Os ricos não são necessários. Os bilionários não são imbatíveis. As grandes fortunas privadas são uma anomalia, um escárnio, uma monstruosidade. Ninguém precisa do 1% milionário. O grau de concentração da riqueza no mundo é uma aberração histórica.
Os bilionários não estimulam a economia: parasitam a exploração, alimentam o rentismo, pervertem o consumo, impulsionam a desigualdade. Os bilionários não incentivam a ciência e a cultura: mercantilizam o conhecimento, comercializam a arte, manipulam a pesquisa. Os bilionários não defendem a civilização: ameaçam a natureza, tutelam a educação, e corrompem o poder.
Os milionários são poderosos. Mas a luta popular é muito mais poderosa. Os ricos não merecem manter o controle intocável, blindado, e inviolável da riqueza. No Brasil, em plena pandemia, enquanto o PIB recuava no segundo trimestre quase 10%, 42 bilionários tiveram um crescimento no patrimônio de US$ 123,1 bilhões de março para US$ 157,1 bilhões em julho, segundo pesquisa da Oxfam: ganharam US$ 34 bilhões1.
Enquanto se estima que, no mundo, 500 milhões de pessoas caíram em condição pobreza extrema, só nos EUA o patrimônio dos bilionários cresceu de US$3 trilhões para 3,6 trilhões. Trata-se de renda gerada pela propriedade de capital. O argumento de que os ricos cumprem o seu papel com doações filantrópicas, repetida à exaustão para legitimar a existência de milionários é pura demagogia. A escala conta. Sem o SUS financiado pelos impostos centenas de milhares entre os milhões contaminados pelo vírus teriam morrido.
As médicas, enfermeiros, e profissionais da saúde na primeira linha da luta para salvar vidas são necessários. Os ricos, não. Os pesquisadores, estudiosos, e cientistas que se concentram na produção de vacinas são necessários. Os ricos, não. A ideia de que só a miragem do enriquecimento rápido move a sociedade é um veneno ideológico. A ganância é uma força poderosa, mas há forças muito mais poderosas que a avidez pelo dinheiro.
Mas ser socialista não é romantizar a miséria, é odiar a pobreza. O capitalismo produz desperdício. Multiplica as forças destrutivas. Ser socialista é apostar que é possível uma sociedade de produção e repartição da abundância.
A penúria e a ignorância foram os principais fatores da degenerada burocratização dos Estados onde a propriedade privada do capital foi expropriada e um dos fundamentos objetivos do estalinismo. Principais, mas não únicos. Não há nunca somente a operação de fatores objetivos. Isso é fatalismo, mascarado de marxismo. Há sempre os fatores subjetivos, até o mais radical de todos, o papel dos indivíduos na História. Além dos acasos, do aleatório, das contingências. Ensina a sabedoria popular que “em casa em que há pouco pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Mas a causa socialista permanece como o projeto de conquista da fartura, da abundância, da educação, portanto, da emancipação do trabalho alienado. Seu maior estandarte sempre foi a libertação da humanidade da pobreza material e cultural.
Os marxistas nunca esconderam a ambição de seu programa. Ele se eleva muito acima da satisfação das necessidades biológicas. As necessidades se transformaram e se ampliaram ao longo da história. A vida vegetal é que depende somente de alimentação e abrigo. A vida animal, mais complexa, exige a reprodução sexualizada, portanto, em muitas espécies, organização em grupos e disputa de parceiros.
O mito do Robinson Crusoé, a idealização de uma sociedade em que todos estão em luta uns contra os outros em um ambiente natural hostil, é uma fantasia ideológica. A vida humana é uma vida social. As necessidades humanas definem-se como uma construção social, cultural e histórica. Não importa se as necessidades derivam do estômago ou da fantasia, todas as necessidades humanas modificam-se em necessidades culturalmente transformadas.
Um prato de comida elaborado, cozinhado com temperos que definem um sabor, é um produto da cultura material. O socialismo fundamentou-se na defesa de que um estágio de abundância relativa seria possível. A penúria e escassez material e cultural do passado humano não são um destino. As necessidades humanas mais intensamente sentidas em cada época são limitadas, restringidas, balizadas. Podem ser calculadas. Elas mudam e se ampliam.
Marx destacou que, sob o capitalismo, as necessidades foram fetichizadas pela mercantilização. São os homens que servem a produção, e não a produção que serve os homens. A produção não tem por objetivo a satisfação das necessidades humanas, mas a busca da valorização do capital.
Uma relação fetichizada é uma relação alienada. Há um feitiço na mercadoria. Os produtos adquirem uma qualidade mágica. A publicidade inventa necessidades artificiais, enquanto a sociedade é incapaz de garantir a satisfação das necessidades fundamentais.
Os liberais defenderam a ideia de que as necessidades seriam ilimitadas e, portanto, impossíveis de serem satisfeitas. Sendo as necessidades indefinidas, não poderiam ser aferidas. Sendo indetermináveis, a humanidade estaria condenada à regulação da escassez, portanto, à desigualdade e ao conflito de classes. Os marxistas contra-argumentaram admitindo que as necessidades mais sentidas foram ao longo do tempo variáveis; porém, porque histórica e culturalmente definidas em cada tempo, relativamente estáveis, poderiam ser calculadas.
A premissa marxista, portanto, é que a ampliação das necessidades é parte de um processo de crescimento material e cultural em que a humanidade se reinventa a si própria por meio do trabalho. O mais importante é que o trabalho passa a ser também uma necessidade. A industrialização dos últimos 200 anos teria permitido a redução abrupta do tempo socialmente necessário para a produção dos produtos, abrindo a possibilidade de superação gradual da divisão milenar entre o trabalho manual e o trabalho intelectual.
Os ricos precisam ser derrotados. Ser socialista é apostar que é possível.
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