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BRASIL

Reforma Administrativa do Governo Bolsonaro: “Renovar” não significa avançar

Arley Costa*, Eblin Farage** e Fernando Lacerda***

Entrega da PEC

Novas chibatas do capital como instrumentos de velhas políticas

Nas sociedades em que a mercadoria é a célula básica, a ideia de renovação é um postulado difícil de questionar. Qualquer mercadoria, seja celular ou computador, pelo simples fato de ser nova, é assumida como melhor que a antecessora porque traz inovações (“novos” dispositivos técnicos ou designs). Nossa experiência é marcada pela sucessão de novas mercadorias sempre recebidas como melhores que as anteriores, pois o “velho” ou “antigo” é considerado defasado, pouco produtivo, lento, inoportuno e inconveniente. Há um fetiche sobre a novidade, que se manifesta em todas as esferas da sociedade. Mas é sob o signo do “novo” que está em curso um dos mais profundos ataques contra os serviços públicos e que trará gravíssimos retrocessos históricos. 

Desde o início do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro estavam anunciados os “alvos” de seus ataques: servidore(a)s público(a)s e a educação pública. A escolha, coerente com seu projeto de governo, é alimentada pela perspectiva anticiência, fundamentalista, miliciana e militarizada e baseada em mentiras (fake news, no linguajar da moda atual). Assim, prometendo o novo, o governo Bolsonaro assegura sua estabilidade defendendo a narrativa de uma “necessária” reforma do Estado. Contudo, a propalada reforma do Estado é uma antiga diretriz do projeto neoliberal, cujas recomendações, expressas no Consenso do Washington de 1989, foram, em menor ou maior intensidade, seguidas à “risca” por todos os governos brasileiros desde Fernando Collor de Mello. 

É preciso atentar ao aspecto ideológico associado ao “novo” no discurso da “reforma do Estado”. Como afirma Perry Anderson, o neoliberalismo é “a ideologia mais vitoriosa da história mundial”(1), pois os embates giram em torno de quem será o melhor gestor ou o político mais competente que administrará a máquina estatal, mas não há qualquer questionamento aos princípios neoliberais vigentes que norteiam a organização do Estado e sua função social. Assim como não se discute a origem da classe que hegemoniza o Estado, dando a falsa impressão que o Estado é neutro. Esse processo ideológico também se expressa na atual disputa sobre a reforma do Estado. Os que apoiam a reforma, defensores da ideologia neoliberal, buscam apropriar-se privadamente do fundo público, retirando direitos como saúde e educação de parcela significativa da população. Há os que buscam desvelar essa ideologia chamando a pretensa reforma de contrarreforma, pois retira direitos sociais para que o Estado beneficie a classe do capital, enquanto aumenta a exploração sobre a classe que vive do trabalho.

Importante marco da contrarreforma do Estado, o “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado”, apresentado por Bresser Pereira, ministro do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), explicitou o projeto político que, a partir de então, todos os presidentes brasileiros implantaram em menor ou maior intensidade. Não houve, em momento nenhum, interrupção do projeto do capital para o gerenciamento das relações sociais, seja nos governos de direita (de Collor a FHC), de conciliação de classes (Lula e Dilma) ou de extrema-direita (Bolsonaro). 

Não estamos afirmando que não houve diferenças entre os governos e as gestões do Estado. Óbvio que houve diferenças! Pudemos escolher o tipo de chibata, mas eram todas chibatas do capital, inclusive quando seus portadores tentavam conciliar o inconciliável, possibilitando que parcelas numerosas da classe trabalhadora consumissem (e se endividassem) mais, acessassem a educação superior, adquirissem empréstimos para a casa própria ou saíssem da linha da miséria (ainda que temporariamente). 

