Pular para o conteúdo
Colunas

Breve crítica sobre o consenso acerca do novo FUNDEB

Reprodução Sismuc

Tubarões da Educação

A coluna publica textos sobre a atuação da classe dominante na educação, tendo por referência os estudos marxistas e gramscianos produzidos no Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação (LIEPE), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenação do professor Rodrigo Lamosa.

Por: Marco Lamarão*

O debate em torno da aprovação do “novo FUNDEB” (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) conseguiu aliar campos historicamente adversários em favor do Projeto de Emenda Constitucional 15/2015. Após aprovação na Câmara dos Deputados, esta proposta dirigiu-se ao Senado. Lá tramitou sob insígnia de PEC 26/2020, tendo sido aprovada também, sem alterações, tornando-se a Emenda Constitucional 108/2020. Esta proposta, desde o seu início, logrou feito raro, ao unificar o voto dos socialistas – como os dos PSOL – e o dos Democratas: partido que, ante aos muitos filhos que a ARENA produziu, talvez seja o seu mais longevo e menos acanhado herdeiro – de matiz ultraliberal. As aspas na expressão “novo FUNDEB” não são por acaso. Entre o sarcasmo e a crítica, elas expressam certo ceticismo frente ao entusiasmo de uma pretensa vitória dos setores progressistas ao aprovarem a lei sem emendas pela Câmara e Senado. E este ceticismo se estende, também, para este impressionante “consenso” em torno do FUNDEB.

Segundo o filósofo Antônio Gramsci a construção do consenso é parte importante do papel do Estado. Na sua acepção, vale lembrar rapidamente, o Estado ganha um sentido mais amplo, lato, integral. Para além do Estado stricto sensu, abarca-se como parte importante da análise do Estado, dentre outros aspectos, a sociedade civil e seus aparelhos privados de hegemonia, detentores de importantes mecanismos de produção de perspectivas de mundo que buscam o consenso. O consenso aqui é entendido como a generalização de uma dada visão de mundo de determinada fração de classe ou classe social às distintas frações de classes ou classes sociais. Ora, se numa sociedade marcada pelo conflito de classes e interesses antagônicos, como o é a sociedade capitalista, resta-nos indagar duas questões: de onde surgiu o consenso em torno da aprovação do novo FUNDEB? Outro: a quem, efetivamente, interessa este consenso, indo além das concordâncias ideológicas e pensando em termos de materialidade das políticas públicas?

Neste sentido, cabe-nos um importante exercício anterior a análise da proposta que ora se debate, e este exercício reside na necessidade de retrocedermos historicamente ao processo de constituição deste “novo” fundo revisitando o debate (e as críticas) que foram formuladas por ocasião da constituição do FUNDEF.

O FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) fora criado pelo então Ministro da Educação do Governo FHC, Paulo Renato de Souza, e estava inserido não apenas no conjunto de modificações realizadas na educação (LDB, Reforma do Ensino Técnico, Reforma Universitária). Esta contrarreforma educacional proposta pelo então governo se alinhava a um quadro maior de reconfiguração do Aparelho do Estado Brasileiro, com profunda influência nas ideias sociais-liberais em voga pelo establishment capitalista e suas agências locais e internacionais de produção do consenso. Mediante este enquadramento, não é surpresa afirmar que o FUNDEF significou, efetivamente, um contingenciamento dos gastos da União com a educação fundamental pública.

A cesta de impostos que formava este fundo era composta pela receita de 15% dos
seguintes impostos: Fundo de Participação dos Estados (FPE) ou Fundo de
Participação dos Municípios (FPM); Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços – ICMS, Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional às exportações
– IPI exportação e a desoneração de Exportações (LC 87/1996) também conhecida
como Lei Kandir.

A distribuição desta receita dava-se, entre Estado e Municípios, através de um
valor médio por aluno obtido no âmbito de cada estado, multiplicado pelo número de
matrículas que cada ente federado apresenta no Ensino Fundamental Regular. Este valor
médio é resultado da divisão entre a Previsão Total de Recursos Arrecadados pelo fundo
no estado e o número Total de Matrículas no Ensino Fundamental
regular nas redes públicas (estados e municípios) do ano anterior mais a Previsão
de Novas Matrículas

De acordo com o pesquisador Nicholas Davies o total de recursos economizados com o FUNDEF foi maior do que o total de recursos efetivamente investidos. Além do claro contingenciamento de recursos promovido pelo FUNDEF (o que significa que não houve, com a adoção do fundos, recursos expressivamente novos para a educação), esta era uma política focalizada que atendia exclusivamente o ensino fundamental ofertado pelos municípios. A redistribuição dos recursos ocorria, tão somente, no âmbito estadual onde a tendência era de os municípios de menor população em idade escolar perderem recursos para os municípios de maior população em idade escolar. Um somatório de resultado zero onde o bônus de determinados municípios equivalia ao ônus de outros municípios na esfera estadual. Com isso, uma intensa municipalização do ensino fundamental ocorrera, diminuindo a atenção dos estados com este nível de ensino. Os estados, por sua vez e desde então, são entes da federação que perderão recursos para os seus municípios. Ainda, a adoção de um valor mínimo de aluno por ano não se respaldava (e ainda nem se respalda no CAQi) em qualquer critério técnico que busque mensurar e planejar as necessidades do aluno da rede pública, servindo justo para o seu revés: ser um poderoso instrumento de contingenciamento de recursos para a rede pública municipal e da fixação do investimento da união na educação básica dos estados em patamares expressivamente insuficientes.

