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MUNDO

Eleições parlamentares venezuelanas: entre a agressão imperialista e o assédio da burocracia

Elio Colmenarez, de Caracas, Venezuela. Tradução: Celia Regina

Em dezembro deste ano, terão lugar as eleições dos membros da Assembleia Nacional que deverá se instalar a partir de 5 de janeiro de 2021, de acordo com o estabelecido na Constituição da República Bolivariana da Venezuela (CRBV), e que é de crucial importância para os destinos políticos do país, já que esta se transformou no foco da agressão imperialista, depois da derrota do chavismo nas eleições parlamentares de 2015, a segunda em 24 processos eleitorais ocorridos desde 1998. A vitória da Mesa de Unidade Democrática (MUD), com 56% dos votos válidos (26% de abstenção), permitiu à oposição o domínio de dois terços do parlamento

A pesar de que as eleições se darão no período estabelecido pela CRV para sua convocação, o chavismo chegou a um acordo com um setor da oposição, com base nas negociações realizadas na Noruega, que incluíam a renovação das autoridades do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), incorporando membros da oposição, o aumento do número de deputados (de 167 para 227), incrementando o número de deputados por lista (de 22% para 52%) e estabelecendo a figura de deputados nacionais. Aquelas negociações na Noruega não chegaram a um termo, apesar de terem avançado em vários pontos, porque os Estados Unidos ordenaram que a oposição se retirasse delas, já que não foi incluída a renúncia de Nicolás Maduro à presidência como condição para o acordo, mas elas se tornaram a base do acordo atual.

A ameaça imperialista

No entanto, os quatro principais partidos de oposição, alinhados com os Estados Unidos, decidiram desconhecer a convocatória para o processo eleitoral, e Juan Guaidó, designado pelos EUA em janeiro de 2019 como presidente encarregado, ao desconhecer o governo de Maduro, decidiu prorrogar o mandato dos deputados da Assembleia Nacional eleitos em 2015, apesar de que tal figura, assim como a de presidente encarregado, não existe na CRBV. Portanto, mesmo sem terem ocorrido as eleições, elas já não são reconhecidas pelos EUA, a Comunidade Europeia e os governos do grupo de Lima que fazem coro ao discurso de intervenção imperialista.

Para os opositores ao chavismo, inclusive alguns que se dizem de esquerda, a ameaça imperialista é um tema secundário, sem importância, ainda mais quando, depois do fracasso da tentativa de introduzir, a partir da Colômbia, uma suposta ajuda humanitária, em fevereiro do ano passado, da tentativa de golpe imediatamente após, em abril, e da incursão mercenária em maio deste ano, a oposição se fraturou e pesquisas da própria direita colocam Guaidó com 85% de rejeição entre os próprios opositores. Também é verdade que se utilizou a ameaça imperialista para calar a crítica da população às políticas, ou à falta delas, do governo, mas isso não torna a ameaça imperialista um fantasma.

Existem fatos que não podem ser ignorados. Os partidos opositores e vários de seus membros são abertamente financiados pela National Endowment for Democracy (NED). Dois dos principais partidos, Primeiro Justiça e Vontade Popular (de onde vem Guaidó), foram criados diretamente pelo Instituto Republicano Internacional (IRI), ramo internacional do Partido Republicano e da CIA. O problema não é se o governo de Guaidó não passa de um escritório no leste de Caracas e não tem capacidade operativa, nem apoio dentro do país. Esquece-se, olimpicamente que, nos cinco anos de domínio da oposição na Assembleia Nacional, foram aprovadas leis para privatizar a indústria petroleira, do ferro e do alumínio; para reverter as expropriações de empresas e de terras ocupadas; para derrubar a Lei Orgânica do Trabalho, dos Trabalhadores e Trabalhadoras, assim como a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário; para eliminar a proibição da venda privada das 3 milhões de moradias distribuídas pelo Estado por meio da Missão Moradia. A Assembleia Nacional aprovou, com o voto inclusive dos partidos de direita que participaram nas eleições, a Lei para a Reconstrução da Venezuela, que permite a intervenção direta do FMI e do Departamento de Estado para conseguir a estabilidade política e econômica.

Então, não se trata da ameaça do governo dos Estados Unidos, sob a qual se vive nos últimos 18 anos, nem da existência de um fantoche que acredita ser presidente, o que pode parecer folclórico, nem da ameaça de um golpe da direita, o que já se tornou costume. Trata-se de um governo real, com um plano de governo concreto, aprovado pelos partidos de oposição, com o apoio do imperialismo e da UE, para os quais essas leis possuem nível legal e que não foram aplicadas no país, porque não puderam derrubar o governo de Maduro graças à resistência de um povo que, apesar das difíceis circunstâncias internas e do descontentamento com o governo, defendeu com tudo as conquistas da revolução de 2002, que derrotou o golpe da burguesia e do imperialismo.

