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Colunas

O silenciamento do magistério: por que estão calando os docentes?

Tubarões da Educação

A coluna publica textos sobre a atuação da classe dominante na educação, tendo por referência os estudos marxistas e gramscianos produzidos no Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação (LIEPE), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenação do professor Rodrigo Lamosa.

Por André Guiot*

O retorno às atividades escolares ocupa o “debate” público. Desde noticiários televisivos à lives com autoridades, passando por entrevistas com “analistas” em diversas mídias, notamos a ensurdecedora ausência de vozes, posições e reivindicações dos professores “do chão da escola”. Outros profissionais ganham espaço para discorrer sobre precauções, protocolos de retorno, práticas pedagógicas, sem ao menos ter pisado na sala de aula de uma escola pública comum (que não sirva de propaganda para as autoridades públicas). A interdição da publicização das manifestações dos e das docentes mostra, de fato, que não há debate público, posto que não há contraposição de idéias e propostas.  Tal interdição tem em mira não apenas a tentativa de conter a exposição de tensões e contradições que o capital-imperialismo engendra e dissemina, mas também de por em relevo concepções afinadas à reprodução ampliada do capital, especialmente aos setores empresariais que se dedicam à formação para o trabalho simples sob a ótica da mercantilização da educação.

Se um dos mais importantes protagonistas do sistema educacional escolarizado está sendo calado, silenciado, apagado, quem está falando, quem está sendo alçado ao posto de porta-voz das “melhores práticas” a serem adotadas em relação ao retorno às aulas? A quem interessa (e por que interessa) o silenciamento da categoria dos professores em um tema tão sensível, tão caro à atividade da docência? Tentaremos, neste texto, trazer alguns elementos teóricos e políticos para análise de motivos de uma política de silenciamento das reivindicações docentes no que tange ao debate do retorno às aulas em plena pandemia. 

O apagamento, invisibilidade e/ou menosprezo das reivindicações dos professores e professoras (seja na rede pública ou privada de ensino) segue uma lógica corrosiva de precarização e desvalorização da atividade docente que atravessa décadas. Os mecanismos, instrumentos e táticas foram (e continuam sendo) diversas, mas operam num sentido preciso: desmanchar ou descaracterizar ao máximo a validade dos posicionamentos e das reivindicações dos trabalhadores da educação, assim como descredenciar suas formas organizativas (notadamente seus sindicatos) como interlocutores ou mesmo desmantelá-las por completo, seja sufocando seus instrumentos arrecadatórios para manutenção de suas atividades básicas, seja através de ameaças, intimidações, perseguições, assédios à militância e direções sindicais. Trata-se de um processo persecutório de décadas, mas que vem se acentuado numa velocidade meteórica nos últimos anos, cada vez mais acompanhado de brutal violência simbólica, emocional e muitas vezes física contra os profissionais da educação.

O processo de precarização da atividade e da carreira docente se avoluma à medida que as políticas públicas voltadas ao atendimento das reivindicações das camadas populares (notadamente saúde, educação, habitação, saneamento e transporte) são alvos de desmanches e/ou reconfigurações: trata-se da mercantilização de bens e serviços públicos. Isto significa que o que ontem poderia ser alvo de controle social da classe trabalhadora, através de mecanismos de fiscalização, participação na gestão e no direcionamento de verbas, priorização de investimentos etc, atualmente está sendo regido pelo exclusivo interesse privado, o qual a maximização do lucro dos acionistas é uma das peças motrizes.

Devido à frenética concentração de capitais, imensas massas de capital precisam ser valorizadas. Para tanto, o Estado capitalista esforça-se para construir e por em prática um leque de medidas que viabiliza o acesso e a rapinagem do fundo público. Apesar da disputa pela maior parte do quinhão trazer tensões no interior da classe dominante, tal processo claramente significa que as lutas históricas da classe trabalhadora, através de suas organizações (partidos, sindicatos, movimentos sociais), que alçaram status de políticas públicas, estão sendo eliminadas, desmontadas no seio do próprio Estado, através das contrarreformas neoliberais, que também lançam mão de reiterados mecanismos de convencimento da necessidade de alargamento e aprofundamento de sua implementação. Isto também significa que massas de mais-valor que compõem o fundo público precisam ser cada vez mais apropriadas e valorizadas pelo capital. O acesso a tais massas de recursos pelo capital, expresso através de uma miríade de políticas governamentais (subsídios, subvenções, “refinanciamentos” de dívidas, tributação regressiva etc), impulsiona a expansão da acumulação capitalista não apenas através da financeirização de amplos segmentos e aspectos da vida social, mas também da sua mercantilização, especialmente a partir de mecanismos expropriativos de desfinanciamento das políticas e dos serviços fornecidos pelo Estado.