Em 2007, o FUNDEB será proposto e transformado na Lei 11494/2007 e ali, incorporará parcela das críticas elaboradas ao FUNDEF. Neste sentido, o FUNDEB ampliou a cesta de impostos contabilizadas em sua formação, bem como o percentual dos impostos que seriam destinados ao fundo, ampliava o seu atendimento a toda a educação básica, incorporava outros profissionais ao ampliar o termo profissionais do magistério em profissionais da educação. Todavia, aquilo que sustentava a perversidade do fundo anterior permaneceria inalterado: a focalização de recursos na educação para um nível específico (afinal, os entes federados continuam sem financiamento caso desejem ofertar educação no nível que não é o seu prioritário) e a pífia participação da União na constituição do fundo, agora, estipulada em 10%. O ente com maior arrecadação do regime federativo brasileiro se comprometia com uma complementação de APENAS 10% da constituição do fundo, devendo os restante 90% do fundo ser financiado pelos recursos dos estados e municípios.

Frente a esta percepção, não é o mais correto afirmar que a dissolução do FUNDEB significaria um caos financeiro. Pois apenas atingiria o percentual que fora coberto pela União, ou seja 10% do valor total do fundo. Essa ideia, inclusive, esbarra em outro problema: dar base, por tabela, a ideia de que os recursos destinados à educação seriam suficientes e que o real (ou grande, ou maior, variam os adjetivos e advérbios, permanece a ideia central) problema do financiamento da educação pública brasileira seria o problema de gestão, agravado pelo mal endêmico da corrupção. Não cabe aqui negar o papel que tem a corrupção na reprodução das relações de poder submetido aos interesses econômicos, em especial, numa economia capitalista e dependente como a brasileira. Mas olhar para o financiamento da educação apenas por este aspecto mais aparente é analisar de maneira muito enviesada o debate em questão.

Muitas críticas podem ser feitas ao FUNDEB, o que não seria possível neste espaço, mas dois elementos merecem destaque. O primeiro elemento é o que destaca a precarização do trabalho docente ao longo da vigência destes fundos, na qual a desvalorização salarial é um fator central, mas não único. E esta perda é expressiva. No município de Itaboraí- RJ, por exemplo, o professor da rede municipal em 2019 tinha um salário com poder aquisitivo reduzido quase pela metade em comparação com o seu salário em 1997. O rebaixamento salarial do profissional da educação do setor público tem claro impacto no mercado de trabalho docente como um todo, inclusive na educação particular. A média salarial do professor da rede privada é menor do que a média salarial do professor da rede pública (que já é vergonhosamente baixa). O Piso Nacional Salarial dos Professores, além de insuficiente, não é respeitado em inúmeros estados da federação.

Todavia, a precarização do trabalho docente, materialmente expressa em seus salários, não se encerra por aí, infelizmente. A expropriação do saber docente, o controle sobre o saber e outras inúmeras iniciativas calcadas no empresariamento da educação recaem sobre a escola pública, onde profissionais da educação, estudantes e a própria escola tornam-se propagadores de uma sociabilidade afinada com as necessidades do capitalismo. Ou como, disse Lúcia Neves, uma “nova pedagogia da hegemonia”. Aqui não apenas se cria o problema como também se vende a solução. A intensificação do trabalho docente tem como contrapartida a oferta de serviços, produtos e procedimentos que aprofundam a expropriação de parcela do seu saber sob o argumento de “otimizar o trabalho”.

Outro ponto importante é o crescimento da participação da iniciativa privada na educação fundamental e básica ao longo da vigência do fundo. Para além de muitos outros fatores como a política gerencialista, de gestão de fluxo escolar, etc., a adoção do fundo não foi acompanhada por um reforço ou ampliação da rede pública de ensino, relativamente ao total de matrículas. Segundo Davies o número de matrículas na rede estadual decaiu, entre 2007 e 2019, cerca de 30, 2%; já o número de matrículas na rede municipal também percebeu uma retração de 6,1 %; por outro lado, o número de matrículas da rede privada aumentou em torno de 24,3%. (Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Vale-quanto-o-novo-Fundeb-/54/48397>. Acesso em: 27 ago. 2020).

