Por: Lucas Duarte, de Buenos Aires, e Rejane Carolina Hoeveler, de Osasco
Em dois momentos de seu discurso de posse, em dezembro do ano passado, o recém-eleito presidente da Argentina, Alberto Fernández, recuperou uma expressão cujo conteúdo costuma ser compartilhado pelos setores progressistas e de esquerda naquele país: “nunca mais é nunca mais”. A sentença pretende ratificar o compromisso com a superação definitiva de um passado ditatorial-militar (1976-1983) e seu saldo abominável de 30 mil desaparecidos. Quando, por volta do meio dia da última quarta, 09 de setembro de 2020, efetivos policiais da província de Buenos Aires, armados e embarcados em seus carros de patrulha, sitiaram a residência presidencial em Olivos, a palavra de ordem foi deslocada: do compromisso foi ao alarme.
Alguns dias antes, em um episódio difícil de descrever, “manifestantes” queimaram máscaras em um dos principais pontos da cidade, o Obelisco. Quando logo ficou clara a péssima repercussão do ritual negacionista, os principais jornais do país, Clarín e La Nación, ajudaram a espalhar a fake news de que os responsáveis pela queima das máscaras teriam sido militantes do grupo La Cámpora, uma agremiação essencialmente juvenil e kirchnerista.
A mobilização policial, além das fake news, é uma das modalidades, bem conhecida por nós brasileiros, de ação política da extrema-direita. O levantamento da última quarta-feira foi denunciado ao longo do dia por personalidades públicas de variados matizes políticos, inclusive alguns de direita. Mereceu, no entanto, explícito apoio por parte de figuras públicas e amplos setores vinculados ao ambiente direitista e conservador. No começo da noite, um dos candidatos da extrema-direita neoliberal nas eleições vencidas em 2019 por Fernández, José Luis Espert, lançando mão de seu dialeto repressivo habitual, divulgou um vídeo de apoio ao levantamento no qual se lia: “nós estamos com a polícia, nunca com os delinquentes”. As imagens do economista ultraliberal comungando com amotinados repressores parece querer-se constituir como um signo destes tempos.
Da derrota eleitoral aos portões do Congresso: a “batalha cultural” em marcha
Os baixíssimos percentuais de votação obtidos pelos candidatos de extrema-direita como Gómez Centurión ou José Luis Espert poderiam levar à conclusão de que não havia, na Argentina, nenhum espaço para o crescimento de figuras e organizações como as que vimos surgir, crescer e chegar ao poder nos últimos anos em outros países.
Embora não tenha sido o eixo central da campanha eleitoral de 2019, o crescimento do número de adeptos das ideias de direita radical era já perceptivo no país. Ele começou em torno a figuras como o militar reformado Juan José Gómez Centurión e o próprio Espert, ao longo do pleito, no qual se aglutinaram tendências associadas precisamente ao ideário compartilhado pelas “alt-right” contemporâneas: a raivosa oposição ao movimento de mulheres e sua associação à fantasiosa “ideologia de gênero”; a denúncia paranoica de um suposto “domínio global” do “marxismo cultural”, através do “politicamente correto” etc; a defesa de princípios econômicos profundamente neoliberais associada a uma reivindicação do robustecimento do aparato repressivo do Estado.
Não espanta, portanto, o abraço entre o economista e o cassetete. Por detrás dessa “maré celeste”, designada dessa forma em oposição à marea verde identificada com o fortíssimo movimento de mulheres no país, há uma série de agentes vinculados a aparelhos privados de hegemonia empresariais (auto declarados think thanks) nacionais e internacionais, responsáveis pela produção de conteúdo – de circulação proeminente nas redes sociais – dirigido à atração de jovens e, nas palavras de um dos mais destacados idealizadores locais desses organismos, a “prover os militantes de direita de um aparato intelectual acorde a suas crenças”.
Trata-se de Agustín Laje, autor, junto a Nicolás Márquez, de “El libro negro de la nueva izquierda”, idealizador e presidente da Fundación Libre. De acordo com apresentação disponível no site do próprio instituto, seus objetivos seriam os de “assumir protagonismo na batalha cultural que se está desenvolvendo no Ocidente, com o intuito de confrontar a ideologia progressista hegemônica e o império do politicamente correto, e impulsar ideais de liberdade individual, responsabilidade e republicanismo”.
Para ficarmos em um exemplo deste recente crescimento da audiência desses youtubers e influencers da nova direita, há cerca de uma semana, a Fundación Libre divulgou em seu canal de Youtube, com legendas em espanhol, um vídeo aparentemente produzido em 2016 nos EUA, sob o título “estudante debate com professora feminista (e sai ganhando)”. À frente da sua turma, um jovem estudante sustenta uma argumentação esdrúxula enquanto é filmado pelo celular de algum dos companheiros. Entre outras coisas, identifica o feminismo como uma luta por privilégios enquanto nega realidade às diferenças salariais entre homens e mulheres ou à existência de uma cultura do estupro. A réplica da professora parece inspirar respostas cada vez mais oblíquas e habilitar o tom de deboche recebido com graça por alguns assistentes. A publicação se tornou uma das mais populares do canal que é responsável pela difusão de materiais francamente favoráveis ao governo Bolsonaro, incluídos vídeos intragáveis com depoimentos de figuras como Sara Winter – o que nos evidencia uma ligação orgânica desse aparelho privado de hegemonia com o bolsonarismo.
