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MUNDO

Deterioram as relações EUA e China: Aplicativos e dados entre a segurança e os interesses – Parte III

Mario Conte. de Joinville, SC

No primeiro artigo desta série buscamos apresentar ao leitor o cenário do conflito entre a China e os EUA, cuja dimensão Gary Hufbauer, especialista do Instituto Peterson de Economia Internacional, nomeou como uma nova ‘Guerra Fria’, comparando-a ao antigo embate geopolítico entre EUA e URSS. Segundo ele, pelas dimensões das economias e dos interesses em jogo “(…) essa guerra vai durar pelo menos tanto como aquela ou até mais. Sei que não é uma perspectiva muito bonita, mas é a que vejo”, porque “como aconteceu na Guerra Fria, os dois lados procurarão aliados para se reforçar, mas a China tem mais habilidade para isso. A Rússia atraiu aliados com a ocupação militar. Pequim não precisa [o presidente chinês] Xi Jinping está usando a economia para colocar os outros países em sua órbita”. Hufbauer foi um analista muito prestigiado no ocidente durante a antiga Guerra Fria.

Como já afirmou um senador norte-americano, Hiram Johnson, “em uma guerra, a primeira vítima costuma ser a verdade”. Ainda que no caso a expressão guerra seja uma metáfora para a dimensão do desentendimento dos dois países, a máxima de Johnson se aplica com justeza à situação. Inúmeras matérias e artigos que descrevem o conflito são escritos com a intenção de demonstrar que este ou aquele país é o grande vilão, quase sempre colocando o outro como vítima inocente. 

O ex-embaixador do Brasil nos EUA Sérgio Amaral, declarou em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo que a questão entre EUA e China deve plasmar toda a organização do período pós-coronavírus em áreas que vão do desenvolvimento tecnológico às parcerias comerciais. “Na medida em que os dois principais polos do eixo de poder possam assumir formas de confronto, de hostilidade, isso vai levar a uma disputa pela conquista de áreas de influência e de aliados ou adversários”, disse o ex-embaixador.

Nossos artigos visam superar todo maniqueísmo estreito e demonstrar que cada nação se move em torno de interesses econômicos e visando consolidar grandes fatias de mercado para empresas privadas locais. Os movimentos de ambos os países se dão à margem dos interesses sociais de suas respectivas populações. Mas na busca do apoio delas, ambas as nações mantém uma verdadeira guerra informacional e responsabilizam a outra pelo conflito, declarando-se disposta a uma paz negociada, o termo sempre esquecido do binômio de Carl Von Clausewitz, constantemente citado apenas em seu primeiro termo, “a guerra é a política por outros meios”.

Em abril deste ano, um estudo do Pew Research Center apontava que 66% dos norte-americanos têm opinião desfavorável sobre a China. Apenas 26% da população norte-americana vê a nação oriental de forma positiva. Esta é a maior proporção desde 2005, quando a pesquisa foi realizada pela primeira vez. Já uma pesquisa da Universidade Renmin de Pequim, feita com uma centena de acadêmicos chineses, aponta que 62% deles acreditam que os Estados Unidos querem lançar uma guerra fria contra seu país.

Entre as diversas acusações dos EUA na grande mídia, é recorrente a de que empresas chinesas permitem acesso às autoridades do país dados dos seus clientes e usuários. No artigo anterior discorremos como o gigante de comunicações Huawei sofre sanções dos EUA, que tentam estendê-las a outros países, sob alegação de cessão de dados ou mesmo espionagem para o governo chinês. 

O governo americano deve ir além desse conjunto de sanções e aumentar suas pressões às companhias chinesas listadas na bolsa de valores do país. O Tesouro americano e a SEC (equivalente à Comissão de Valores Mobiliários) pretendem exigir das companhias chinesas a apresentação de auditorias contábeis às autoridades dos EUA. Caso não o façam, poderão ser impedidas de operarem no mercado de ações norte-americano.

