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Colunas

Série ‘A pedagogia dos banqueiros’ – Parte 1

Este é o primeiro artigo de uma série de trabalhos que serão publicados ao longo das próximas semanas que objetivam compreender a atuação de organizações da classe dominante diretamente relacionadas aos interesses da fração financeira do capital

Reprodução

Tubarões da Educação

A coluna publica textos sobre a atuação da classe dominante na educação, tendo por referência os estudos marxistas e gramscianos produzidos no Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação (LIEPE), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenação do professor Rodrigo Lamosa.

A pedagogia dos banqueiros na América Latina e Caribe em tempos de pandemia

Por: Renata Spadetti Tuão

O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi criado no ano de 1959, pelos Estados Unidos da América (EUA), com o aparente objetivo de se materializar como uma instituição organizadora do desenvolvimento da América Latina e Caribe. Como determinantes históricos para a criação do BID, destacamos a preocupação com o avanço do comunismo na região, com a contenção da insatisfação da população latino-americana deflagrada pela intensa desigualdade e os desencadeamentos da crise capitalista. Alguns destes elementos retornam no período da pandemia e nesta conjuntura de ascensão liberal ultraconservadora. Qual tem sido o papel do BID nesta conjuntura? Qual tem sido a posição da organização frente às políticas educacionais no período? Como o banco tem se posicionado na região? Estas foram as questões que mobilizaram este artigo.

O BID, através da criação do Fundo Especial Interamericano para o Desenvolvimento Social, foi um dos financiadores do programa Aliança para o Progresso, criado pelos EUA e conduzido pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). A Aliança para o Progresso configurou-se como um projeto de assistência ao desenvolvimento do continente latino-americano que teve sua atuação voltada para a suplementação do capital dos países em processo de industrialização, o combate ao comunismo na região e a organização sistemática de assistência técnica e financeira ao empresariado.

A história do BID encontra-se ligada ao controle econômico, cultural e político dos países de capitalismo dependente, por meio da exigência de condicionalidades travestidas pelo discurso das assessorias técnicas, configurando-se dessa forma, como um formulador e difusor da pedagogia do capital. O BID, a cada empréstimo realizado, aprofunda a sua ingerência nas políticas macroeconômicas e setoriais dos países devedores, concentrando suas atividades em diferentes setores –  energia, transporte, comunicação, turismo, indústria, mineração, agricultura, pesca, financiamento de exportações, saneamento, ciência e tecnologia, desenvolvimento urbano, educação, saúde, meio ambiente e modernização do Estado – de modo a colaborar com a manutenção da hegemonia estadunidense sob o continente latino-americano.

Desde o início da pandemia gerada pelo COVID-19, o BID vem difundindo documentos com orientações destinadas aos países da América Latina, onde demonstra especial preocupação com os aspectos econômicos – empréstimos em andamento, economia de cada país, auxílio ao setor privado – e políticos – políticas fiscais, saúde, educação e organização do mundo do trabalho. Apresentam boletins atualizados, diariamente, sobre a situação dos países da América Latina e Caribe em relação à pandemia, assim como divulgam as atividades empresariais realizadas em cada país nos setores de saúde, educação e tecnologia.

O BID trabalha com a ideia de crise econômica gerada pela pandemia do COVID-19 que impôs aos países do mundo a decisão entre a preservação da vida humana e da economia liberal. Sabemos, no entanto, que desde 2018 já estava em curso uma nova oscilação na economia que já havia demonstrado, de forma antecipada, seus sinais na crise de 2008. De forma mais aparente, essa nova onda teve como elementos de erupção a disputa geopolítica entre EUA e China, o avanço da frente ultraconservadora liberal pelo mundo e a corrida armamentista entre EUA, China e Rússia. Esses elementos foram determinados, sobretudo pela disputa entre as grandes potências capitalistas pela reconfiguração das relações de produção. Poderíamos considerar que a crise, que já encontrava-se em curso, sofreu um aprofundamento qualitativo com a emergência da pandemia gerada pelo COVID-19, no entanto, ressaltamos que o vírus é um produto das relações mercantilizadas, produzidas pelo sistema capitalista e, portanto, as consequências geradas pela pandemia, apenas são dessa forma materializadas, por estarem aprofundadas nas questões metabólicas de reprodução do capital, no atual sistema. Diante disso, fica claro que a política de isolamento social, para o grande capital, possui tempo determinado para o seu fim.

Embora o BID reconheça tal política como necessária para a preservação da vida, as questões econômicas são colocadas em primeiro plano, ratificando que as relações de produção capitalistas impossibilitam a opção pela vida como estratégia de enfrentamento à propagação do vírus por entre a população. Nesse contexto, o BID escreveu o documento Del confinamiento a la reapertura: Consideraciones estratégicas para el reinicio de las actividades en América Latina y el Caribe en el marco de la Covid-19 com orientações para o afrouxamento do isolamento social destinado aos países da América Latina. Como orientação inicial, o BID destaca que essa decisão somente se fará possível se os governos de cada país conseguirem compreender o modus operandi do vírus e, para que esse movimento aconteça, o BID recomenda que a população seja exposta ao COVID-19 com a progressão das medidas de abertura social.

