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Os milionários são inúteis

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Os ricos não são necessários. Os bilionários não são imbatíveis. As grandes fortunas privadas são uma anomalia, um escárnio, uma monstruosidade. Ninguém precisa do 1% milionário. O grau de concentração da riqueza no mundo é uma aberração histórica.

Os bilionários não estimulam a economia: parasitam a exploração, alimentam o rentismo, pervertem o consumo, impulsionam a desigualdade. Os bilionários não incentivam a ciência e a cultura: mercantilizam o conhecimento, comercializam a arte, manipulam a pesquisa. Os bilionários não defendem a civilização: ameaçam a natureza, tutelam a educação, e corrompem o poder.

Os milionários são poderosos. Mas a luta popular é muito mais poderosa. Os ricos não merecem manter o controle intocável, blindado, e inviolável da riqueza. No Brasil, em plena pandemia, enquanto o PIB recuava no segundo trimestre quase 10%, 42 bilionários tiveram um crescimento no patrimônio de US$ 123,1 bilhões de março para US$ 157,1 bilhões em julho, segundo pesquisa da Oxfam: ganharam US$ 34 bilhões1.

Enquanto se estima que, no mundo, 500 milhões de pessoas caíram em condição pobreza extrema, só nos EUA o patrimônio dos bilionários cresceu de US$3 trilhões para 3,6 trilhões. Trata-se de renda gerada pela propriedade de capital. O argumento de que os ricos cumprem o seu papel com doações filantrópicas, repetida à exaustão para legitimar a existência de milionários é pura demagogia. A escala conta. Sem o SUS financiado pelos impostos centenas de milhares entre os milhões contaminados pelo vírus teriam morrido.

As médicas, enfermeiros, e profissionais da saúde na primeira linha da luta para salvar vidas são necessários. Os ricos, não. Os pesquisadores, estudiosos, e cientistas que se concentram na produção de vacinas são necessários. Os ricos, não. A ideia de que só a miragem do enriquecimento rápido move a sociedade é um veneno ideológico. A ganância é uma força poderosa, mas há forças muito mais poderosas que a avidez pelo dinheiro.

Mas ser socialista não é romantizar a miséria, é odiar a pobreza. O capitalismo produz desperdício. Multiplica as forças destrutivas. Ser socialista é apostar que é possível uma sociedade de produção e repartição da abundância.

A penúria e a ignorância foram os principais fatores da degenerada burocratização dos Estados onde a propriedade privada do capital foi expropriada e um dos fundamentos objetivos do estalinismo. Principais, mas não únicos. Não há nunca somente a operação de fatores objetivos. Isso é fatalismo, mascarado de marxismo. Há sempre os fatores subjetivos, até o mais radical de todos, o papel dos indivíduos na História. Além dos acasos, do aleatório, das contingências. Ensina a sabedoria popular que “em casa em que há pouco pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Mas a causa socialista permanece como o projeto de conquista da fartura, da abundância, da educação, portanto, da emancipação do trabalho alienado. Seu maior estandarte sempre foi a libertação da humanidade da pobreza material e cultural.

Os marxistas nunca esconderam a ambição de seu programa. Ele se eleva muito acima da satisfação das necessidades biológicas. As necessidades se transformaram e se ampliaram ao longo da história. A vida vegetal é que depende somente de alimentação e abrigo. A vida animal, mais complexa, exige a reprodução sexualizada, portanto, em muitas espécies, organização em grupos e disputa de parceiros.

O mito do Robinson Crusoé, a idealização de uma sociedade em que todos estão em luta uns contra os outros em um ambiente natural hostil, é uma fantasia ideológica. A vida humana é uma vida social. As necessidades humanas definem-se como uma construção social, cultural e histórica. Não importa se as necessidades derivam do estômago ou da fantasia, todas as necessidades humanas modificam-se em necessidades culturalmente transformadas.

Um prato de comida elaborado, cozinhado com temperos que definem um sabor, é um produto da cultura material. O socialismo fundamentou-se na defesa de que um estágio de abundância relativa seria possível. A penúria e escassez material e cultural do passado humano não são um destino. As necessidades humanas mais intensamente sentidas em cada época são limitadas, restringidas, balizadas. Podem ser calculadas. Elas mudam e se ampliam.

Marx destacou que, sob o capitalismo, as necessidades foram fetichizadas pela mercantilização. São os homens que servem a produção, e não a produção que serve os homens. A produção não tem por objetivo a satisfação das necessidades humanas, mas a busca da valorização do capital.

Uma relação fetichizada é uma relação alienada. Há um feitiço na mercadoria. Os produtos adquirem uma qualidade mágica. A publicidade inventa necessidades artificiais, enquanto a sociedade é incapaz de garantir a satisfação das necessidades fundamentais.

Os liberais defenderam a ideia de que as necessidades seriam ilimitadas e, portanto, impossíveis de serem satisfeitas. Sendo as necessidades indefinidas, não poderiam ser aferidas. Sendo indetermináveis, a humanidade estaria condenada à regulação da escassez, portanto, à desigualdade e ao conflito de classes. Os marxistas contra-argumentaram admitindo que as necessidades mais sentidas foram ao longo do tempo variáveis; porém, porque histórica e culturalmente definidas em cada tempo, relativamente estáveis, poderiam ser calculadas.

A premissa marxista, portanto, é que a ampliação das necessidades é parte de um processo de crescimento material e cultural em que a humanidade se reinventa a si própria por meio do trabalho. O mais importante é que o trabalho passa a ser também uma necessidade. A industrialização dos últimos 200 anos teria permitido a redução abrupta do tempo socialmente necessário para a produção dos produtos, abrindo a possibilidade de superação gradual da divisão milenar entre o trabalho manual e o trabalho intelectual.

Os ricos precisam ser derrotados. Ser socialista é apostar que é possível.