Os efeitos da política de conciliação de classes, que garante o lucro do capital e alguns ganhos para parcelas da classe trabalhadora, desde que a mantenha na subalternidade, não devem ser desprezados. Modificam a vida da classe trabalhadora, mas não contribuem para sua emancipação. Ao contrário, “desarmaram” e “pacificaram” parcelas da classe que tiveram suas organizações sindicais e movimentos sociais cooptados como base do governo, abriram mão de seu destino autônomo e viram  a chegada, no legislativo e no executivo, de populistas de direita com discursos “antissistema” ao poder. Por isso e por tantos outros aspectos, a esquerda que se propõe socialista deve ser crítica a essas experiências e as suas repercussões na vida e na organização da classe trabalhadora. 

Vale lembrar que o processo de acomodação à ordem não foi repentino. Na “Carta ao Povo Brasileiro” de 2002, Lula prometeu construir um “novo modelo”, “fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade”. (2) Sob a bandeira do “crescimento com estabilidade”, o PT e seus aliados aderiram, cada vez mais, aos princípios da ideologia neoliberal e colocaram como “nova” tarefa fundamental a velha política da “reforma do Estado”. É assim que, na quarta tentativa à presidência da república, em formato muito distinto de campanha e projeto apresentados em 1989 (1ª candidatura), o PT, com Lula candidato e tendo como vice um explícito representante do empresariado, chega ao executivo do país com um projeto de conciliação de classes e a promessa de contrarreforma do Estado.

A vitória do bolsonarismo: processo inevitável ou fruto dos erros da esquerda?

O processo de acomodação à ordem dos governos de conciliação de classes ocorre no contexto de agudização da crise estrutural do capital nos anos 2000. A partir da crise de 2008/2009, inicialmente caracterizada, de forma irresponsável, por Lula como “marolinha”, inaugurou-se uma quadra histórica em que nem mesmo conquistas, concessões ou direitos são permitidos à classe trabalhadora. Austeridade passa a ser a palavra de ordem por todo o mundo. No Brasil, isso significou retirar as poucas migalhas jogadas do banquete do poder durante o período dos governos de conciliação de classes e exigir sacrifícios ainda maiores da classe trabalhadora. 

Como o “mal menor” (governos de conciliação de classes) preparou o caminho para o “mal maior” (a extrema-direita genocida)? Em que momento perdemos o timing do processo? Por que o fundamentalismo e a extrema-direita pegaram a todos de surpresa? (embora haja quem afirme que viu e avisou). Será que com as “bolhas” das redes sociais, falando apenas entre nós, não conseguimos perceber os movimentos de segmentos importantes da classe trabalhadora? Será que a falta de “trabalho de base” nas ruas, abandonado em favor dos aparelhos de ar condicionado de gabinetes, mandatos e cargos de confiança, nos desenraizou dos territórios? Será que as lutas “intestinais”, fortalecendo nossos grupos e combatendo os do mesmo campo, nos impediu de construir uma alternativa para a classe? Será que a luta interna, autofágica, sectária, vanguardista e autoproclamatória não contribuiu para criar um vácuo político ocupado pela extrema-direita? Será que a secundarização ou mesmo a desqualificação das lutas contra o machismo e o racismo na esquerda não contribuiu para dividir nossa classe? Será que não percebemos as transformações do mundo do trabalho que geraram uma classe trabalhadora distinta da que estávamos acostumados e com os quais os sindicatos se organizaram? Será que não demos a devida atenção ao processo de absoluta precarização, informatização, terceirização e informalização do trabalho? Enfim, por que não percebemos os ovos da serpente sendo postos?

Há muitas perguntas e muitas hipóteses, mas buscamos vislumbrar o fio que liga os diversos discursos que legitimam a Reforma Administrativa. Compreender essa conexão é importante, pois se o fortalecimento de figuras populistas de extrema-direita é, por um lado, manifestação do esgotamento do capitalismo, por outro, é preciso considerar a política de conciliação de classes e a incapacidade da esquerda socialista de fazer autocrítica de suas ações, leituras e prioridades nesse processo. 

