Até março deste ano era quase inevitável a reeleição de Donald Trump. Os EUA passavam por seu melhor momento econômico, o desemprego era o menor em 70 anos, o Presidente tinha apoio popular, tinha vencido o processo de impeachment no Senado, e seu principal opositor, o partido Democrata, se encontrava dividido em inúmeras candidaturas, sendo que Trump vencia a maioria dos democratas nas eleições de novembro, segundo pesquisas de intenção de voto da época.
Mas, parafraseando Drumond, havia uma pandemia no meio do caminho. Tudo aquilo que parecia sólido se desmanchou no ar, mergulhando os EUA em uma gigantesca crise econômica, como o resto do mundo, o contágio e as mortes pelo coronavirus estão longe de ser controlados, e Trump viu sua probabilidade de vitória eleitoral desmoronar.
Pandemia em crescimento e economia em declínio histórico
A primeira morte por coronavirus foi registrada nos EUA em 29 de fevereiro. Em seis meses o país já contabilizou, até 25/9, 5.739.724 pessoas contaminadas e 177.252 mortos. A epidemia não dá sinais de que está controlada e assim o país mais poderoso do mundo, com recursos ilimitados é hoje aquele que mais viu pessoas morrerem por causa do Covid-19. A previsão da Universidade de Washington é que em 1º de novembro, dois dias antes das eleições, o número de mortos deve chegar a 230.000!
Mas, para além da letalidade do vírus, a pandemia foi agravada porque o acesso a tratamento médico nos EUA é essencialmente privado, o que fez com que milhares de pessoas doentes evitassem procurar atendimento para não contrair dívidas impagáveis. Dessa maneira, permaneciam em suas casas aumentando o contágio e elevando muito o risco de morte por falta de atendimento.
Para piorar esse quadro, Trump, como Bolsonaro, preferiu ignorar a gravidade da doença, para que a economia não fosse afetada. O lema lá como aqui foi desde o início “lucros acima da vida”. Com o avanço da doença nas principais cidades americanas os governos estaduais e mesmo Donald Trump tiveram que se curvar a necessidade de isolamento social e ao fechamento de fábricas, escolas e comércio em geral para poder conter o avanço da pandemia. Neste momento o novo foco de propagação da doença está sendo à volta as aulas nas cidades onde a transmissão do vírus não está controlada.
Os efeitos sobre a economia foram drásticos. A maior economia do mundo viu seu PIB encolher 32,9% entre abril e junho, a maior contração desde a Grande Depressão de 1929, segundo os dados do Departamento de Comércio divulgados na última semana. Tudo que o país tinha acumulado em 10 anos de crescimento econômico evaporou de uma hora pra outra. O país está oficialmente em recessão. Como a pandemia não dá sinais de que será controlada, a crise econômica tende a se agravar, mesmo com os pequenos sinais de recuperação nos Estados onde a doença foi controlada.
Para efeito comparativo a Alemanha, um país imperialista e a principal potência europeia, também teve uma queda considerada histórica do PIB de 9,5% no mesmo período, o que não acontecia desde os anos de 1970. A diferença entre os dois países se deve a forma como cada um dos governos tratou a pandemia e seus efeitos sobre a economia. Enquanto o governo alemão tomou desde o início medidas para o controle do vírus, com rígido controle do isolamento social e amplo atendimento médico-hospitalar, Trump e a maioria dos governadores americanos escolheram o negacionismo para tentar conter a crise econômica. Esta aposta não deu certo, e além da brutal queda do PIB, todos os outros indicadores econômicos despencaram.
Mesmo o pacote econômico de 3 trilhões de dólares, que garantiu ajuda para as empresas pagarem salários e deu a cada americano desempregado uma ajuda semanal de 600 dólares, não foram suficientes para estancar a crise e o descontentamento com o governo. Como já se disse uma vez em outro processo eleitoral americano (na eleição de Clinton contra Bush, pai), “É a economia estúpido!”. Trump está sentindo na carne e em queda de popularidade o significado desta verdade cruel: quando a economia vai bem os governos podem contar com a reeleição. Quando a economia vai mal e entra em crise isto se torna muito difícil.
