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CULTURA

Análise e crítica de ‘época pós-moderna’ em Wright Mills (1959)

Travesti Socialista
Archive Photos/Stringer/Getty Images

“Muitas modas intelectuais, é claro, fazem exatamente isso; eles impedem a liberação da imaginação – sobre a guerra fria, o bloco soviético, a política de paz, sobre qualquer novo começo no país e no exterior. Mas a moda que tenho em mente é o cansaço de muitos intelectuais da OTAN com o que eles chamam de ‘ideologia’ e suas proclamações de ‘o fim da ideologia’. […] Isso tem algum sentido?

“Sua orientação comum não é o liberalismo como filosofia política, mas a retórica liberal que se torna formal e sofisticada e é usada como uma arma não criticada para atacar o marxismo. […] Os fatos são devidamente ponderados, cuidadosamente balanceados, sempre limitados. Seu poder de indignar, seu poder de iluminar verdadeiramente de uma forma política; seu poder de ajudar na decisão, até mesmo seu poder de esclarecer alguma situação – tudo isso é embotado ou destruído”.  Charles Wright Mills, ‘Carta à Nova Esquerda’ (‘New Left’), publicada na revista marxista ‘New Left Review’

Nas discussões da esquerda, ‘pós-moderno’ (e agora ‘identitário’) tornou-se um xingamento sem conteúdo, sinônimo de ‘esquisito’ ou ‘bizarro’, dirigido principalmente contra ativistas dos movimentos LGBTQIA+, negro e feminista. Para desofuscar a discussão, trago uma análise do conceito de ‘época pós-moderna’ de Charles Wright Mills, numa palestra em Londres, em 1959. Sua concepção, mesmo sendo crítica ao marxismo, está bem longe do estereótipo fantasmagórico que aparece nas discussões.

O sapato de Nikita Khrushchev

Após a morte de Stalin em 1953, quem assume seu posto é Nikita Khrushchev, que se tornou uma pedra no sapato do stalinismo. Em 1956, Khrushchev faz um discurso ardente no Congresso do Partido Comunista contra os crimes cometidos pelo regime stalinista: a concentração de poder, o culto à personalidade de Stalin, a execução de centenas de milhares de comunistas, os milhões de mortos na Fome Soviética de 1932-3, etc.

Para quem não conhece, Khrushchev é famoso pelo episódio em que ele (supostamente) tirou o sapato do pé e o usou para bater na mesa em protesto ao discurso do delegado das Filipinas, Lorenzo Sumulong. Khushchev admitiu que o evento ocorreu, mas não há registro em foto nem vídeo.

Foto original: RM Bettman/ Corbis/ Associated Press
A foto Khrushchev segurando o sapato é famosa, mas é falsa.

Mao Tsé-Tung, então chefe de Estado da China, critica Khrushchev por ‘revisionismo’, defendendo o legado de Stalin. Ocorre assim a ruptura diplomática entre URSS e China, conhecida como ruptura sino-soviética. Na Hungria, uma revolta popular se transforma numa revolução contra a submissão do país à União Soviética.

É óbvio que a ruptura de Khrushchev com o stalinismo foi meramente formal. O seu discurso, por exemplo, não foi divulgado oficialmente – as repercussões que ele causou foram por causa da ‘fofoca’. Nem Stalin, nem Khrushchev tinham o compromisso de dizer a verdade para o povo.A ‘Nova Esquerda’ (‘New Left’) estadunidense

O discurso de Khrushchev não teve repercuções apenas no Leste. Também nos EUA iniciou-se uma reorganização da esquerda, fenômeno conhecido como ‘Nova Esquerda’, que abrigou várias correntes (marxistas e não-marxistas) sob o guarda-chuva amplo de ‘socialismo libertário’.

Edição da revista ‘New Left Review’ que publicou a carta de Mills [https://newleftreview.org/issues/I5 ]
Uma das repercussões foi a criação da revista científica marxista ‘New Left Review’. Wright Mills, um sociólogo muito famoso da época, escreveu uma carta aberta para a revista. Foi justamente essa carta que popularizou o termo ‘Nova Esquerda’. Na carta, ele critica, em primeiro lugar, o discurso hegemônico dos EUA e dos intelectuais que estavam a serviço do imperialismo estadunidense. Em segundo, ele critica também o ‘marxismo vitoriano’ da União Soviética, que também estava sendo usado para a dominação e a repressão dos povos sob domínio soviético.