A materialização deste movimento para o cotidiano da classe trabalhadora é a precarização de seu modo de vida, traduzida em formas de subtração do sobretrabalho que culminam na combinação de elemento arcaizantes com modernizantes. O assim chamado “capitalismo de plataformas” é apenas um eufemismo mal disfarçado de tal processo que, inserido no contexto do capitalismo periférico e dependente, torna comum e desejável para os capitalistas o livre manejo da força de trabalho, e sua reprodução em níveis brutais de superexploração.

A questão acerca do definhamento do protagonismo docente frente às inquietações caras às suas práticas profissionais está inserida neste debate de formas de expansão da sobreapropriação do fundo público pelo capital, coligada às mutações no mundo do trabalho. Desfinanciamento e superexploração caminham lado a lado. Nesse processo, a divisão social do trabalho acentua-se de maneira cada vez mais deletéria: há um cristalino e crescente alijamento dos docentes em seu papel de planejador e/ou formulador de suas ações, táticas, instrumentos e métodos pedagógicos, tornando-se meros executores de planos, projetos, concepções advindas aparentemente da burocracia estatal. Aprofunda-se a cisão e o abismo entre o trabalho intelectual e manual no exercício do magistério.

Dissemos que modelos pedagógicos disseminados para as redes de ensino são aparentemente advindos da burocracia das secretarias de educação. Numa apreensão mais imediata, é óbvio que as políticas educacionais se apresentam como oriundas de tal ou qual governo. Ocorre que, na configuração sociometabólica do capitalismo contemporâneo, as políticas públicas para a educação são, na verdade, implementações das traduções dos projetos educacionais elaborados e disseminados por entidades empresariais da sociedade civil. 

Não se trata propriamente de “terceirização” de políticas educacionais feitas pelo Estado a partir da contratação de empresas de consultorias, startups, ONGs, institutos, fundações e outros tipos de entidades associativas vinculadas ao empresariado. Aproximações sucessivas de análises, através de rigorosas pesquisas acadêmicas, atestam a validade da teoria gramsciana de interpretação da dinâmica estatal. 

Em linhas gerais, a categoria “Estado Integral” elaborada por Antonio Gramsci em contextos de sociedades ocidentalizadas procura subsidiar a análise de mecanismos da dinâmica de dominação entre as classes fundamentais. Burguesia e proletariado travam suas batalhas por meio de trincheiras, casamatas ou fortalezas (aparelhos privados) que constituem a sociedade civil. São partidos, sindicatos, clubes, jornais que organizam e dão consistência às vontades coletivas de suas classes e frações de classes de modo que se difundam e ganhem as consciências coletivas no conjunto da sociedade. A aceitação (passiva ou ativa) de dado projeto de hegemonia na sociedade civil entre as classes dominantes torna-se política pública quando posta em prática pelo Estado (aqui entendido pelo conjunto de órgãos e agências estatais). A concepção liberal de Estado plasmado no senso comum apresenta o Estado como emanador de políticas, por meio do preparo “técnico” de sua burocracia, quando, no fundo, trata-se da expressão das lutas ocorridas na sociedade civil conduzidas e/ou traduzidas permanentemente no seio do próprio Estado. Como palco que se apresenta como representante dos “interesses gerais”, o Estado tem o “condão” de converter projetos oriundos de uma classe ou fração particular em algo “universal”, para o “bem comum”. Estado, aqui, é então a resultante, a condensação material relações sociais forças entre classes e frações.

Isto posto, presenciamos desde a redemocratização a emergência de uma constelação de aparelhos de hegemonia do empresariado que alçaram posições de destaque nas políticas públicas em geral, e nas políticas educacionais, em particular. São os que ditam os rumos das políticas educacionais, apontam os caminhos e soluções, introjetam métodos e materiais pedagógicos, propõem fórmulas, planos, esquemas a fim de formar, para as classes subalternas, capital humano capaz de desenvolver capacidades básicas (trabalho simples) de realização produtiva. Por outro lado, trata-se de calar, silenciar, apagar, invisibilizar, descredenciar ou mesmo desconstruir ou aniquilar vozes dissonantes, questionadoras, problematizadoras, principalmente aquelas advindas diretamente do “chão da escola”. 

Às múltiplas formas de repressão aos renitentes soma-se o largo trânsito e “autorização de fala”, por assim dizer, dos intelectuais orgânicos do empresariado e de seus prepostos. Os intelectuais orgânicos são aqueles que organizam política e culturalmente a classe ou fração de classe às quais pertencem. Traduzem seus projetos ideo-políticos entre seus pares, coesionando-os, e tentam emplacá-los como solução ou saída para o conjunto da sociedade. Portanto, trabalham simultaneamente na sociedade civil (em seus aparelhos de hegemonia) e na sociedade política (no Estado estrito), estabelecendo a ponte entre ambas as esferas estatais. Seus prepostos podem ser CEO’s, gerentes, diretores, membros de conselhos de administração, diretamente vinculados ao grupo empresarial e/ou aos aparelhos privados. Mas também podem ser uma série de outros profissionais que lhes dão sustentação, embasam seus discursos e avalizam seus projetos (economistas, médicos, advogados, engenheiros, professores etc).