Essa proposta repugnante reforça o avanço da primazia da mercantilização na reprodução da vida e evidencia a posição periférica conferida aos países de capitalismo dependente. Na tentativa de justificar o injustificável, o BID informa que o número de idosos, em comparação com os países de capitalismo central é relativamente menor, o que escamoteia possíveis políticas de genocídio biológico da população dos países periféricos, sobretudo da população idosa que não é considerada dentro da cadeia produtiva capitalista.  O BID acrescenta ainda, como dificuldades para a continuidade do isolamento social, os problemas fiscais dos países latino-americanos e as precárias condições sociais e de subsistência a que estão submetidas a maioria da população do continente, comparando com os países de capitalismo central.

O BID explicita esses elementos escamoteando as contradições presentes na divisão internacional do trabalho e, sobretudo incutindo a responsabilização no comportamento do indivíduo frente ao confinamento. Nesse contexto, o BID orienta que a flexibilização das políticas de isolamento social seja direcionada para gestão de três aspectos necessários para o desenvolvimento da economia: os transportes públicos, as escolas e o trabalho. Para fins desse artigo, nos deteremos a analisar as orientações do BID para o campo educacional tanto no que tange as propostas voltadas para o período do isolamento social quanto aquelas que se voltam para a sua flexibilização.

Uma das preocupações centrais expressas no documento produzido pelo BID quanto à reabertura das escolas volta-se para o retorno dos pais/responsáveis ao trabalho. O BID reconhece as crianças como possíveis agentes propagadoras do vírus, sobretudo pela dificuldade de manterem distanciamento umas das outras e por conviverem com idosos em suas casas. No entanto, o BID orienta que os países da América Latina precisam, apenas, gerenciar os aspectos sanitários, os critérios de agrupamento dos estudantes e docentes e as estratégias pedagógicas de apoio à aprendizagem para que as escolas possam ser abertas mantendo um nível mínimo de crescimento na curva de mortos pelo COVID-19.

No que diz respeito ao aspecto sanitário, o BID recomenda que seja realizado um mapeamento das condições estruturais das instituições educativas no que tange à ventilação das salas de aula e à oferta de água potável;  acondicionamento de um número mínimo de estudantes por sala de aula; aumento do número de banheiros; mudanças na preparação e entrega da alimentação escolar; formação sobre os protocolos de limpeza  para docentes e funcionários; apoio psicológico e social às famílias; uso de máscaras, luvas e termômetros; oferta de materiais de limpeza; monitoramento das condições de saúde dos estudantes; e orientação aos estudantes para que se evite transportes públicos com aglomeração no acesso à escola. Já os critérios para a assistência e o reagrupamento dos estudantes devem ser orientados segundo o nível educativo, a zona geográfica e a densidade estudantil. Por nível educativo, o documento recomenda que o retorno se concentre nos alunos da Educação Infantil e da Alfabetização, uma vez que representam o maior quantitativo de estudantes e concentram as crianças com menor autonomia para as aulas na modalidade EAD e para o autocuidado, dificultando o retorno dos pais ao trabalho. Em relação à zona geográfica, recomenda-se começar pelas zonas rurais, pelos locais com maiores dificuldades de provimento da modalidade EAD – sem internet e/ou sem eletricidade. Quanto a densidade dos estudantes, o BID recomenda que se coordene a EAD com jornadas escolares presenciais mais curtas, organizando os estudantes de acordo com ano de escolaridade e dias de semana específicos, de modo que seja garantido algum tipo de distanciamento social.

Quanto aos critérios pedagógicos, o documento produzido pelo BID propõe que os países realizem diagnósticos acadêmicos com o objetivo de mensurar as lacunas de aprendizagem de cada estudante para que sejam adotadas medidas de aceleração de aprendizagem, através do Ensino Online, priorizando as áreas de Linguagem, Matemática e Ciências, assim como organizando programas de tutoria a partir do incentivo do voluntariado entre professores em formação inicial e aposentados. O BID chama atenção para o aumento do número de alunos nos estabelecimentos públicos, devido a dificuldade das famílias em continuar custeando a educação privada e para a necessidade de formação dos professores e “voluntários” a partir de programas online. O BID reforça que a EAD é uma modalidade que deverá se manter no período posterior à pandemia, indicando que os sistemas de ensino devem mesclar as aulas presenciais com a modalidade EAD. Para esse formato, o BID utiliza a nomenclatura de Ensino Híbrido, considerado uma alavanca para a reconversão da educação na “era digital”. Segundo o BID, torna-se necessário oferecer ferramentas que fortaleçam esse processo, uma vez que implicará em mudanças profundas no sistema educacional latino-americano.