O não reconhecimento prévio do processo eleitoral parlamentar significa a ratificação do programa do imperialismo, que não é outro se não o esmagamento do movimento de massas e a sujeição da Venezuela como colônia, tal como foi durante 120 anos de extração do petróleo de seu subsolo. É sob o marco legal do governo de Guaidó que foram ocupadas e vendidas empresas pertencentes ao Estado venezuelano no exterior, que foram bloqueados e entregues ao governo paralelo recursos e ouro depositados em bancos no exterior, e que se entregaram propriedades imobiliárias do Estado venezuelano (embaixadas, consulados e outros), para o funcionamento da oposição no exterior.

Isso não é qualquer coisa. Não se trata de um tema secundário. Enfrentar a intervenção imperialista é a principal bandeira de qualquer revolucionário, independentemente das diferenças com o governo de Maduro, que é criticado justamente por sua inconsequência com a guerra imperialista. Não se trata de apenas ter um discurso anti-imperialista. É necessário um programa e medidas contra o imperialismo, no terreno econômico, político e militar.

Hoje, ressoam novamente os tambores de guerra. É óbvio que para o imperialismo é um problema permitir que ocorra o processo eleitoral parlamentar, porque uma baixa abstenção pode vir a significar o questionamento da política do governo paralelo, em nível de Europa e internamente nos Estados Unidos. Já crescem vozes que questionam Trump nesse sentido. Do jeito que são maleáveis as tendências eleitorais naquele país, um golpe midiático, a partir de uma intervenção militar na Venezuela, não está descartado. Elementos da realidade política e da inteligência militar indicam que, no mês de outubro, pode haver novas agressões. Declarações do presidente da Colômbia, Ivan Duque, apontam nesse sentido, quando ele acusa a Venezuela de comprar armamento iraniano e de ser a capital do narcotráfico. Partindo do presidente de um país com nove bases dos EUA e onde se processa 80% da droga consumida no norte, isso pode soar como uma piada, mas, assim como Bolsonaro no Brasil, ele é um porta-voz do Departamento de Estado, portanto, não se tratam de palavras soltas. Por isso, a luta contra a intervenção imperialista, hoje mais que nunca, está na ordem do dia.

Uma oposição de esquerda

A incapacidade do governo para enfrentar as consequências da guerra econômica, a impunidade da ação terrorista da oposição a serviço dos Estados Unidos, a corrupção crescente no governo e a aplicação de políticas neoliberais, para lidar com a restrição orçamentária produzida pelo bloqueio e para favorecer setores da burguesia interna, procurando conciliar-se com esta para a estabilidade política interna, vêm gerando cada vez mais críticas da base do chavismo.

Trata-se de um processo em ascensão que, nos últimos anos e em várias oportunidades, foi cortado por causa da necessidade de enfrentar agressões da ação imperialista. O ponto mais alto dele foi em novembro de 2018, quando uma mobilização de camponeses – a marcha admirável – percorreu mais de 400 quilômetros para chegar a Caracas e, apesar de todos os obstáculos que lhes foram impostos, fizeram uma assembleia no Palácio de Miraflores, na presença do presidente Maduro, tal como foi exigido. Nessa assembleia, as intervenções dos dirigentes camponeses exigiam mudanças no governo e nas políticas em relação ao campo, as quais vinham favorecendo a burguesia agrária, em detrimento dos pequenos produtores e das terras expropriadas do latifúndio e ocupadas pelos camponeses. Lamentavelmente, um mês depois os EUA proclamaram o governo de Guaidó, e toda a atividade política se concentrou na defesa diante da ameaça de intervenção. 

Mas a convocação das eleições parlamentares serviu para que, de novo, sejam expressos os questionamentos, que vêm da base, contra o governo, fundamentalmente em relação à política econômica interna, mas também em relação a outras decisões políticas, mesmo em meio à guerra econômica e ao bloqueio que os Estados Unidos mantêm contra a Venezuela. Dezenas de organizações de base, sindicatos, organizações camponesas e conselhos comunais vêm levantando a voz de protesto contra a política econômica, de exigência de aprofundamento da revolução e, na medida em que avançou o processo eleitoral, vêm convergindo na necessidade de que, na Assembleia Nacional, existam deputados operários, camponeses e dos bairros, contestando as listas de candidatos controladas pela burocracia do governo, escolhidos a dedo, razão pela qual estão sendo apresentadas listas de candidatos revolucionários alternativos.