Há apenas uma diferença de forma entre essa carta aberta com a palestra feita por ele em 1959, na London School of Economics (Escola de Economia de Londres): na primeira, ele critica o ‘marxismo vitoriano’ e oculta a crítica que tinha ao marxismo em geral.

Pós-modernismo: uma época ou um fenômeno da luta de classes?

Ao início da palestra, ele explica:

“Estamos no final do que é chamado de Idade Moderna. Assim como a Antiguidade foi seguida por vários séculos de ascendência oriental, que os ocidentais chamam de Idade das Trevas, agora a Idade Moderna está sendo sucedida por um período pós-moderno. Talvez possamos chamá-lo: A Quarta Época”. (MILLS & SUMMERS, 2008, p. 193)

A justificativa de Mills era que tanto o liberalismo quanto o marxismo se tornaram visões de mundo ultrapassadas. Seu discurso deixa evidente que a base material para o fenômeno pós-moderno era a dualidade hegemônica na Guerra Fria:

“A ascensão dos EUA, junto com a da URSS, restringiu a dispersão das nações europeias ao status de subsidiárias. O mundo da Quarta Época está dividido. Em ambos os lados, uma superpotência agora despende seu esforço mais massivo e coordenado na preparação altamente científica de uma terceira guerra mundial.

“No entanto, pela primeira vez na história, a própria ideia de vitória na guerra se tornou idiota. À medida que a guerra se torna total, ela se torna absurda”. (op cit, p. 196)

O medo da total destruição da humanidade é um ótimo incentivo para a busca por uma alternativa ideológica, não é mesmo?

Aqui fica evidente que pós-modernismo foi um fenômeno da luta de classes, não uma ‘época’, muito menos uma ideologia hegemônica. Ele se caracteriza pela busca por uma terceira via, uma alternativa às duas ideologias dominantes na Guerra Fria, o liberalismo (representado pelos EUA) e o pseudomarxismo (representado pela URSS).

Mas há inúmeras possibilidades de se criar uma terceira via. Assim, o pós-modernismo foi um fenômeno amplo, que abarcou inúmeras correntes, marxistas e não-marxistas, liberais e não-liberais. A fronteira entre o pós-modernismo e o marxismo, assim como a fronteira entre o pós-modernismo e o liberalismo, é borrada. É um fenômeno muito mais contraditório do que muitos marxistas fazem parecer.

Exacerbando as semelhanças, ignorando as diferenças

Um limite evidente do discurso de Mills é que ele exagera as semelhanças e subestima as diferenças entre os EUA e a URSS. Na verdade ele próprio o admite, mas de maneira limitada. Isso fica evidente em seu conceito de ‘nação sobredesenvolvida’ [‘Overdeveloped Nation’], que ele inicialmente explica no contexto dos EUA.

“[N]a Nação Sobredesenvolvida, o padrão de vida domina o estilo de vida; seus habitantes são possuídos, por assim dizer, por seu aparato industrial e comercial: coletivamente, pela manutenção de uma produção conspícua; individualmente, pela busca frenética e manutenção de commodities. Em torno desses fetiches, a vida, o trabalho e o lazer estão cada vez mais organizados. Focada nisso, a luta por status complementa a luta pela sobrevivência; o pânico por status substitui os estímulos da pobreza.” (op cit, p. 197)

O incentivo ao consumo frenético se aplica muito bem aos setores médios da população estadunidense, apesar de ter um limite evidente, que Mills ignora: o assim chamado ‘estilo de vida americano’ deixou de fora uma grande parcela da população, principalmente pessoas não-brancas (negras, latinas, indígenas), pessoas transgêneras e drag queens, trabalhadoras do sexo, entre outras.

Outro problema desse discurso quando Mills o aplica à URSS.