Os trending topics do Twitter na noite seguinte ao motim policial em frente ao palácio presidencial, a 10 de setembro, parecem ter muito a dizer sobre o fortalecimento desse grupos. As denúncias sobre a gravidade do motim policial feitas por personalidades vinculadas a Cambiemos, partido do ex-presidente Maurício Macri, foi alvo de duras críticas por parte de setores da direita radicalizad – que impulsionaram, ao longo do dia, a hashtag “morreu cambiemos”. Se a direita argentina já maneja a utilização de bots para impulsionar hashtags como fazem os bolsonaristas no Brasil, ainda não sabemos. Mas não surpreenderria.
Além disso, algo que também nos é familiar, é ameaça de golpe ter começado a invadir as pautas de discussão política do país, desde que, no dia 25 de agosto, o ex-presidente Eduardo Duhalde afirmou publicamente que o governo de Fernández terminaria em “uma espécie de guerra civil” e que não haveria eleições. O simples fato de que um personagem como este, com alegados contatos nas Forças Armadas, tenha cravado esta afirmação no cerne do debate político nacional já é grave por si – existindo ou não uma real ameaça/possibilidade de golpe. O que importa é o clima propício para ações da direita e aumento do poder de chantagem/barganha da mesma.
Inviabilização do governo e/ou golpe brando à vista?
As marchas antiquarentena começaram a forjar e/ou fortalecer movimentos e lideranças de extrema-direita já existentes anteriormente, pois, como vimos, em sua maioria elas já tinham dado as caras nas eleições. É interessante notar, entretanto, que a pauta das manifestações vai se direitizando conforme são apresentados projetos de lei pelo governo: os manifestantes passam de reunir-se sem máscaras com cartazes e buzinaços, para tentativas recorrentes de invadir o Congresso durante determinadas votações.
Primeiro, os “manifestantes” focavam naquilo que a direita batizou de “infectadura”, uma suposta ditadura de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, que estariam em conluio com forças estrangeiras, utilizando-se da pandemia do novo coronavírus para extinguir liberdades individuais. Há uma mudança de cenário, que não necessariamente significa uma mudança na correlação de forças, afinal na Argentina ainda é possível contar com movimentos sociais (sindicais, feministas, populares) bastante combativos, capazes de organizar greves gerais reais etc.
Em sua ala mais caricata, Baby Etchecopar, figura extremamente midiática, grande admirador de Bolsonaro, e que será candidato a deputado com apoio de Macri, é aparentemente um dos organizadores de supostos “exilados” políticos argentinos em Miami – e aqui o cinismo e o auto-vitimismo não deixam em nada a dever aos bolsonaristas. Lá como cá, figuras como Etchecopar estiveram durante muitos anos na televisão e rádio, ainda que com menos espaço e atenção, em programas menores em emissoras marginais, nesse estilo que comumente se chama de “programas de farândula” (do tipo do programa de Luciana Giménez, onde Bolsonaro era frequentemente convidado muito antes de ser um “presidenciável”).
Constatar isso é o que nos leva a pensar a atual ascensão da extrema-direita como uma marcha, e não como um raio em céu azul: possivelmente, um elemento ideológico fascistóide que existia nas ditaduras militares dos anos 1960 e 1970, e que apesar da justiça de transição seguiu sendo cultivada em democracia; bem como é o caso também da violência da polícia contra os subalternos.
Em 30 de julho, o ex-presidente Mauricio Macri, cujo nome foi para todas as manchetes a partir de um escândalo de escutas telefônicas e intervenção na Polícia Federal Argentina, entre outros casos gravíssimos de corrupção, sai fugido para Paris, desde onde passou a apoiar de maneira entusiasmada e irrestrita a oposição com negacionismo, com tudo. Tudo parecia estar sob controle do governo atual, afinal se estavam descobrindo as mais escabrosas maracutaias da gestão Macri. Além disso, em menos de seis meses de gestão, Fernández conseguiu um acordo considerado excelente com o FMI, em uma negociação extremamente difícil devido à elevação do endividamento realizado pelo macrismo. Entretanto, a oposição de direita passou a uma posição muito mais radical, habilitando os discursos de tipo fascista e negacionista.
A intenção da oposição, que ficou clara em diversos episódios, como no caso da morte de Fabián Gutiérrez, ex-secretário de Cristina Kirchner, quando a aliança Juntos por el Cambio, Patricia Bullrich (ex-ministra de Segurança de Macri) à frente, assinou uma carta na qual, ainda que não de forma explícita, ameaçava romper com o consenso democrático – e inviabilizar o governo Alberto Fernández.