Aplicativos como alvo

Em julho, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo afirmou em entrevista à rede de tv norte-americana Fox News que o país cogita banir a plataforma de vídeos curtos TikTok. A plataforma é amplamente utilizada pelo público jovem e foi um dos aplicativos com maior número de downloads do ano. Pompeo alega preocupação com a segurança nacional e que só deveriam usar o TikTok “quem quer que seus dados acabem nas mãos do Partido Comunista Chinês”. A plataforma de vídeos é alvo de investigação do Federal Trade Commission (FTC, uma agência governamental que investiga negócios considerados fraudulentos ou injustos) e do Departamento de Justiça dos EUA por supostamente violar a privacidade de crianças nos EUA.

Segundo Pompeo a segurança dos dados do cidadão norte-americano é uma preocupação do congresso. Ou talvez caiba perguntar se o problema da segurança nacional se resuma a quem detém os dados, já que o Congresso pareceu menos zeloso em relação ao uso de dados dos usuários, quando convocou para julho deste ano depoimentos de Jeff Bezos (Amazon), Tim Cook (Apple), Mark Zuckerberg (Facebook) e Sundar Pichai (Google), quatro homens responsáveis por negócios que movimentam em valor estimado em 4,85 trilhões de dólares nos EUA.

O comitê antitruste da câmara de deputados dos EUA os ouviu em meio a uma investigação de mais de treze meses, onde todos eram acusados de utilizar seu enorme poder para afetar seus rivais e causar danos aos consumidores. A Amazon foi acusada de abusar de seu papel de varejista para forçar outras empresas a venderem em sua plataforma; a Apple foi acusada de bloquear rivais na App Store e forçar aplicativos a pagar altas comissões para terem acesso à loja de aplicativos para usuários de IPhone e Mac; o Facebook foi acusado de prática de monopólio nas redes sociais e finalmente a Alphabet, a empresa mãe do Google, recebeu inúmeras acusações de práticas desleais nas áreas de buscas e pesquisas via internet, anúncios online e sistemas operacionais para smartphones

O uso de dados de usuários, uma moeda de troca das mais valiosas na era da informação e prática comum de toda e qualquer empresa que atue em ambiente virtual, não foi mencionado, já que o objeto da investigação era prática ilegal de comércio e, aparentemente, o uso de dados para influenciar um usuário ao consumo é uma prática perfeitamente legal. Algumas dessas plataformas são verdadeiros ambientes virtuais permanentes de oferta de produtos, ainda que disfarçados de plataformas de entretenimento ou informação, e coletam, sem o conhecimento do usuário, todo tipo de dado da sua navegação em ambiente virtual, visando dirigir uma oferta de produtos cada vez mais personalizada, que é um eufemismo para irresistível.

Foi permitida a realização dos depoimentos dos bilionários por videoconferência. Mark Zuckerberg pode fazer o seu em sua própria mansão no Havaí, indicando quão implacável se pretendia o interrogatório. A pesquisadora da escola de direito da Universidade de Georgetown, Gigi Sohn, se referiu à farsa como sendo “o momento ‘do tabaco’ para o setor” tecnológico, em referência a uma sessão do Congresso dos EUA em 1994, quando os líderes de sete marcas de cigarros norte-americanos declararam aos congressistas que cigarros não viciavam ou causavam mal às pessoas.

Comprovando que o setor tecnológico anda em excelente companhia, os outros setores que já participaram do mesmo tipo de sessão foram as grandes farmacêuticas e os grandes bancos. Todos operam hoje sem problemas porque não houve maiores consequências. Mas são todas empresas que fazem a “América grande” e talvez por isso Pompeo convenientemente não viu nessa convocação uma pequena sombra da ameaça terrível que a TikTok representa ao país.

No dia seis de agosto, o Donald Trump assinou uma ordem executiva, que equivale a um decreto presidencial, que determinava o banimento da plataforma chinesa nos EUA. Mesmo antes do anúncio do presidente, pela grande popularidade da plataforma de vídeos com o público jovem, a Microsoft já demonstrava interesse em comprar a operação da plataforma em parte da América do Norte, Austrália e Nova Zelândia. Antes disso, Trump fez muitas declarações públicas atribuindo à TikTok uma suposta apropriação e uso não autorizado dos dados de seus usuários. 

O presidente norte-americano, o presidente da Microsoft, Satya Nadella, e o Comitê de Investimentos Estrangeiros nos Estados Unidos (CFIUS) encontraram-se para estabelecer as regras para a transação. Foi estipulado o prazo de até 15 de setembro para a conclusão do negócio.