De maneira sistemática, o BID organizou uma série de cursos, oficinas e webconferências para assegurar o treinamento dos professores, gestores e “voluntários” acerca da EAD no período da pandemia. Através do Instituto Interamericano de Desenvolvimento Econômico e social (INDES), que se apresenta como uma organização destinada à produção e divulgação de conhecimento sobre desenvolvimento social e econômico na América Latina e no Caribe, o BID vem promovendo, desde o ano de 1995, cursos em distintas áreas que coadunam com os espaços de atuação do BID no interior dos países latino-americanos.  Desde 2004, o INDES passou a oferecer o Programa de Capacitação para a Educação Online, com o objetivo de oferecer formação pedagógica e tecnológica para o desenvolvimento da Educação Online nas instituições públicas e privadas. Os cursos e oficinas são destinados a professores, intelectuais formadores, tutores de cursos online, desenvolvedores e gerenciadores de conteúdo para ambientes virtuais. Todos os cursos são realizados na plataforma Moodle do INDES e utilizam ferramentas tecnológicas síncronas e assíncronas. Para o período da pandemia gerada pelo COVID19, o INDES organizou o programa Moving online que consiste na oferta de recursos, experiências, webconferências, fóruns e blogs com o objetivo de formar professores e gestores de instituições públicas para a transição da modalidade presencial para a modalidade online.

Destacamos, portanto, que a defesa de políticas de Educação à Distância (EAD) para a América Latina, pelo BID, não se restringe ao contexto gerado pela pandemia do Covid-19. A pandemia se mostrou uma oportunidade para que a fração financeira da classe dominante tivesse um campo aberto para aprofundar a tecnologia da informação no ambiente escolar. Esse aprofundamento é previsto e organizado de acordo com a própria evolução do período pandêmico em quatro etapas: uma etapa inicial chamada de Educação Remota Emergencial; uma segunda fase, de saída parcial do isolamento social, onde índices de aprendizagem devem ser mensurados; um terceiro momento destinado ao ensino híbrido; e por último, a retomada ao “novo normal” com a operacionalização de uma transformação profunda no sistema educacional dos países latino-americanos. O BID defende que é preciso um certo nível de presencialidade para que professores e alunos sejam treinados para o uso dessas plataformas, incorporando-as nas suas atividades cotidianas. O período pandêmico seria uma espécie de treinamento para que a nova organização em formato híbrido pudesse se tornar uma possibilidade para o campo educacional. O que está ligado intrinsecamente aos pilares centrais das diretrizes educacionais propostas pelo capital, como a mercantilização da educação, o estreitamento da relação público-privada e o processo de aligeiramento da formação. Sob o discurso da democratização do acesso ao ensino, da modernidade e da neutralidade tecnológica, a ofensiva capitalista no campo educacional vem sendo aprofundada, a partir do controle sobre o  conteúdo e a forma da educação para a classe trabalhadora. O período da pandemia tornou-se uma oportunidade para a classe dominante ampliar as suas estratégias políticas de dominação, sem maiores resistências dos setores populares que encontram-se isolados socialmente e são a parcela da sociedade historicamente excluída no sistema capitalista.

As recomendações do BID não estão descoladas das recomendações de outros organismos supranacionais como o Banco Mundial, a OCDE e a UNESCO no contexto mundial, embora com algumas nuances de diferenciação que não concentram o objetivo desse artigo. Elas apenas reforçam nossa proposição de que as formas de dominação na contemporaneidade se explicitam a nível global e demonstram o caráter de manutenção das condições de desigualdade sob o discurso da democratização de direitos. Os mais de 300 mil mortos pela COVID-19, declaradamente subnotificados, são em sua maioria pertencentes a classe trabalhadora, que continua sem condições estruturais e concretas de se manter em isolamento social. São essas pessoas que não possuem a opção de não sair das suas casas, enfrentando transportes públicos cheios para cuidarem das casas e da educação das crianças que não são delas. São essas pessoas que não possuem acesso a um tratamento de saúde apropriado. São esses trabalhadores e trabalhadoras que sentem concretamente os efeitos das políticas capitalistas de mercantilização da vida. A agenda para a Educação formulada pelos organismos transnacionais tem no fortalecimento da acumulação do capital o seu maior objetivo e para tanto os trabalhadores são os alvos dessas políticas de ataque aos direitos e de redução da formação humana à mera produção de capital humano.

A educação pública está sob intenso ataque nesses últimos trinta anos, os docentes vêm resistindo, lutando bravamente contra toda opressão do capital. Ainda há muita luta pela frente! Como nos disse Olinda Evangelista, “Se é remoto não é educação!” Sigamos lutando pela vida e pela educação da classe trabalhadora, fortalecendo nossos instrumentos de luta, resistindo contra todas as frentes de ataque, identificando aqueles que estão do outro lado da trincheira, seus projetos e suas verdadeiras intenções, para que  juntos, os trabalhadores possam defender um projeto de sociedade classista em contraposição à ofensiva esmagadora do capital.

 

*Renata Spadetti Tuão é diretora e pesquisadora do Centro de Pesquisa, Memória e História da Educação da Cidade de Duque de Caxias e Baixada Fluminense/CEPEMHEd e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

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