A demonização do funcionalismo público como contraparte da contrarreforma administrativa

Feitas essas provocações, nos interessa abordar a capilaridade da contrarreforma administrativa do governo Bolsonaro. Os “novos” ataques às políticas públicas e sociais, como já dito, vêm de longa data e não cessaram em nenhum momento após a redemocratização. De fato, o projeto de Estado Democrático de Direito presente na Constituição Federal de 1988 (CF/88) começou a ser atacado desde seu surgimento. Com diferentes ênfases e justificativas, todos os governos eleitos alimentaram a ideia de que o funcionalismo público é oneroso ao Estado, uma casta de privilegiados, que não trabalha e se aposenta cedo. Enquanto Fernando Collor prometia caçar os marajás”, FHC nos chamou de “vagabundos”. Nas suas palavras: “pessoas que se aposentam com menos de 50 anos são vagabundos, que se locupletam de um país de pobres e miseráveis” (maio/1998). Já Lula nos chamou de “acomodados” menos confiáveis que políticos: “Eu, de vez em quando, falo que as pessoas achincalham muito a política. Mas a profissão mais honesta é a do político. Sabe por quê? Porque todo ano, por mais ladrão que ele seja, ele tem que ir para a rua encarar o povo, e pedir voto. O concursado não. Se forma na universidade, faz um concurso e está com emprego garantido o resto da vida” (setembro de 2016). Finalmente, o super-ministro de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, nos chamou de “parasitas”: “O funcionalismo teve aumento de 50% acima da inflação, tem estabilidade de emprego, tem aposentadoria generosa, tem tudo, o hospedeiro está morrendo, o cara virou um parasita, o dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático, não dá mais” (fevereiro/2020).

O discurso da necessidade da “Reforma do Estado” para combater “privilégios” de funcionários públicos esteve presente nos diferentes governos e sempre contou com amplo apoio da mídia. Mas, também apareceu na Central Única dos Trabalhadores (CUT) apoiando a reforma da previdência do governo de Lula, que acabou com a paridade entre ativos e aposentados e a aposentadoria integral, e dando suporte à Dilma para aprovar o Fundo de Previdência Complementar do Funcionalismo Federal (FUNPRESP). A adesão de Dilma ao programa neoliberal e sua disposição de fazer concessões à direita racista, machista e branca, em nome da governabilidade, não poupou a única mulher presidente desse país de sofrer um golpe. 

A ideologia neoliberal se espraiou pela construção da imagem do funcionário fantasma, que deixa o paletó na cadeira e sai do local de trabalho para atividades particulares. Este retrato foi profundamente explorado pela grande mídia. Inúmeros programas de televisão foram dedicados a retratar crimes e desvios para criar a imagem do servidor como privilegiado, pilantra e, acima de tudo, “vagabundo”, ineficiente e burocrático, reforçando as velhas estruturas de um Estado pouco moderno. Essa imagem se difundiu na caricatura oposta. O funcionário “certinho”, amplamente difundido na figura do “Lineu” representada pelo ator Marco Nanini na série “A Grande Família”. A caricatura do servidor honesto cumpre a função de mostrar essa característica como exceção no funcionalismo público. Assim, a população aprendeu a rir do correto e a olhar para os postos públicos no hospital, na agência do INSS, na escola pública, na guarda municipal, na justiça e em todos os espaços em que os servidores públicos são as figuras centrais para a realização dos direitos sociais como lugares que não funcionavam porque não tinham “Lineus”, apenas vagabundos. 

Mas nunca foi desnudado para a população que, desde a década de 1990, antes mesmo de se regulamentar as políticas públicas e os direitos previstos e conquistados na Constituição Federal de 1988, esta já sofria tentativas de desmonte. O que não havia sido plenamente implantado já era desestruturado e remendado (por isso, a enorme quantidade de “emendas constitucionais” aprovadas e em tramitação). O ataque ideológico foi a estratégia preferida para retirar direitos sociais, Forjaram déficits imaginários nos serviços públicos “demonstrando” a ineficiência do Estado resultante da vagabundagem e dos privilégios dos servidores públicos para, em seguida, defender a necessidade da “reforma” que traria o paraíso na terra. 

Nesse ínterim, a precarização do mundo do trabalho avançou aceleradamente e criou um hiato que se manifestou, inicialmente, entre servidore(a)s público(a)s e iniciativa privada e, posteriormente, entre trabalhadores com direitos (os “privilegiados” com carteira assinada e funcionários públicos) e os sem direitos (informais e desempregados). 

