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OPRESSÕES

As ofensivas do governo Bolsonaro contra o aborto legal: seremos resistência

Mariana Faria e Mariana Coimbra, da Resistência Feminista de São Paulo
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves,

Nesta sexta-feira, 28, foi publicada pelo Ministério da Saúde a Portaria nº 2.282/2020 que modificou profundamente o procedimento de justificação e autorização para os casos de aborto legal. A normativa até então em vigor, Portaria de Consolidação nº 5 de 28 de setembro de 2017, foi alterada sensivelmente para a inclusão de dois pontos centrais: a notificação obrigatória da autoridade policial pelos profissionais de saúde que realizarem o atendimento da mulher que tenha sofrido estupro e a “oferta” do exame de ultrassom para a visualização do feto ou embrião.

Essas modificações refletem a verdadeira cruzada do governo Bolsonaro contra os corpos e os direitos das mulheres, parte de um projeto que se sustenta no ódio contra aquelas e aqueles que mais sofrem com as medidas de austeridade e com as contrarreformas. A portaria vem uma semana depois do grave caso da menina de apenas dez anos do Espírito Santo que, após ter seu corpo violado e abusado por quase metade de sua vida, teve seu direito ao aborto legal posto à prova e sua situação e identidade expostas pela ministra Damares e apoiadores do governo.

O entendimento consolidado em respeito à autonomia da mulher e que orienta os serviços de saúde, segundo estabelecido pelo próprio Ministério da Saúde(¹), prevê que a mulher vítima de estupro não seja obrigada a registrar boletim de ocorrência como condição para seu atendimento integral à saúde. No casos de aborto legal, o direito ao atendimento integral pelos serviços de saúde sem qualquer vinculação com as autoridades policiais e a justiça criminal, se essa é a vontade da vítima, é fundamental para que seja garantida a sua proteção irrestrita, preservando a mulher da revitimização e constrangimentos presentes na investigação de sua denúncia. A nova portaria do Ministério da Saúde, no entanto, prevê não só a notificação obrigatória à autoridade policial por parte dos profissionais da saúde nos casos de estupro, como obriga os mesmos a preservarem “fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos”. Isso justamente porque o que se pretende é submeter a mulher à investigação da violência por ela narrada; ou seja, não bastante ser vítima de estupro, a palavra da vítima sobre e violência sexual sofrida é colocada em suspeição, perversamente transformando o que deveria ser uma política de cuidado em verdadeira perseguição pelo Estado. Ao buscar o atendimento de saúde para exercer o direito ao aborto, após ter sofrido violência sexual, a mulher não deve ser submetida à violência institucional que é ter no Estado outro agressor, tão ou mais perverso quanto o primeiro. 

É estarrecedor, ainda, que a mulher em um contexto de vulnerabilidade, após sofrer o estupro e decidir exercer seu direito ao aborto, tenha que ser questionada se deseja realizar ultrassonografia para visualização do feto ou embrião. Trata-se de medida cruel, na intenção de subjugar a decisão tomada pela mulher e constrangê-la em seu atendimento, que deixa de ser sobre o acolhimento integral pelo serviço de saúde e se transforma em uma empreitada moral e religiosa de combate ao direito ao aborto legal. O atendimento às mulheres pelos serviços públicos que realizam o aborto legal deve ser orientado pela proteção e acolhimento integrais e respeito à autonomia e decisão da mulher. 

Outro ponto para termos atenção é a exceção que trazia o procedimento – De Justificação e Autorização de Interrupção da Gravidez – anterior, que não deveria ser aplicado nos casos que envolvem risco de morte à mulher. A nova portaria não apresenta nenhuma ressalva em relação a esses casos, acabando, portanto, por ampliar o trâmite burocrático para todos os casos de aborto legal. 

Ainda que muitas vezes as mulheres precisem enfrentar diversos obstáculos colocados na realidade do serviço público de saúde na efetivação do direito ao aborto legal, e o caso recente da menina de dez anos é exemplo disso, a nova normativa do Ministério da Saúde implica no respaldo legal para que as mulheres tenham seu direito absolutamente esvaziado. As inúmeras violências institucionais pelas quais essa criança passou nos coloca o desafio de garantir que o direito ao aborto legal e seguro, realizado pelo serviço público de saúde, seja integralmente protegido, desburocratizado e sem qualquer interdição. Mais do que isso, exige que lutemos por sua descriminalização e legalização, para que sua realização segura seja um direito de todas as mulheres. A nova normativa do Ministério de Saúde impõe não só grave retrocesso, mas verdadeira violência contra todas as mulheres, ao legitimar uma política de intimidação e constrangimento. Não aceitaremos. 

 

(¹) previsto na Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes

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aborto / aborto legal