Este é um processo significativo por três razões. A primeira é que todos esses agrupamentos levantam, como primeira bandeira, a luta contra a agressão imperialista, a guerra econômica e o bloqueio, exigindo do governo políticas para derrotar os inimigos internos que favorecem a intervenção. Segunda: é uma oposição pela esquerda ao governo de Maduro, o que acontece pela primeira vez, já que, até agora, todos os grupos que tinham questionado o chavismo se localizaram em uma posição centrista, proclamando a palavra de ordem “nem Maduro, nem Guaidó”, colocando este último no mesmo nível do governo de Maduro. E a última, é que não se tratam de organizações políticas à margem da realidade, mas de organizações de base, que surgiram e se construíram em meio ao processo revolucionário, e que jogaram um inquestionável papel na defesa da revolução e contra a agressão imperialista, sendo muitos de seus integrantes militantes de base e de direção do PSUV.

A burocracia do governo e do PSUV vem atacando a conformação dessa vanguarda revolucionária alternativa que vem questionando a política econômica do governo, totalmente neoliberal. Com manobras burocráticas, impediu-se que fossem apresentadas listas alternativas e, inclusive, houve intervenção judicial na luta fracional interna do PPT contra a fração que, justamente, propunha a conformação de chapas com as correntes de base alternativas. Perseguiu-se e intimidaram-se líderes de base, e se está desenvolvendo uma campanha acusando-os de dividir a revolução ameaçada pelo imperialismo.

É evidente que um processo eleitoral ameaçado de não reconhecimento internacional necessita que a população se mobilize massivamente, com uma alta participação eleitoral, para derrotar a campanha imperialista contra ele e que tem o objetivo de manter vivo o governo paralelo. Mas, nessa luta contra o imperialismo, o principal obstáculo é o próprio governo. Há descontentamento porque o governo não faz nada para deter a inflação interna e a especulação da burguesia comercial e produtora de alimentos e artigos de primeira necessidade. Cada vez que, com apoio internacional, sobretudo do Irã, consegue-se romper o bloqueio internacional, muitos produtos vão parar no mercado negro, por causa da corrupção no governo. A restrição salarial imposta no setor público obrigou à migração para o setor privado, ou ao informal, de milhares de trabalhadores, a fim de garantir sua subsistência. Esse descontentamento conspira contra a participação massiva da população na votação.

Os únicos que podem romper a desmoralização e o descontentamento, para conseguir a mobilização da população, são os líderes de base nas comunidades, os operários e os camponeses, como ficou demonstrado cada vez que o imperialismo acreditou que a desastrosa situação econômica interna o favorecia, e encontrou um povo disposto a defender sua revolução, apesar da fome, da miséria e da bronca com o governo. Mas a liderança de base, os reais líderes da revolução, foi excluída do processo de seleção de candidatos, assim como vêm sendo excluídos das decisões econômicas, e cada vez há menos discussão política na base. A burocracia do governo conspira contra a democracia revolucionária construída em anos de luta, e são impostas decisões desde cima, desconhecendo os mecanismos de participação do próprio governo. Não é a pandemia o que impede a democracia de base, é a burocracia. Por isso, neste processo eleitoral, essa liderança se expressa de forma alternativa à uniformidade que o PSUV quer impor. 

E essa é a contradição fundamental da burocracia hoje. Se quiser a participação massiva da população para derrotar o imperialismo, é necessário voltar à democracia de base, às assembleias comunais, de camponeses e de trabalhadores, a candidatos que representem a luta diária pela revolução, como se fez nas eleições da Assembleia Nacional Constituinte, quando se derrotou a guarimba contrarrevolucionária. Hoje é necessário derrotar o imperialismo novamente, mas o obstáculo principal é a burocracia. Somente o povo, com a mais ampla democracia, poderá derrotar o imperialismo e, paralelamente, tirar a corrupção e a burocracia do governo, para nos colocarmos no caminho da construção do socialismo revolucionário. Sem democracia não há revolução, e sem a ação revolucionária do povo não poderemos derrotar a agressão imperialista. A burocracia e a tecnocracia neoliberal que dominaram o governo só favorecem a agressão imperialista, por isso, desde a base, devemos impulsionar o movimento alternativo revolucionário para aprofundar a revolução política e econômica, derrotando a agressão imperialista.

 

NOTAS

1 – No sistema eleitoral venezuelano vigente em 2015, 78% dos deputados (167) eram eleitos nominalmente por circuitos, portanto, obtinha mais deputados quem ganhasse mais circuitos, independentemente da porcentagem de votação.

2 – Os deputados nacionais permitem que uma organização que tenha, nacionalmente, suficientes votos para obter um deputado, o indique, mesmo se não tiver obtido deputados em nenhum dos circuitos nem nas listas dos estados.

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