Na última quarta-feira (2), algumas dezenas de manifestantes se concentraram em frente ao consulado boliviano na Vila Mariana, capital paulista. Eles vieram de diversas cidades brasileiras defender seu direito a voto nas eleições presidenciais de 18 de outubro após Wilfredo Rojo, o embaixador, anunciar que não haverá votação no Brasil em função da pandemia do novo coronavírus.
Wilfredo, empresário de Santa Cruz de La Sierra, tornou-se embaixador da Bolívia no Brasil após ser nomeado ministro do Desenvolvimento Produtivo pelo governo da presidente Jeanine Áñez, que nunca venceu eleições presidenciais.
Em 2019, Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (Mas), venceu as eleições pela quarta vez consecutiva, com 47% dos votos — sendo que, entre os bolivianos vivendo no Brasil, o apoio ao ex-presidente foi maior do que 70%. O resultado, no entanto, foi contestado nas ruas dos centros urbanos bolivianos. Diante de um motim protagonizado pelas forças militares bolivianas, Evo renunciou. O cenário de guerra, porém, permanece.
Foi o próprio embaixador no Brasil que, semanas após consolidação do governo autoproclamado, decretou a “militarização de toda Santa Cruz de La Sierra” num de seus primeiros pronunciamentos. Desde então, os golpistas em torno de Jeanine flerta com o adiamento indefinido de novas eleições e a Central Operária Boliviana (Cob), em defesa da realização do pleito, realizou marchas que movimentaram mais de meio milhão de pessoas no mês de agosto.
Um bilionário irritado faz o mundo se recordar da Bolívia
A articulação política que sustenta o cônsul boliviano recentemente recebeu apoio público de uma estrela global: Elon Musk, terceiro homem mais rico do mundo, dono da única empresa que possui acesso comercial ao espaço sideral.
Desafiado por internautas durante meses sobre seus interesses no lítio boliviano, Musk confessou via twitter: “Vamos dar golpe em quem quisermos! Lidem com isso!”.
A frase fez o bilionário concordar com o indígena socialista aos olhos do mundo: afinal, a luta é pelo lítio, como Evo afirma a cada entrevista desde que obteve asilo político no México.
O palácio de Potosi
O Salar de Uyuni, na província de Potosí, poderia muito bem ser cenário da série Star Wars. Um deserto muito plano e muito branco. Inexplorado, ele abriga 50% do lítio do planeta. O povo potosino, o mais pobre da Bolívia, vive na vizinhança do maior tesouro do século XXI — e sabe disso.
A mais recente constituição boliviana, promulgada por Evo Morales também sob suspeição da extrema-direita e dos empresários de Santa Cruz de la Sierra, garante às comunidades locais o direito de decidir o que fazer com os recursos naturais de seus territórios. A multinacional estadunidense Lithium é uma das que já foram postas para correr pelo povo de Uyuni, que não enxergou contrapartida decente vindo dos ianques.
Mas por que esse metal é tão valioso? O lítio é usado para a produção de baterias. Baterias de lítio têm, pelo menos, o triplo de energia e o dobro de potência das feitas de níquel metal, segundo apuração da Revista Galileu.
Celulares, automóveis elétricos, câmeras fotográficas, computadores, espaçonaves: tudo sustentado em lítio. Se é difícil imaginar um século sem esses aparelhos, também é difícil imaginar um século sem exploração do tesouro de Uyuni.
Sem lítio, muita gente perde a cabeça
Mas no Brasil (que também possui jazidas no Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais) quem tornou público o desespero na busca pelo terceiro elemento da tabela periódica foi a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). É que o carbonato de lítio é a refeição diária de pessoas com transtorno bipolar e depressão aguda e, desde fevereiro, se tornou artigo de colecionador nos postos de saúde.
Conforme Andrew Solomon relata em seu livro “O Demônio do Meio-Dia”, a taxa de suicídio entre os pacientes bipolares que descontinuam o tratamento com lítio aumenta 16 vezes. O relato de quem deixa de se medicar envolvem, basicamente, insônia, episódios maníacos, colapsos devastadores e ideação suicida.
Por ser insubstituível para muitos pacientes, o atual quadro significa, de acordo com os psiquiatras, “aumento do número de casos de suicídios no Brasil, da procura por serviços de emergência, além da necessidade maior de internações em um cenário de escassez de leitos”.
I like it, I’m not gonna crack
O laboratório Biolab Genéricos ostenta, na bula de seu carbonato de lítio, a “possibilidade de completo retorno à vida anterior, ativa e útil”.
A sensação de bem-estar que o remédio traz foi eternizada (e ironizada) por Kurt Cobain, na canção Lithium. De início calmo, a música tem versos em primeira pessoa de alguém que agora encara a vida como um domingo de manhã permanente e até recuperou o desejo sexual. Logo então, o rock bipolar se torna barulhento enquanto Kurt agoniado promete “não quebrar”.
A mesma ABP alerta que o carbonato de lítio não possui patente e é muito barato. “Se produzido pelo governo custaria centavos para a comercialização”, defende em nota.
O Vale do Jequitinhonha contém lítio muito mais que suficiente para os deprimidos e bipolares do país. Faltam ao Brasil indústrias de ponta capazes de refinar o composto químico, o que não se deve esperar do governo Bolsonaro, mais afeito às privatizações e leilões dos recursos naturais do país.
Mas quem enfrenta as doenças que derrotaram Kurt Cobain têm alguém para acolher sua demanda: o imenso movimento indígena e camponês boliviano.
*O texto reflete a opinião do autor e, não necessariamente, a linha editorial do Esquerda Online.
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