A imprensa brasileira e internacional deu bastante destaque para as manifestações ocorridas na Argentina no dia 17 de agosto, denominadas de Banderazo ou 17A. Os protestos foram convocados pelas redes sociais e tiveram uma clara oposição às medidas adotadas pelo governo de Alberto Fernández, do Partido Justicialista, nesse período de pandemia.
A manifestação ocorreu em várias cidades e províncias importantes do país, não tiveram a participação das organizações de esquerda e parecem ter sido convocadas por setores econômicos de direita, mais próximos ao ex-presidente Maurício Macri, do partido Proposta Republicana (PRO). As bandeiras levantadas no protesto foram: Revisão das políticas de restrição e controle da Covid-19 e de defesa do retorno das atividades econômicas, e contra a Reforma do Judiciário, que segundo a oposição tem o objetivo de proteger a vice-presidente Cristina Kirchner (milionária) de julgamento por casos de corrupção.
Ainda não temos como explicar a dimensão geral da situação política e econômica porque passa o país vizinho e neste artigo nos propomos a expor algumas das questões que achamos importantes para entender o que está ocorrendo na terra de Evita Peron e Maradona.
O efeito pandemia
A Argentina possui um quadro de infecção por Covid-19 bem abaixo da maioria dos países latino americanos. Isso se deve a uma política forte de restrições desde o início das contaminações, e com isso evitaram o colapso do sistema de saúde. Os números de infectados e mortos é um dos mais baixos em termos percentuais das Américas e não se compara a países como México, Peru, Chile e Brasil. Ressalte-se que o país apostou na testagem (dobro do que o Brasil utilizou) o que lhe possibilitou maior controle.
Até a produção desse texto o país tinha 461.869 casos, 331.608 recuperados e 9.623 mortes, porém na sexta feira 28 de agosto, foi registrado um número recorde de infectados num só dia, com 2.060 novos casos somando um total de quase 40 mil e 979 mortos. Isso levou o governo a estender a quarentena, que se iniciou em 20 de março, até 20 de setembro, mantendo as principais medidas de restrição diante do crescimento da pandemia em alguns lugares, principalmente na região da grande Buenos Aires.
O governo vinha flexibilizando algumas restrições em determinadas regiões, mas com o crescimento do número de infectados resolveu recuar. As medidas mobilizaram setores da oposição (direita) contrários às medidas de Fernández. Eles querem e liberação das atividades econômicas na região da capital, que ainda permanece no isolamento, alegando que o pico de infecções de Covid-19 se deu até início de julho, para isso usam informações de algumas autoridades de saúde, porém segundo o presidente a abertura de serviços pode colocar em risco o crescimento da infecção.
Com a flexibilização no início de julho, o número de mortos cresceu de mil para oito mil e o total de infectados ultrapassou a marca de 400 mil, ocasionando um razoável refluxo no combate à pandemia e elevando o tom crítico da oposição com manifestações contra os erros do governo na administração da crise sanitária. Entretanto, a ala dirigida pelos partidários de Mauricio Macri, quer mesmo denunciar a proposta de Reforma Judicial, apresentada pelo governo e aprovada no senado (presidido por Cristina Kirchner), no final de agosto.
O país contém ainda um baixo índice de infectados e mortos, apesar do crescimento do número de casos, o que garante ainda uma grande credibilidade ao governo, com a popularidade em torno de 69%. Porém os efeitos econômicos da pandemia sobre o país, em recessão, já vem se refletindo nos números da economia.
Crise econômica e instabilidade
A aplicação das políticas neoliberais na Argentina desde os anos de 1990 trouxeram consequências desastrosas ao país. Os últimos quatro governos não conseguiram recompor a economia, Nestor e Cristina Kirchner (peronistas) e Mauricio Macri governaram por 16 anos e o problema vem se arrastando e evoluindo. São décadas de crescimento da dívida pública (impagável) e aumento da desigualdade social, onde os dois blocos burgueses que se alteraram no poder não conseguiram resolver.
Desde 2013, a economia argentina entrou num período de estagnação, apresentando crescimento econômico lento, desvalorização do peso argentino, alta taxa de inflação e crescimento do endividamento externo. O quadro de crise econômica e social coloca o país numa situação de instabilidade e dúvida nesse momento onde a pandemia do coronavírus é quem vem ditando as regras.