A paralisia da atividade econômica é sentida em todos os indicadores. Os desempregados somam 30 milhões de americanos (antes da pandemia o desemprego era de 3,5%, o menor em 70 anos, e hoje está em 10,2%). O investimento empresarial caiu 27%. O mercado imobiliário teve uma queda de 38,7% em gastos com construção de moradias, enquanto os gastos do governo aumentaram 2,7% em função do gigantesco pacote econômico.
Levante de massa antirracista mobiliza a população americana
Se não bastasse a pandemia crescente e a crise econômica, Trump tem que enfrentar o gigantesco levante antirracista, protagonizado pela população negra, mas que contou com o apoio massivo da população branca americana.
Os protestos antirracistas começaram em maio, em reação ao assassinato de George Floyd. Liderados pelo movimento Black Lives Matter, as manifestações se alastraram pelos Estados Unidos, atingiram mais de 2.000 cidades em 60 países, e até julho calcula-se que entre 15 e 26 milhões de pessoas tenham participado das mobilizações nos EUA, o que os torna os maiores protestos da História americana.
A lição aprendida nas ruas, e que conquistou várias vitórias, como a revisão das condutas policiais e da imunidade policial, com inúmeras propostas de Lei em nível municipal, estadual e federal, está longe de se esgotar. Neste domingo (23), mais um homem negro – Jacob Blake – foi baleado por um policial branco, com 7 tiros dados pelas costas, na cidade de Kenosha, no estado de Wisconsin. A reação da população foi imediata e novos protestos surgiram contra a brutalidade policial e pela punição dos culpados. Os protestos já duram três dias e 2 pessoas foram mortas por um adolescente supremacista branco, que já está preso.
A resposta de Trump as mobilizações foi a intensificação da repressão, com o envio de tropas federais – a Guarda Nacional – para as cidades governadas pelos democratas, numa tentativa de tentar associar os protestos a uma suposta “ação terrorista interna” ou “ao que pode acontecer com o país caso o Partido Democrata ganhe as eleições de novembro”. O aumento da militarização e da retórica agressiva de Trump não deu certo, e o governo tem sido amplamente criticado por isso, fazendo com que sua popularidade diminua ainda mais.
As pesquisas apontam que 68% dos americanos apoiam os protestos antirracistas, e isso se reflete no boicote dos jogadores da NBA, que se recusam a entrar nos jogos, em apoio aos manifestantes e em solidariedade a Jacob Blake.
As possibilidades eleitorais de Trump diminuíram, mas ele ainda não está derrotado
A combinação entre pandemia, crise econômica e mobilização de massas tornou muito difícil as possibilidades de reeleição de Trump. Para todos os cenários que se olhe, se a eleição fosse hoje, Joe Biden, o candidato democrata estaria eleito.
Nas pesquisas de popularidade Trump tem hoje 41,6% de aprovação e 54,7% de rejeição, segundo levantamento do site Five Thirty Eight, que faz análise estatística em base a média das sondagens de diversos institutos de pesquisa. A queda de popularidade se confirma pela desaprovação da população americana a condução do governo no combate a pandemia do coronavírus, com 58% de desaprovação. Entre os democratas a aprovação é de 10%, mas é de 78% entre os republicanos.
As pesquisas de intensão de voto não favorecem o republicano. Na medida em que se aproxima o dia da eleição (3/11), Trump vê a intenção de voto crescer para Joe Biden. Hoje, o democrata tem 50% da preferência eleitoral dos americanos e Trump tem 42%. No entanto, a vantagem de Biden entre os eleitores não lhe garantem a presidência. Em 2016 Trump perdeu as eleições no voto popular por cerca de 3 milhões de votos para Hilary Clinton, e mesmo assim se tornou Presidente. Isto é possível porque a eleição americana é indireta. O presidente é escolhido por um Colégio Eleitoral e o que conta para ser eleito é vencer nos estados chave, isto é, aqueles que concentram os maiores números de delegados, já que quem vence em cada estado fica com a totalidade dos delegados. Foi assim que Trump se tornou Presidente em 2016, mesmo perdendo no voto popular.