Em torno do sangramento da educação pública básica no Brasil nadam os Tubarões da Educação. O processo de monopolização capitalista e financerização que ocorre na educação superior de forma mais intensa, vê na educação básica uma presa atrativa a sua interminável gula por lucratividade. Novamente é necessário recorrer a tão cara ideia de totalidade, presente no materialismo dialético. Nestes termos, a proposta do “novo FUNDEB” não pode ser posta isolada das demais contrarreformas que estão em curso na educação e na sociedade. Ela não pode e não deve ser desatrelada da (contra)Reforma do Novo Ensino Médio e a Nova BNCC que busca dar uma visão mais pragmática e menos humanista à educação, bem aos modelos de educação utilitarista da Teoria do Capital Humano; não pode ser desatrelada do FUTURE-SE que, grosso modo, defende a submissão das Universidades e Institutos Federais aos interesses mercadológicos; não pode ser destrelada da Lei do Teto dos Gastos que limita os gastos das políticas sociais no Brasil ao tempo que não limita os gastos destinados ao pagamento da dívida pública; não pode ser desatrelada da Contrarreforma administrativa, da contrarreforma das leis trabalhistas; da lei das terceirizações e tantas outras medidas que significaram a transferência do ônus da crise econômica para o colo da classe trabalhadora, sustentando o modus operandis da burguesia local na superexploração da classe trabalhadora. Neste termos, não nos surpreende que a fundação Lehman, o Todos Pela Educação, A Fundação Itaú e outras organizações representativas dos interesses privatistas e empresariais estejam todas elas alinhadas e favoráveis a produção do consenso em torno da aprovação do novo FUNDEB.

A manutenção dos rasos padrões educacionais brasileiros, institucionalizados pela escola pública de parcos rendimentos serve como uma forma de reserva de mercado para os tubarões da educação que podem ofertar uma gama de escolas destinadas, cada qual, ao seu quinhão da sociedade, desde a escola das classes dominantes às escolas das classes subalternas. Estas últimas conviverão, também, com péssimos salários, com assédios moral, controle e expropriação sobre o saber docente, desrespeito aos direitos trabalhistas mais elementares, etc. A educação básica pautada por uma escola pública de baixa qualidade (cujo cerne central reside nas políticas asfixiantes de financiamento desta mesma educação) se torna em apetitoso cardume para os tubarões da educação fazerem o que mais sabem: produzir a mercadoria-educação de forma comodificada, a baixíssimos custos.

Há um elemento conjuntural que contribui para o alinhamento entre socialistas e “liberais” em determinadas pautas. E este elemento conjuntural é, obviamente, a ascensão de um governo protofascista como o de Jair Bolsonaro. Daí que a sensação de emergência que nos toma e aligeira-nos à alianças- senão precipitadas, ao menos- descuidadas. A repulsa ao conhecimento representada por este governo certamente preocupa-nos a todos. Mas este é um elemento conjuntural que não pode ser desassociado da (auto)crítica permanente, justamente para impedir que esta urgência, esta conjuntura, se reverta em prejuízos permanentes à escola pública, tão cara e necessária à classe trabalhadora no Brasil. É necessário entender o FUNDEB como política estruturante da dualidade escolar no Brasil e mais do que tão somente defendê-lo é necessário ir além.

Em outra oportunidade faremos uma análise mais pormenorizada do “novo FUNDEB”. Todavia, cabe-nos ressaltar que a presente proposta votada não torna, tão apenas, permanente o FUNDEB como também os recursos da educação associados ao fundo do pré-sal. Para além do mérito, analisado em próxima oportunidade, aqui temos um problema da forma: custos fixos ou investimentos futuros serão custeados por um fundo extremamente volátil, dependente da variação internacional do preço desta commodities- o petróleo. Portanto, o fundo do pré-sal não seria fonte nem suficiente, nem confiável para o custeamento da manutenção e desenvolvimento do ensino. No entanto, uma série de outras propostas seria factível a fim de se aumentar a quantidade de recursos destinados à educação. Uma primeira dela seria passar a vincular as receitas dos entes federados oriundas de contribuição: atualmente só contam como recursos vinculados aqueles oriundos dos impostos. Uma segunda proposta seria a realização de uma auditoria da Dívida Pública, auditoria esta prevista na CF-1988: no ano de 2019 a união executou 38,27% do seu orçamento no gasto dos juros e amortizações da dívida pública e apenas 3,42% (11 vezes menos, portanto!) com a educação. Uma terceira proposta é o combate à sonegação dos impostos no Brasil, praticadas, especialmente, pelo grande capital e grandes fortunas. Uma quarta proposta seria a suspensão ou revisão das isenções fiscais praticadas em favor das grandes empresas. Uma quinta proposta seria uma radical reforma tributária que passasse a taxar as grandes fortunas e as operações financeiras no Brasil. O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo pagas, majoritariamente, pela renda oriunda do trabalho e não pela renda oriunda do capital.

Fica claro, portanto, que os setores progressistas não se podem bastar- apenas- na defesa de um “novo FUNDEB” necessitando ir além de um errôneo consenso, construído em favor dos interesses privatistas e empresariais atentos a educação-mercadoria commodities. Claro está, que a luta pela escola pública, mais uma vez, não se encerra no entorno dos seus muros devendo ir além do debate meramente educacional e atacando elementos centrais das relações sociais constituídas pelo capitalismo dependente brasileiro.

*Marco Lamarão é professor da Licenciatura de História do Instituto Federal Fluminense- Campus Macaé. Pesquisador associado do LIEPE- UFRRJ. Coordenador do Observatório da Educação Fluminense

Marcado como:
educação / fundeb