Ora, no contexto atual de pandemia, em quantas ocasiões não presenciamos uma avalanche de propostas, projetos, intervenções que, expostas rotineiramente pela mídia corporativa, trazem o posicionamento dos intelectuais orgânicos do capital como auto-intitulados como “especialistas em educação”? Não à toa, assiste-se a presença constante de Priscila Cruz, presidente do Todos Pela Educação e de representantes de outros aparelhos de hegemonia, como Instituto Lemann, Instituto Itaú Cultural, Fundação Abrinq, entre outros.

Na rede particular, assistimos ao condicionamento do retorno às aulas aos resultados de pesquisas ou enquetes junto aos pais e/ou responsáveis. Trata-se de uma subordinação às vontades dos tutores, reconhecidos como “clientes”, consumidores da mercadoria-educação, cuja ausência de planejamento estratégico e democrático é regra. Aliado a isto, o Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Educação (SINEPE), em alguns estados da federação, pressiona o executivo e o judiciário para o retorno às atividades escolares. O “ensino remoto” trouxe ao magistério das escolas particulares formas de controle, monitoramento e fiscalização sobre suas atividades profissionais, estendendo em muito mais as horas do trabalho docente na preparação de atividades escolares. Além disso, são infinitas as queixas de assédio, estresse, perturbações psíquicas diversas, provocadas pelos sistemáticos abusos patronais, vilipendiando dramaticamente suas rotinas particulares.

As tentativas de descredenciamento e silenciamento das posições do magistério e de suas entidades organizativas constituem mecanismos mais amplos de desmantelamento dos serviços públicos de qualidade, e do ensino público em particular. Os docentes conhecem perfeitamente os limites impostos pelas estruturas escolares das redes públicas de ensino: escolas com sérios problemas de abastecimento de água, com pouquíssima ventilação, salas pequenas, turmas lotadas, sem papel higiênico, sem papel toalha, sem sabonete, sem ventiladores etc. Isto em condições e em tempos normais. 

Devido à dinâmica estrutural exposta acima, os recursos para educação pública são exíguos e mal direcionados, inviabilizando medidas mais contundentes de precaução pelo poder público, tais como distribuição de maciça de máscaras, aferição de temperatura corporal, investimentos em máquinas de desinfecção e, principalmente, testagens sistemáticas do público escolar. 

Outros desafios em tempos de pandemia são colocados como a ausência das representações sindicais do magistério na formulação de planos de retomada às aulas, assim como de especialistas de instituições consagradas mundialmente, como a FioCruz. 

Cabe realçar que não se trata apenas de limitações estruturais no interior do ambiente escolar, o que já é algo muito problemático. Sabemos que alunos e alunas são vetores do coronavírus para o conjunto da comunidade escolar e também para seus familiares. E o que dizer dos alunos e alunos do Ensino de Jovens e Adultos? O noticiário dá conta de que, em fins de agosto, os jovens entre 18 a 34 anos são que mais se contaminam pela covid-19 na cidade de São Paulo. Acesso em 27/08/2020.

O magistério apresenta entre seus membros muitas pessoas com comorbidades que, em muitos casos, precisam receber suas aulas extras como complemento salarial. Muitos profissionais da educação são idosos. Muitos outros utilizam transportes coletivos para deslocamento entre as escolas, exponenciando as chances de contágio. 

Ora, a pandemia pôs a olhos nus as carências e as desigualdades sociais extremas, o desfinanciamento do serviço público, especialmente das áreas da saúde e da educação. Dar voz aos profissionais da educação significa expor e questionar as agudas contradições do capitalismo na sociedade brasileira e, além disto, rechaçar as políticas educacionais formuladas e geridas pelo empresariado através do Estado. Significa apresentar pautas reivindicativas que disputem o fundo público perante o capital. Significa mostrar e denunciar, no calor do debate, o caráter excludente e espoliativo das classes dominantes no Brasil.

Silenciar os/as professores/as significa tentar arrefecer a luta de classes. Significa procurar obstaculizar a democratização de idéias e eliminar o contraditório. Enfim, significa mais um exemplo de como a classe dominante blinda o seu Estado ante às inscrições das pautas populares. Trata-se de um projeto antidemocrático, antipopular e antissocial, o qual os educadores das classes populares continuarão a combater.  

*Dr. em História Social e professor da Rede Municipal de Educação de Duque de Caxias.