Para se eleger não basta apenas ganhar a maioria. É necessário ganhar nos estados decisivos. O Colégio Eleitoral americano é composto por 538 votos, e para se eleger o (a) candidato (a) deve ter 270 delegados. Os estados decisivos são 14. Neste momento da corrida eleitoral Biden está vencendo em 10 e Trump em 4. Se esta tendência se confirmar, Biden chegará ao Colégio Eleitoral com 350 delegados e Trump com 188, segundo as previsões do The Economist.
Trump também tem problemas dentro de casa. O fogo amigo chegou ao Partido Republicano. Poucas horas antes de Biden ser nomeado como candidato, 70 republicanos que trabalharam em cargos da Segurança Nacional publicaram uma carta de apoio ao candidato democrata. Este grupo é o mesmo que após a eleição de Trump, em 2016, publicou uma declaração alertando que Donald Trump “seria o presidente mais imprudente da História americana”. Na nova carta o grupo subiu o tom e apontou 10 pontos onde se opõem as ações de Trump, entre elas acusações de que enfraqueceu o estado de Direito, apoiou ditadores e se envolveu em corrupção. Em sua convenção o Partido Democrata exibiu depoimentos de vários republicanos apoiando Biden.
As dificuldades são muitas, mas Trump ainda não está derrotado
Há uma torcida mundial pela derrota eleitoral de Trump. Motivos não faltam para ele ser odiado. Um governo que defende abertamente o racismo, a misoginia, a xenofobia, e que elevou muito a exploração dos trabalhadores no mundo e também dentro dos EUA. Antes da pandemia 50% dos americanos estavam vivendo na pobreza, apesar do desemprego baixo.
Faltando 63 dias para a eleição, Trump resolveu reeditar o discurso que o levou a Casa Branca: “Fazer a América grande outra vez”. Ele vai tentar se apresentar, ao eleitorado conservador, como o governante capaz de reconquistar o crescimento econômico de antes da pandemia, na medida em que o coronavirus “seria uma fatalidade da natureza”. Resta saber se os mais de 5 milhões de infectados e os familiares dos 180 mil mortos vão engolir que o governo não tem nenhuma responsabilidade nesta tragédia sanitária.
Após a convenção democrata, onde Trump foi bastante criticado, ele assumiu o discurso de que Biden fará um governo da “anarquia, loucura e caos”. Para isso se apoiou nos enfrentamentos entre manifestantes e policiais ocorridos nas passeatas antirracistas, principalmente em cidade governadas pelos democratas. Em pronunciamento a ativistas conservadores Trump disse: “Eu sou a única coisa entre o sonho americano e a anarquia total, a loucura e o caos”. Em outro discurso associou o Partido Democrata a “socialistas e marxistas da esquerda radical”, coisa que o adversário está longe de ser. Um governo Biden não vai instaurar o socialismo nos EUA. Ao contrário, a classe trabalhadora americana e mundial não verá muita diferença entre Trump e o democrata, no que diz respeito à manutenção de direitos básicos.
Trump pode ter nos altos índices de abstenção nas eleições americanas, um aliado. Não está claro qual será o comportamento do eleitorado diante da pandemia, e é exatamente por isso que Trump está questionando a votação pelos Correios. Hoje, os eleitores republicanos se mostram mais dispostos a votar do que os democratas. São também os eleitores mais fiéis a Trump, por lealdade ao Partido Republicano, por acordo ideológico ou por medo de um futuro governo democrata que pode aumentar o tamanho do Estado ou criar mais impostos. A mesma lealdade não existe em parte eleitorado democrata. Biden não é visto por eles como um grande candidato ou o candidato ideal. Para essa parcela dos democratas o melhor seria ter uma candidata mulher, moderada e pragmática. Este é o papel de Kámala Harris como vice-presidente. Atrair os setores descontentes e que querem uma renovação no Partido Democrata.
A campanha eleitoral começa assim que terminarem as convenções partidárias. Os debates na TV entre os presidenciáveis e seus vices são acompanhados pela maioria dos eleitores americanos. Estes embates na mídia já decidiram outras eleições. Neste terreno a vantagem é de Trump, um hábil comunicador. Os americanos darão seu voto ao candidato que se mostrar mais capaz de resolver a crise sanitária e econômica, mas que também responda a luta antirracista.
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