Os decretos de Trump se apoiam na Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional. Essa lei concede ao governo amplo poder para impedir que empresas ou cidadãos dos EUA comercializem ou conduzam transações financeiras com partes sob sanção.

Trump ainda chegou a afirmar publicamente que uma “parte significativa do dinheiro” da compra da plataforma chinesa deveria ser destinada ao Tesouro dos Estados Unidos, porque o governo estaria viabilizando essa transação. Se confirmada, a transação pode chegar a 30 bilhões de dólares segundo uma reportagem publicada no site CNBC. Mas a transferência de valor ao Tesouro poderá ser contestada judicialmente. Ainda que a lei dos EUA não submeta a revisões judiciais as decisões presidenciais que impedem acordos por motivos de segurança nacional, a quinta emenda da Constituição dos EUA proíbe o governo de apreender propriedades sem justa compensação, o que ainda é garantido por diversas outras leis do país. Afinal, o direito à propriedade privada é uma das bases da sociedade civil norte-americana. E entre esses direitos, é quase sacrossanto o direito à propriedade de meios de produção de riquezas.

A ópera dos dez centavos

Também foram alvo de restrições a transações nos EUA os proprietários chineses do aplicativo de mensagens WeChat pelo mesmo decreto promulgado no dia seis de agosto. 

A empresa controladora do aplicativo WeChat é a Tencent, que tem hoje uma capitalização de mercado superior a 600 bilhões de dólares. A controladora da plataforma de vídeos TikTok é a Bytedance.

O aplicativo WeChat é utilizado na China para compartilhamento de mensagens e fotos e para receber notícias, como os brasileiros costumam usar o WhatsApp. Mas os chineses ainda fazem uso do WeChat para realizar compras, pagar contas e realizar envios de remessas de dinheiro. 

O aplicativo é uma das únicas pontes entre ocidentais e orientais, não apenas nas comunicações, mas em transações e negócios, uma vez que o há uma muralha de filtros e censores controlando o tráfego de dados via internet na China, conhecida como Grande Firewall. O que torna o aplicativo a principal a forma de contato e envio de remessas de dinheiro entre imigrantes chineses e moradores da China. O número de usuários mensais do WeChat é estimado em 1,2 bilhão de pessoas. 

O decreto de seis de agosto poderá ainda impedir companhias americanas de realizarem anúncios dos seus produtos no WeChat, o que as apartaria do mercado de consumo gigante chinês. E a Tencent poderá ser impedida de distribuir o WeChat pelas lojas de aplicativos da Apple e do Google, fazendo com que os usuários que já utilizam o aplicativo não recebam mais atualizações, o que impediria seu funcionamento na prática.

Também o mercado de hardware norte-americano poderá ser impactado pelo decreto, já que por ele a Tencent fica impedida de comprar equipamento americano para seus servidores. 

A Tencent tem investimentos diversificados fora da China. Grande parte de sua receita no exterior vem da área de videogames. A Tencent é dona da Riot Game, que desenvolve a League of Legends, e ainda de grande parte da Epic Games, que faz o Fortnite, um jogo que possui cerca de 250 milhões de usuários e a maior receita anual de games do mundo. A Tencent também possui uma unidade de cinema, a Tencent Pictures. Através dela participou de produções recentes de Hollywood, como os filmes Venon, A Mulher Maravilha, Bumblebee e o filme mais recente da franquia Terminator (O Exterminador do Futuro). A Tencent é expressão do entrelaçamento das economias chinesa e americana, que faz com que investimentos e transferência de capitais e valores nas trocas mútuas retornem em novos investimentos e trocas. Uma medida que afete e prejudique uma empresa pode repercutir como uma onda de choque desde o epicentro, ou da mesma forma que prejudicar uma única espécie de um ecossistema o impacta como um todo, pois quebra uma cadeia de relações em equilíbrio, afetando indiretamente outras. Foi assim com a guerra comercial travada por tarifas.

Sheena Greitens, professora adjunta da Universidade do Texas, em Austin, afirma que ao decreto “faz com que a política do governo entre em choque com mais um dos seus objetivos declarados: a manutenção da abertura e de relações amistosas com o povo chinês”.

Trump parece ter o seu entendimento particular de relações amistosas, que é consumir produtos americanos e não almejar desenvolvimento tecnológico que agregue valor aos próprios produtos e os torne competitivos no mercado internacional.

