O cotidiano do novo normal e a vitória do bolsonarismo

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“– Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.”
(Machado de Assis, em Dom Casmurro)
A recente tese de Monica Brun discorre sobre como Henri Lefebvre enxergou no cotidiano das cidades modernas o principal lócus da reprodução das relações sociais burguesas. A então lukacsiana Agnes Heller, por sua vez, tomou o cotidiano moderno como o espaço da alienação por excelência. Uma simples caminhada pela pandêmica cidade do Rio de Janeiro nesses dias frios e desleais não faz senão comprovar empiricamente as ideias, hoje um tanto esquecidas – talvez, dialeticamente, por conta de sua incômoda atualidade.
O estranhamento maior que sentimos não é propriamente o de ver pessoas de máscaras e algumas cadeiras vazias entre as ocupadas por clientes nos bares e restaurantes, e sim o de notar como a própria rotina, o cotidiano, o simples e absurdo fato de haver calçadas apinhadas e ruas engarrafadas já não parece estranho à maioria dos transeuntes. Não é necessário envidarmos muitos esforços para entrever a relação de causalidade entre o crescimento do número de casos/óbitos de covid e a normalização do “novo normal”, a flexibilização, o retorno do ramerrão, a volta do cotidiano. Mas talvez justamente por ser tão óbvia esta obviedade é não só negada enfática ou silenciosamente, respectivamente, pelo bolsonarismo e pelos entusiastas midiáticos da “retomada da economia”, mas também parece ser tacitamente rejeitada, possivelmente recalcada, por milhões e milhões de pessoas.
A necessidade material, aquela que Marx certa feita chamou de “coerção cega”, impele uma ingente massa humana ao trabalho, pois se o capital sempre foi “trabalho morto que, feito um vampiro, só pode viver sugando o trabalho vivo – e que quanto mais trabalho suga, mais vive” – , ele agora sequer se importa se o sangue de suas vítimas pode vir a apresentar sinais de um vírus letal, afinal, o vampiro é imune e a força de trabalho hoje se encontra na mesma abundância em que num pasto se acha estrume. Porém, há centenas de milhares de citadinos dos estratos médios cuja compulsão em ir à rua, ao mercado, ao shopping, ao bar é de outra ordem que não a propriamente material, econômica, por assim dizer. O automatismo, a rotina, o cotidiano vazio de vida e cheio de morte exerce uma força de atração sobre os cidadãos médios tal qual a Terra – redonda, claro – sobre os corpos que adentram seu centro gravitacional. A mesmice, a ignorância, o imediatismo, o pragmatismo, a vontade de “fazer” e o medo de ler, o individualismo em massa, o particularismo em geral, o espírito gregário carente de espírito comunitário, tudo isso parece prevalecer sobre a razão, a ciência e o coração em um país que há muito parece desprovido de um, tamanha a insensibilidade de sua classe dominante. Temos, assim, nas ruas, “cegos guiados por cegos”, como consta nas escrituras. Talvez resida aí a maior vitória ideológica do bolsonarismo, que é a de elevar ao poder e, por conseguinte, espraiar no tecido social do país, por meio de uma guerra cultural inclemente, a subjetividade tacanha do “cidadão de bem” decadente.
As ruas cariocas cheias, as quais fazem encher gradativamente os cemitérios, são, hoje, a prova cabal dessa vitória ideológica do neofascismo brasileiro, e a força dessa subjetividade reacionária plebeia é diretamente proporcional à covardia dos nossos insignes e inocentes moradores do Alto Leblon. Não se trata, assim, por óbvio, de uma crítica moral, de uma quase kantiana cobrança pelo cumprimento de um postulado ético transcendental por parte dos sujeitos (“fiquem em casa”), e sim da constatação de uma miserável subjetividade produzida pelos mesmos em meio a – e determinada por – uma miserável forma social estranhada, uma objetividade social alienada, a qual hoje se reproduz por meio de um cotidiano cada vez mais desumano. Em suas “Memórias da casa dos mortos” o jovem Dostoiévski disse que “o ser humano a tudo se habitua”, mas talvez até mesmo ele ficaria surpreso se soubesse que um vulgar presidente e o obstinado “mercado”, com seu ódio aparente e sua mão invisível, respectivamente, conseguiram fazer milhões de pessoas se referirem no passado ao presente e, assim, se habituarem a uma nova-velha rotina, a um insípido cotidiano, a um “novo normal” que faz da vida humana algo tão desprezível quanto banal.