Parece-nos evidente que os dois setores da classe dominante argentina têm responsabilidade com a situação e não representam um projeto de poder dos trabalhadores. Fernandez anunciou recentemente a renegociação de 99% da dívida com os credores internacionais o que deve dar um alívio financeiro limitado e breve ao governo. A dívida com credores privados estrangeiros é cerca de US$ 65 bilhões em títulos.
O presidente argentino garantiu que o país não pagará um peso além do que pode e, com um grupo de credores internacionais, exigiu uma proposta melhor. O número da dívida pública argentina chega a quase 90% do PIB e diante da recessão combinada, mas a pandemia, a projeção de queda do PIB de 2020 é de 5,7%, segundo o FMI. Há uma razoável crise entre a proposta apresentada pelo ministro da economia Martín Guzmán e os credores. “Guzmán disse aos representantes dos credores estrangeiros privados nesta semana que a Argentina não tem como pagar mais do que 50% do valor presente da dívida. Os credores estão irredutíveis e, nesta quarta-feira (18) ameaçaram levar o assunto para a justiça”.
Fernandez, que ainda não aplicou seu programa de campanha, aproveitou o contexto da pandemia e de popularidade em alta para apresentar no Congresso seu projeto de taxação de riquezas, nomeado de Aporte Solidário de Grandes Fortunas, o qual pretende taxar as fortunas que estejam acima de 14 milhões de reais e seria cobrado de uma única vez. Embora progressiva, a proposta é limitada e não resolve os problemas de fundo da crise econômica da Argentina.
A correlação de forças políticas revela uma complicada disputa entre os setores dominantes que no fundo não atenderam as necessidades mais urgentes da população pobre como o desemprego e o crescimento da miséria. A polarização em torno do projeto de Reforma Judicial é apenas uma demonstração da disputa entre os setores dominantes, que detêm o monopólio do poder do Estado argentino.
Sobre a Reforma Judicial
O projeto de reforma judicial aprovado no final de agosto, no senado, por iniciativa do governo foi construído com base na ideia de manter a independência do judiciário de interferências políticas como fora supostamente durante o governo de Macri. O projeto propõe, de acordo com Fernandez, “aumentar o número de membros do Supremo Tribunal, entre outras mudanças, para garantir o devido processo, acelerar os julgamentos e tornar a justiça independente do poder político”, segundo seu discurso.
Segundo a Casa Rosada, a proposta visa “organizar melhor” o sistema judicial e “superar a crise que afeta sua credibilidade”. O projeto funde os 12 tribunais penais e os 11 tribunais penais econômicos, além de criar uma justiça criminal federal com sede em Buenos Aires. A polarização em torno do projeto envolve os interesses dos dois blocos de poder que governaram nos últimos 16 anos. De um lado o ex-presidente Macri acusa o governo Fernandez de utilizar a reforma para proteger a corrupção durante o governo de Cristina e de outro o atual o atual governo defende que os quatro anos de governo de Macri “foram marcados por medidas que afetaram as regras de imparcialidade que devem conduzir a ação judicial em um Estado de Direito“.
Segundo os macristas, o objetivo da reforma é proteger a ex-presidente Cristina Kirchner, presidente da Argentina de 2007 a 2015 e atual vice-presidente de Fernandez. Cristina é acusada em vários processos de corrupção, suborno passivo e em concessões de obras públicas durante o segundo mandato entre 2011 e 2015, onde muitos dos seus aliados foram presos por corrupção ativa e soltos coincidentemente no ano de 2020 logo depois que o então presidente tomou posse.
O projeto de lei de reforma do sistema judiciário foi aprovado no dia 28 de agosto no Senado argentino por 40 votos a favor e 26 contra e deve seguir para a Câmara onde o governo terá mais dificuldade para aprovar a reforma, pelo fato da oposição possuir a maioria dos votos. A oposição denuncia o governo de ser um fantoche da vice-presidente Cristina Kirchner que é, segundo eles, quem manda no governo. O vencedor nessa disputa ainda está em aberto. O que se sabe é que está no centro da luta política enquanto os interesses da classe trabalhadora seguem em último plano.
*Abel Ribeiro é sociólogo, professor e militante da Resistência/PSOL.
Referências
https://www.cartacapital.com.br/mundo/argentina-caminha-para-a-taxacao-das-grandes-fortunas/
https://veja.abril.com.br/mundo/america-latina-e-a-regiao-com-mais-casos-de-covid-19-no-mundo/da media mundial
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