TikTok se defende

Os investidores chineses preferem que o controle da TikTok permaneça em seu país. Fred Hu, presidente da Primavera Capital Group, investidor da ByteDance se referiu ao anúncio dizendo que “Isso absolutamente não faz sentido. A Bytedance é uma vítima inocente da loucura da política e da geopolítica.” porque o banimento dos EUA “é um resultado triste para a Bytedance, para o capitalismo empreendedor e para o futuro do comércio global”.

E Zhang Yiming, o fundador da ByteDance, garantiu que ainda não foi encontrada uma solução final para a venda de seu negócio nos Estados Unidos a uma empresa norte-americana. Em uma carta interna aos funcionários da empresa, Zhang disse que ByteDance não está “de acordo com a decisão” de vender sua filial norte-americana e que a venda foi imposta por Washington. Uma imposição despropositada e baseada em falsas acusações, já que a ByteDance “sempre se comprometeu a proteger os dados dos usuários e manter a neutralidade e transparência” e que o TikTok “nunca compartilhou dados dos usuários com o governo chinês, nem censuramos conteúdo a pedido dele”.

O TikTok alerta ainda para uma insegurança jurídica nos negócios como consequência direta do decreto de Trump. A decisão executiva teria o efeito de levantar suspeição do vigor do Estado de Direito nos EUA e minar a confiança das empresas globais no compromisso dos EUA com o cumprimento dos contratos, porque abre “precedente perigoso para o conceito de livre expressão e mercados abertos”.

A mesma retórica de defesa da liberdade é empunhada por cada contendor. Ora pisoteada e menosprezada, ora citada e exaltada por ambos os lados, sempre para cobrir seus respectivos interesses com o véu da ideologia que ganhe mais simpatia da comunidade internacional.

Quem vigia os vigilantes?

O decreto de Trump parece ser uma retaliação à plataforma de vídeos. No dia 20 de junho ocorreu em Tulsa um comício da campanha de Trump à reeleição. Na mesma semana Trump postou em seu Twitter que a organização havia recebido “mais de um milhão de pedidos de ingressos” e foi preparada uma estrutura para que os discursos dele e do seu vice Mike Pence pudessem ser transmitidos a uma multidão que permaneceria do lado de fora do local. Na prática, grandes lacunas no interior e nenhuma multidão do lado de fora. Um porta-voz do departamento de bombeiros da cidade estimou a presença de apenas 6.200 pessoas no evento. Jovens usuários do TikTok assumiram ter organizado uma sabotagem ao requisitarem centenas de milhares de ingressos sem intenção de participarem do evento. As requisições massivas foram impulsionadas por uma verdadeira campanha através de vídeos via plataforma TikTok. Os vídeos foram apagados posteriormente sem deixar rastro. Os mesmos usuários também encamparam a campanha Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) no ambiente virtual em meio às manifestações antirracistas que afluíram no país. Derrubaram hashtags que se opunham ao movimento e inviabilizaram o aplicativo da polícia de Dallas, que solicitava denúncias de atividades supostamente ilegais do movimento, ao sobrecarregarem o mesmo. 

Os usuários de TikTok nos EUA também são responsáveis pela remoção de hashtags da teoria da conspiração QAnon, que tem origem em supremacistas brancos norte-americanos e é pró Trump. A QAnon constitui-se de uma série de delírios que negam a existência dos levantes antirracistas ou de mudanças climáticas, ou ainda questionam a gravidade da pandemia de coronavirus. Sobre a pandemia, espalham factoides que afirmam que ela foi criada em laboratório a mando de Bill Gates. Ainda, segundo os delírios da comunidade, uma vacina seria financiada pelo mesmo Bill Gates com a finalidade de implantar os chips que controlariam as pessoas. Ainda que pareçam não convencer ninguém, porque mais se assemelham a um roteiro ruim de um péssimo seriado de segunda categoria, essas absurdas teorias conspiratórias aumentaram sua audiência na rede social Facebook durante a pandemia, após serem banidos do Twitter. 