“Os próprios termos do antagonismo mundial [entre EUA e URSS] estão promovendo suas semelhanças: geográfica e etnicamente, ambos são supersociedades; ao contrário das nações da Europa, cada uma delas amalgama em um domínio continental uma grande variedade de povos e culturas. O poder de ambos é baseado no desenvolvimento tecnológico. Em ambos, esse desenvolvimento é transformado em um fetiche cultural e social, ao invés de um instrumento sob avaliação e controle público contínuo. […]

“Tanto nos Estados Unidos quanto na União Soviética, à medida que a ordem política é ampliada e centralizada, ela se torna menos política e mais burocrática; menos o local de disputa do que um objeto a ser administrado. Em nenhum dos dois há partidos nacionalmente responsáveis que debatam aberta e claramente as questões que essas nações, e na verdade o mundo, agora enfrentam de forma tão rígida.” (op cit, p. 197)

As afirmações são verdadeiras em certa medida. Porém havia um grande descompasso entre o desenvolvimento tecnológico das duas potências. A propaganda soviética exagerava seu desenvolvimento econômico, mas o fato é que ele estava muito aquém dos EUA. Isso era mascarado com o fato que a desigualdade social na União Soviética era muito menor que nos EUA.

O subdesenvolvimento mascarado pela propaganda soviética

Em vez de consumismo desenfreado, o apelo que o governo soviético fazia à própria população era de aceitar a própria pobreza, a satisfação das suas necessidades mais básicas. Aqui faço a ressalva que, nos países capitalistas, nem mesmo as necessidades mais básicas são suficientemente satisfeitas para uma boa parte da população. Porém, na URSS, isso possibilitava um direcionamento da produção, principalmente para a produção de armas e de tecnologia espacial – isso para fazer um showzinho internacional. Ridículo!

A mera aparência desse espetáculo é desvendada na história da Rússia e da União Soviética ao longo do século XX. A Primeira Guerra Mundial deixou o povo russo numa miséria extrema, o que o levou à maior revolução já vista na História. Insatisfeita com o surgimento de um Estado Proletário, a burguesia internacional apoiou o exército branco com dinheiro e tropas. A guerra civil foi devastadora para a economia russa e causou uma fome que vitimou cerca de 10 milhões de vidas.

Resumindo, a União Soviética partiu de um patamar de devastação, desenvolveu-se economicamente para que, ao seu fim, em 1989, voltasse a se tornar um país capitalista subdesenvolvido. Se a URSS era uma superpotência econômica, por que a Rússia não é, hoje, um potente país imperialista superdesenvolvido? Alguém jogou uma bomba atômica nas indústrias da antiga União Soviética?

Óbvio que não. A URSS, do ponto de vista tecnológico e produtivo, nunca chegou aos pés de qualquer país dominante no mundo capitalista. Não por culpa do povo soviético, que derramou suor e sangue para fazer o socialismo prosperar. Pelo contrário, por maior que fosse seu esforço, jamais conseguiria ganhar a corrida, ainda mais quando este era desperdiçado numa corrida armamentista insana.

Em vez de produzir o que realmente lhe interessava, por exemplo para desenvolver as forças produtivas, o povo soviético foi obrigado a trabalhar na produção de armas. Na corrida armamentista, a União Soviética teria de competir numa subida cheia de obstáculos, enquanto a pista dos EUA era nivelada e limpa. Se a primeira sobreviveu por tanto tempo, foi graças às conquistas materiais da Revolução Russa, conquistas que demoraram a se dissolver.

A verdade é que União Soviética, como previu Trotsky, não poderia prosperar sem uma revolução socialista em um país capitalista dominante. Isso foi demonstrado pela História. Mas tal revolução não era possível sem combater a hegemonia da burocracia soviética, e portanto sem apresentar uma alternativa político-ideológica ao stalinismo, mas que fosse revolucionária, anticapitalista. A União Soviética só poderia ser colocada novamente no caminho para o socialismo se a burocracia fosse derrubada por uma revolução política.

É por isso que, sendo um fenômeno contraditório, o pós-modernismo ao menos tinha um ponto de partida absolutamente correto: a necessidade de superar o liberalismo do mundo capitalista e o pseudomarxismo da União Soviética.

Referência
MILLS, C. W.; SUMMERS, J. H.; OXFORD UNIVERSITY PRESS. The politics of truth: selected writings of C. Wright Mills. Oxford: Oxford University Press, 2008.