Em um país de capitalismo dependente e subordinado ao mercado internacional, a reestruturação produtiva teve impactos devastadores e os governos se aproveitaram para ideologicamente dividir os trabalhadores. Parte das conquistas dos servidores públicos que deveriam ser estendidas ao conjunto dos trabalhadores eram apresentados como privilégios que deveriam ser retirados. Assim, ficaram, de um lado, os trabalhadores da iniciativa privada cada vez mais precarizados e com salários reduzidos por conta da ampliação da terceirização, da flexibilização da legislação trabalhista e da carteira verde e amarela. De outro, os trabalhadores do funcionalismo público chamados de privilegiados. Contudo, as críticas apontadas não reconhecem que os servidores formam um setor absolutamente desigual, no qual há carreiras consideradas típicas de Estado com supersalários e benefícios e outras carreiras, consideradas o “restolho”, como professore(a)s, uma das carreiras mais mal remuneradas de todo o serviço público federal. 

Em suma, enquanto a maioria dos servidores públicos é mal remunerada, algumas poucas carreiras típicas de Estado mantêm privilégios (auxílio moradia, auxílio instrução, tempo de aposentadoria reduzida e ganhos salariais muito acima da média). Mas estas camadas privilegiadas, que a grande mídia retrata como a totalidade do funcionalismo público e a principal razão de ser da “Reforma Administrativa”, praticamente não serão atingidas pela reforma. O próprio ministro Paulo Guedes afirmou em 09 de setembro: “Eu acho um absurdo os salários da alta administração brasileira, acho que são muito baixos. Muita gente preocupada com o teto, a minha preocupação é ao contrário. Para preservar pessoas de qualidade no serviço público, como tenho visto aqui em Brasília“. Basicamente, Paulo Guedes defende que os setores mais privilegiados do funcionalismo público comecem a receber salários ainda mais altos. Então, quem vai perder com a “Reforma Administrativa”? Justamente, os servidores que atendem as pessoas mais pobres na saúde, na educação e na assistência social. 

Reforma Administrativa: Uma derrota para todas e todos

A contrarreforma administrativa será uma derrota para toda a classe trabalhadora, pois ampliará privilégios dos servidores já privilegiados com supersalários e inúmeros auxílios; facilitará casos de “apadrinhamento”, corrupção, ampliará a possibilidade das “rachadinhas” e dos “servidores guardiões”, desestruturará os serviços públicos, entre outros tantos problemas.

A maior parte do funcionalismo público está no dia a dia da população, em escolas, universidades, institutos federais, postos de saúde, hospitais, agências do INSS, na segurança das estradas e fronteiras, na receita federal, no levantamento de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no desenvolvimento de pesquisa e ciência nas Universidades, na Fiocruz etc. Estes serão fortemente afetados, o que fragilizará o atendimento à população.

Os servidores públicos não estão mais nas companhias de água, luz, telefone e transporte, pois essas áreas foram privatizadas. Sintomaticamente, pioraram os serviços e foram as áreas em que os preços se elevaram, piorando a vida do(a)s trabalhadore(a)s.  O mesmo ocorreu na saúde, quando o setor privado passou a receber dinheiro público por meio das chamadas “organizações sociais” (OS). Após o surgimento de empresários gerindo o dinheiro que deveria ir para hospitais e outros serviços de saúde, cresceram os escândalos de corrupção e quem pagou foi a classe trabalhadora que viu uma piora significativa na qualidade dos serviços prestados.

Individualmente, um funcionário público pode servir de “guardião”(3) de um péssimo político, isso faz parte da direção social que cada um dá a sua profissão, ou seja, não é um problema do funcionalismo público, mas uma opção de foro íntimo que pode ocorrer em qualquer categoria profissional. Quem atua assim, deixa de atuar como servidor público e deve ser punido. Porém, é preciso entender que, diferentemente do que acontece amplamente com os comissionados na política brasileira, o funcionário público tem proteção legal que o ampara para não estar envolvido com “rachadinhas”.(4) Ele não ingressa no serviço público por ser apadrinhado e, por isso, não é capacho de político e nem dividirá seu salário de direito, como muitos comissionados são obrigados a fazer. No entanto, se a “Reforma Administrativa” for aprovada, esquemas de “rachadinha” e subserviência a políticos se generalizarão pelo funcionalismo público, pois a “estabilidade” no serviço público dependerá da capacidade do servidor ser apadrinhado por um prefeito, governador ou presidente. 