Cerca de um mês depois da sabotagem ao comício de Tulsa, Mike Pompeo, comentou a possibilidade de banir a plataforma TikTok por questões de segurança ao anunciar um plano chamado “Clean Network” (“Redes Limpas”). O plano visa impedir que aplicativos cosiderados não confiáveis, segundo a classificação norte-americana, acessem informações confidenciais dos norte-americanos. Mas as preocupações de Trump e Pompeo com o aplicativo devem-se muito mais ao potencial de seu uso inteligente para ações políticas, quer ao organizar campanhas em ambiente virtual, quer ao viabilizar ações no mundo real, a despeito da sua aparência inofensiva e ainda pelo fato de que não há como rastrear e punir os autores, se os dados desses usuários permanecem seguros fora do país. As redes limpas de Trump e Pompeo têm espaço para a imunda teoria conspiratória QAnon tanto quanto a convenção republicana tem espaço para suprematistas brancos que ameaçam a liberdade de manifestação com armas em punho. Não é o controle dos dados dos usuários que está em questão, mas quem pode controlá-los e assim fazer uso punitivo deles, o que interessa aos paladinos da liberdade tanto quanto o direito das estátuas e monumentos estava acima do direito à livre manifestação e de defesa das vidas quando Trump deslocou tropas para reprimir manifestantes antirracistas.

É importante lembrar que o TikTok também foi fechado em Hong Kong desde a entrada em vigor da nova lei de segurança nacional da China. Por que um colaborador com o Estado chinês no sequestro de dados seria proibido por uma lei que visa limitar liberdades democráticas, como as de liberdade de manifestação, organização e expressão na ilha? A declaração do porta-voz da campanha de Trump, Tim Murtaugh, em um comunicado após a sabotagem ao comício de Tulsa parece com algo que diria uma autoridade de Pequim em relação aos manifestantes de Hong Kong: “Os esquerdistas sempre se iludem que estão sendo espertos. O registro ao comício significa apenas que você confirmou presença com um número de celular”. “Mas nós os agradecemos pelas informações de contato.”

Segundo Mary Gallagher, diretora do International Institute na Universidade de Michigan University e professora do Centro para Estudos Chineses da mesma instituição, “Os anúncios recentes sobre o (bloqueio) do TikTok e do WeChat são parte de uma tendência mais ampla que começou com a Huawei e a ZTE, mas demonstram uma ampliação do escopo para além apenas de preocupações com segurança nacional para outras mais amplas sobre censura, vigilância e segurança de dados pessoais”.

O fato é que os jovens usuários são muito espertos, conhecem os algoritmos e sabem impulsionar ou derrubar as hashtags que lhes interessam. Banir a plataforma ou fazer com que os dados dos usuários estejam em servidores de uma empresa norte-americana é muito mais eficiente do que as ameaças de Tim Murtaugh.

O embate entre duas potências econômicas se deve muito mais às suas semelhanças que às supostas diferenças. Regimes de acumulação de valor baseados na superexploração do trabalho foram as respectivas bases de crescimento econômico de ambos na última década, uma acumulação que visava a recuperação econômica do que foi pulverizado durante a grande crise econômica de 2008. Uma acumulação de valor que se faz com maior dificuldade e que em todo o mundo flerta com regimes mais autocráticos, que restrinjam direitos sociais, para que consiga se realizar no mesmo patamar anterior.

As expressões particulares desse embate que ocorre simultaneamente em muitos meios, compõem uma totalidade complexa, mas não autônoma e ela mesma componente de uma totalidade maior, a rede de relações política e econômica dos dois país e esta é, ainda, parte da totalidade que é a geopolítica e a economia mundiais.

Há muito mais em jogo que preservação de dados particulares ou o uso de uma plataforma de vídeos por jovens que buscam entretenimento e alheios ao desenvolvimento do embate China e EUA.

Como alertávamos no encerramento do artigo anterior, não há, do ponto de vista da classe trabalhadora, lado progressivo que defina a disputa rumo aos seus interesses. Como sempre na história, somente a auto-organização independente, pelos seus próprios meios poderá apresentar alternativa às superestruturas dos Estados que ora se digladiam no interesse de seus conglomerados privados. Uma auto-organização que segue bloqueada em ambos os países, quer pelo poder gigantesco do regime bonapartista chinês, quer pela capacidade dos grandes aparatos norte-americanos canalizarem as pautas e reivindicações de sua classe operária. Por enquanto, a velha toupeira segue escavando.