acordo de Livre Comercio das Américas) em todo o continente.  No Brasil, o plebiscito contra o ALCA ocorreu durante a campanha eleitoral para Presidente (inclusive fez crescer a candidatura de Lula, apesar do PT não integrar diretamente a campanha).  Conseguiu mais de 10 milhões de votos e mais de 90% de rejeição à assinatura do tratado da ALCA. Autoridades reconheceram logo que o plebiscito foi fundamental para o cancelamento do acordo de entrega do território de Alcântara para os Estados Unidos e o fim das negociações sobre a ALCA.

O sistema da dívida: “Audita a maldita!”

No ano 2000, o plebiscito foi precedido de uma forte campanha de mobilização e conscientização sobre as desigualdades sociais, o racismo e a exclusão social e também sobre os mecanismos de submissão do país às instituições financeiras mundiais como FMI, Banco Mundial, BID.  Esses mecanismos seguem intatos até hoje. No coração deles, a DÍVIDA PUBLICA é um verdadeiro sistema de roubo oficial das contas públicas mediante pagamento contínuo de crescentes juros e amortizações aos bancos (privados), com o dinheiro de nossos impostos. O mecanismo da dívida está criado para nunca terminar de pagá-la. Ao contrário, a dívida aumenta de maneira permanenteHoje, a dívida consome quase 50% do orçamento público brasileiro. A Rede Jubileu Sul, fala de “escravidão financeira e dependência política contra o grande capital”.

A Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), movimento coordenada por Maria Lucia Fatorelli, surgiu logo após o plebiscito de 2000, se dedica a estudar e denunciar o problema da Dívida e propagandear a necessidade de uma AUDITORIA que está prevista na Constituição Federal – artigo 26 do ADCT- até hoje não cumprido. A ACD é composta por uma rede de núcleos no país presentes em quase todos os estados, e conta com apoio de sindicatos de trabalhadores de distintas categorias e de entidades da sociedade civil, que realizam pesquisas e atividades de formação e propaganda. Também mantém atualizados os dados sobre os valores da dívida, através do Dividômetro: em 2020, até o 27/08, pagamos 1 trilhão, 46 bilhões, 874 milhões, 486 mil, 123 reais, ou seja, 4,4 bilhões por dia, o que também corresponde a 45,6% dos gastos do Orçamento da União e a mais de 14% do PIB brasileiro.

No início do segundo semestre deste ano, a ACD iniciou a campanha É HORA DE VIRAR O JOGO, “que tem por objetivo mostrar a necessidade de mobilizar a sociedade para modificar o modelo econômico atual, o qual tem produzido escassez, miséria e atraso, que não combinam com a abundância que existe em nosso país“.

Além de explicitar o Sistema da Dívida, a campanha denuncia o modelo econômico, implementado pelas diversas medidas econômicas como a Emenda Constitucional 95 (teto de gastos e investimentos sociais por 20 anos); as Privatizações; as Reformas, como a da Previdência e a Trabalhista; a Emenda Constitucional 106  (que autoriza o Banco Central gastar trilhões para comprar papel podre dos bancos); o esquema da Securitização (que desvia recursos que sequer alcançarão os cofres públicos) e a proposta de independência do Banco Central (que deixa o BC autônomo, acima de tudo e de todos).  Esse modelo errado privilegia o setor financeiro nacional e internacional, cuja cabeça é o BIS (sigla em inglês para Banco de Regulações Internacionais), instituição privada que se diz banco central dos bancos centrais, com sede em Basiléia, Suíça.

A campanha, programada para 3 meses, vai desenvolvendo a conscientização de que é preciso unificar as lutas e impulsionar uma grande mobilização social para construir outro modelo, no qual o Estado Social seja forte e garanta vida digna para todas as pessoas e respeite o ambiente. Em 16/08/2020, foi protocolada carta questionando o Ministro Paulo Guedes sobre as privatizações absurdas de patrimônios estratégicos e lucrativos, assinados pelas entidades que apoiam a campanha. O documento também foi enviado a parlamentares e outras autoridades do Executivo, Judiciário e Ministério Público. Em setembro, será feito um questionamento sobre a PEC32/2020 da reforma Administrativa que modifica completamente o papel do Estado.

Retomemos o desafio de dizer NÃO ao pagamento da dívida.

Das ações de massa naquela época, devemos tirar aprendizagens para hoje, tais como: a) reafirmar a importância de campanhas unificadas, com todos os setores e organizações sociais anti-imperialistas juntas na construção coletiva e planificação das atividades.   b) Conseguir articular temas abstratos e complexos (dívida) com interesses imediatos das pessoas (manutenção de direitos trabalhistas e serviços públicos) na mesma luta unificada contra as reformas. c) Encontrar formas de comunicação e informações com linguagem em termos accessíveis para a população.  d) conseguir uma ampla mobilização popular a partir das organizações locais enraizadas nos territórios.

Nestes 6 meses de pandemia cresceu a dívida social e as desigualdades sociais aumentaram no nosso país e no mundo. Como diz Nora Cortiñas, ativista de Argentina, co-fundadora da Madres de Plaza de Mayo, a dívida éuma forma de ditadura que coloca a vida em função do lucro”. É mais necessário que nunca discutir o tema da dívida, denunciar sua ILEGALIDADE E ILEGITIMIDADE.  A burguesia e os governos querem carregar nas nossas costas o peso da dívida, com o argumento moral da obrigação de pagá-la, mas essa dívida não é nossa, a população trabalhadora nunca se beneficiou dela. Só serve para entregar fluxos cada vez maiores aos bancos privados. Temos que denunciar que essa dívida fabricada serve para aprofundar as reformas, diminuir orçamento emergencial, tirar estabilidade dos servidores e aprofundar ataques aos trabalhadores. CHEGA! NÃO DEVEMOS, NÃO PAGAMOS! 

Devemos exigir a imediata suspensão do pagamento da dívida, instalar uma auditoria das contas públicas para demonstrar para onde foram desviados os recursos e quem se beneficiou com o pagamento da dívida, refutando os argumentos apresentados pelos governos e órgãos internacionais. Exigimos destinar esses recursos para enfrentar a crise sanitária e alimentar agravado pela pandemia do COVID 19, e para cuidar da população.

Precisamos colocar este tema no centro da discussão política nos próximos meses. Como há 20 anos, durante o plebiscito, é tarefa atual na luta unitária e popular. Retomemos essa luta histórica em defesa do território e da soberania nacional, contra a sua entrega ao imperialismo norte-americano!

SUSPENSÃO IMEDIATA DO PAGAMENTO E CANCELAMENTO DA DIVIDA EXTERNA!