Por todos esses problemas, a mensagem divulgada para todo o funcionalismo público federal por Caio Mário Paes de Andrade, Secretário Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, via Sistema Integrado de Gestão Pública (SIGEP), em 3 de setembro de 2020, mesmo dia em que Jair Bolsonaro enviou sua proposta de Reforma Administrativa para o Congresso Nacional, mostra o grau de perversidade da contrarreforma. A mensagem anuncia a proposta de “transformação da administração pública, que irá modernizar o Estado brasileiro, prepará-lo para o futuro” e, assim, “alcançar altos índices de produtividade e de entrega para a população”, levando o país para o “caminho da prosperidade”. A mensagem traz uma série de termos “positivos” para a população: “transformação”, “futuro”, “produtividade”, “novo modelo”, “inovação”, “eficiência”, “agilidade”. Tudo isso é combinado com termos que revelam a perspectiva messiânica e fundamentalista que exige “entrega” e busca “prosperidade”. Isso, segundo a carta, só poderá ser alcançado se a “reforma” der “mais incentivos aos bons servidores”. A mensagem só falta citar a bíblia e indicar que é necessário “separar o joio do trigo”. (5)

Mais à frente, a mensagem, para justificar a necessidade da “Reforma Administrativa”, continua: “são milhares de pessoas qualificadas e comprometidas que nos fazem questionar como uma organização dotada deste capital humano não alcança resultados melhores”. Será, nobre secretário especial, que não é pelo número insuficiente de funcionários públicos e de estrutura para desenvolver o trabalho? Situação facilmente vislumbrada em estados como Rio de Janeiro e Minas Gerais, onde o(a)s servidore(a)s para alcançar “melhores resultados” têm que trabalhar em hospitais sem equipamentos de proteção individual e insumos medicamentosos, atendendo mesmo sem leitos de UTI, enfrentando duras jornadas de trabalho criadas pela falta de médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, assistentes sociais etc. A mensagem é um acinte, especialmente para o(a)s servidore(a)s público(a)s que estão na linha de frente na luta contra a pandemia da Covid-19, que já matou mais de 132 mil pessoas.

A mensagem termina buscando dividir a sociedade e desmobilizar o funcionalismo público, informando erroneamente, que a contrarreforma administrativa, que pretende alterar a CF/88 com a PEC 32/2020, não afetará os atuais servidores.  Ao registrar que não haverá alteração no regime de estabilidade dos atuais servidore(a)s público(a)s, a mensagem oculta o fato de que o texto da contrarreforma propõe uma “avaliação de desempenho” realizado por gestores para todo(a)s do funcionalismo público que pode resultar em demissão/exoneração, ou seja, pode ameaçar o regime atual previsto na CF/88. Também seremos afetados, pois em nossas instituições não haverá mais concursos públicos e nossos futuros colegas terão menores salários, serão precarizados, sem estabilidade, sem carreira e sem garantias pelo Regime Jurídico Único (RJU). Isso não tem impacto no conjunto de nosso trabalho? Teremos mais adoecimento, mais sobrecarga e um ambiente laboral mais desestruturado, competitivo e sem solidariedade. 

A contrarreforma do governo Bolsonaro, se aprovada, será o ponto final da reforma do Estado iniciada na década de 1990. A extinção de um conjunto de carreiras do funcionalismo, o fim do RJU e a suspensão dos concursos públicos, levarão à desestruturação das políticas públicas, impondo um retrocesso de mais de 30 anos, retornando a perspectiva de políticas sociais mediadas pelo favor, pelo apadrinhamento, pelo favorecimento e pelo clientelismo que existia antes. Sem funcionários públicos de carreira não há políticas públicas de qualidade e garantia de direitos sociais universais. 