Dessa forma, todo tipo de proposta proveniente do governo, como a de reforma judicial, a qual busca evitar as nefastas alianças judiciais/midiáticas que por aqui bem conhecemos, é barrada seja por estratégias de esvaziamento de quórum nas votações no Congresso, seja pela mobilização radicalizada dessas bases.
Na primeira semana de setembro, os principais grupos de comunicação do país, o Clarín (conglomerado midiático muito além do jornal), e o La Nación (a aliança é tão grande que por vezes os dois exibem manchetes praticamente idênticas, como se escritas pelo mesmo redator), fizeram as mais bizarras montagens contra a proposta de reforma judicial – cujo centro, na verdade, era uma simples mudança em lei já existente, a qual reza sobre a neutralidade do trabalho do juiz de pressões empresariais, político-partidárias, de amizades, e, também – isto propunha acrescentar à lei um senador kirchnerista – “midiáticas”.
Outro marco importante para o crescimento das marchas direitistas, e provavelmente do financiamento empresarial a elas dedicado, foi o episódio envolvendo o conglomerado empresarial Vicentin, de exportação de produtos primários e um dos mais importantes do país, que se encontrava em default com o Banco Nacional Argentino e credores internacionais e também envolvida em denúncias de corrupção. O governo de Alberto Fernández tentou nacionalizar o grupo, tornando o Estado, ao invés de credor, acionista da empresa, o que foi visto imediatamente por toda classe capitalista como uma grande ameaça de expropriação. Logo surgiram “manifestações” “espontâneas” e hashtags “somos todos Vicentin” etc.
A gota d’água, entretanto, parece ter mesmo sido a proposta de que alguns bilionários argentinos dispusessem de um percentual mínimo para contribuir ao Estado nesse momento de crise sanitária e econômica (chamado de “aporte extraordinário das grandes fortunas”), algo na verdade menos pretencioso do que propriamente uma taxação de grandes fortunas, mas que pareceu suficiente para despertar a ira dos grandes proprietários e a constante ameaça de desinvestimento e boicote econômico.
“Novas convergências” na América Latina
Já em meados do ano passado, os sociólogos e pesquisadores Analía Goldentul e Ezequiel Saferstein, chamavam a atenção para o mercado editorial ao redor de publicações como as de Laje, e o crescimento de sua penetração entre o público juvenil, entre outras coisas. A massificação desse tipo de discurso se fez mais evidente desde o início da pandemia, especialmente durante a organização de marchas contrárias à quarentena. Em meio à mobilização mais recente, realizada no dia 17 de agosto, não faltavam cartazes que denunciassem: “o vírus é o marxismo”.
A mistura de teorias conspiratórias que denunciam o avanço comunista mediante o marxismo cultural e de uma ideologia francamente conservadora vinculada a grupos religiosos – católicos e evangélicos – tem canalizado em um mesmo sentido uma diversidade de tendências ultradireitistas. Conforme apontam em outro texto Martín Vicente, Sergio Morresi e o mesmo Saferstein, unificadas em torno a uma oposição ferrenha ao governo de Fernández, um anti-kirchnerismo arraigado, e com um incontornável apelo obscurantista, duas gerações da direita parecem confluir: a mais antiga, nostálgica, em alguns casos, do antigo ordenamento castrense; e nova direita, remodelada em torno a um discurso ultraliberal na economia e profundamente reacionário em relação às liberdades individuais. Nas palavras dos autores,
“Parece cedo para falar de uma síntese entre as famílias de direita na Argentina. Os liberal-conservadores e os reacionários nacionalistas continuam a ser atores diferentes. No entanto, sua capacidade de se encontrar e atuar conjuntamente por um período prolongado é uma novidade com consequências. Uma delas é a capacidade de mobilizar setores juvenis, algo que contrasta com a imagem de uma direita envelhecida que exala tons castrenses. Outro efeito desta convergência é a formação de uma argamassa conceitual onde diferentes visões (antifeminismo, vozes anticientíficas, busca de hierarquias e rejeição do cosmopolitismo) encontram um marco estruturante. Por fim, graças à dinâmica do ecumenismo de ocupação do espaço público, a cara da direita argentina está mudando: as retóricas extremas ganharam espaço na direita mainstream, mas também estão permeando o campo político em um sentido mais amplo.1
Podemos levantar a questão, a partir dessa precisa análise dos autores argentinos, bem como a partir da recente contribuição do marxista britânico David Renton2, de se não estaríamos a chegar no ápice, na América Latina, da onda de convergências/fortalecimento da direita, com uma possível queda de um dos últimos bastiões anti-golpistas que restavam na região, a Argentina. As disputas pela direção dos movimentos direitistas em crescimento parece longe de seu desenlace, tanto quanto é difícil prever que rumos serão assumidos pela recente radicalização. Às forças regressivas que se levantam será preciso responder não só com palavras: nunca mais é nunca mais.
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