Também desaparecerá a independência necessária para existir “serviço público” de verdade. Os “novos” servidores não terão estabilidade e não poderão falar verdades desagradáveis. Assim, se um pesquisador descobrir que certa medicação recomendada pelo presidente da república faz mal à saúde, ele pode ser demitido. Se um técnico do IBAMA denunciar a verdadeira situação das queimadas na floresta amazônica e no pantanal, ele poderá ser demitido. Se um servidor se recusar a participar de esquemas de “rachadinha”, tão utilizados pela familícia, perderá seu emprego.

Para a organização dos trabalhadores, significará um retrocesso. A divisão interna do funcionalismo público entre quem tem e quem não tem estabilidade resultará na fragmentação da organização sindical e no esvaziamento das entidades representativas. A flexibilização do mundo do trabalho privado adentrará o mundo do trabalho do setor público e abrirá espaço para a competição entre o(a)s trabalhadore(a)s, a busca do lucro e a mercantilização, elementos centrais em todo e qualquer escândalo de corrupção.

É hora de retomar o início de nossas reflexões. Nem toda renovação significa avanço e conquista. Historicamente, sabemos que todas as propostas que buscaram RENOVAR o sindicalismo do(a)s funcionário(a)s público(a)s federais resultou na criação de entidades pelegas que não representam os servidores e que apresentam enorme disposição em lamber botas de governos e gestores. 

No capitalismo, quase sempre, o RENOVAR significa retroceder, voltar ao passado, ainda que com uma embalagem nova. O “novo” da reforma é o retorno ao que se reclamava antes, é o compadrio político dominando as relações públicas. Por isso, é necessário resistir e lutar para que uma verdadeira alternativa, que interesse ao conjunto da classe trabalhadora, seja construída. Isso depende, em parte, de nossa capacidade de autocrítica, de reinventar a esquerda e de retomar a organização autônoma dos trabalhadores. Construir a reorganização da classe trabalhadora é a tarefa central do momento. Sem repetir erros, vícios e disputas, trilhando outros caminhos, pela base, com autonomia e independência. Sem isto não derrotaremos pacotes de maldade como a atual “Reforma Administrativa”. Sem isto, não conseguiremos construir uma nova sociedade, em que o Deus-dinheiro vale mais do que centenas de milhares de trabalhadoras e trabalhadores.

 

* Psicólogo, Dr em Ciências pela USP e professor da UFF em Volta Redonda.

** Assistente Social, Dra em Serviço Social pela UERJ, professora do Curso de Serviço Social da UFF e Secretaria Geral do ANDES-SN.

*** Psicólogo, Dr em Pisicologia pela PUC-Campinas, professor da Faculdade de Educação da UFG e diretor do ANDES-SN.

 

NOTAS

1 – Anderson, P. (2002). Renovações. Revista Novos Rumos, 17(37), 29-42.

2 – Ver a Carta ao povo brasileiro

3 – Referência ao escândalo amplamente divulgado pela grande imprensa denominado “guardiões do Crivela”, prefeito do Rio que segundo as denúncias coloca funcionários públicos para evitar denúncia de usuários sobre o sistema de saúde da cidade do Rio de Janeiro. 

4 – Referência às denúncias de divisão de salário por parte de assessores contratados por Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e Jair Bolsonaro na Câmara Federal que ficaram nacionalmente conhecidas como “caso Queiroz”. Mais recentemente, a pastora e deputada federal Flordelis, investigada pelo assassinato de seu marido, também está sendo investigada por organizar esquemas de “rachadinha”.

5 – Dias mais tarde, durante o já citado debate virtual de 09 de setembro, Paulo Guedes explicitou que incentivar bons servidores significa aumentar os supersalários daqueles que já estão no topo da pirâmide: “É uma distribuição quase socialista. A dispersão de salário entre um salário do Supremo e um recém-egresso na carreira do Judiciário é ridiculamente baixa. Não pode haver essa dispersão tão baixa. Isso é uma negação de toda a meritocracia que existe ao longo dessa carreira”.