Nesta terça-feira, 25 de agosto, o TSE aprovou, por 7 votos a 1, o financiamento eleitoral proporcional a candidaturas negras, a partir de 2022. A distribuição proporcional também vale para a divisão de tempo de TV do horário eleitoral gratuito para todos os partidos.
Ainda que não entre em vigor nestas eleições, essa é uma vitória extremamente importante do Movimento Negro, para a atualização mais que necessária do sistema eleitoral brasileiro, que produz, ao longo da história, uma representação política distorcida e desproporcional dos setores sociais do Brasil, uma das mais desiguais do mundo, dentre as democracias. Uma população que é majoritariamente negra, feminina e popular, representada por homens, brancos, cis, supostamente heterossexuais e das elites.
“O branco enquanto metáfora do poder”, como disse o escritor estadunidense James Baldwin (1924 – 1987), no livro Remember This House (1979), inspiração do filme “Eu não sou seu negro”, cuja direção coube ao haitiano Raoul Peck.
Como sabemos que o racismo estrutural está entranhado, também em nossa cultura política e em nossas instituições – todas elas – esse é um avanço inegável para o país. Assim como é um avanço inegável a aprovação, pelo PSOL nacional, ainda antes da decisão do TSE e com validade já para 2020, de novas regras para a distribuição do Fundo Eleitoral. Novas regras que visam disponibilizar uma maior porcentagem dos recursos para grupos que são maioria, mas que, historicamente, estão em desvantagem na política brasileira – mulheres, negres, indígenas, quilombolas, LGBTs e pessoas com deficiência. Sinal de que certas conquistas precisam vir e que a reflexão e a AÇÃO precisam se dar internamente nos partidos, principalmente os de esquerda, para que o discurso feminista, antirracista e antiLGBTfóbico seja também sua prática.
Acontece que também a branquitude crítica, enquanto esse lugar de reconhecimento de privilégios objetivos, subjetivos e simbólicos, não para de construir estratégias de permanência nos espaços de poder e decisão, ainda que o debate tenha se ampliado e sejam construídos instrumentos (legais ou não) de democratização desses lugares de poder. É possível se dizer o mesmo quando falamos de ampliação da representatividade feminina e sobre o descompasso que há entre o que é determinação legal e como se dá a efetividade na implementação desses instrumentos de lei, na prática.
A luta das mulheres negras, também internamente nos partidos e na política institucional, tem sido fundamental para que o debate seja feito de forma mais aprofundada, para que a lógica dos privilégios seja questionada, exposta. Muitos podem achar que esse é um dado novo, mas não é. De Antonieta de Barros a Lélia Gonzalez, de Benedita da Silva e Marielle Franco. Todas elas ajudaram a produzir uma infinidade de lideranças políticas femininas e feministas negras na política nacional atual. As sementes de Marielle estão por toda parte, e não param de florescer.
Apesar dos avanços, as parlamentares negras (pretas ou pardas) são apenas 2,36% do Congresso Nacional, em um universo de mulheres parlamentares também reduzido, de 15% do conjunto do parlamento brasileiro. Segundo dados do Relatório do Pnud (2019), “o Brasil tem menos mulheres no Parlamento que Níger, país com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. Lá, as mulheres ocupam 17% das cadeiras”.
É importante que compreendamos de que vitórias, ainda que pontuais, precisam ser comemoradas e valorizadas, porque elas nos permitem respirar e continuar a luta para que a exploração, responsabilidade e razão de ser do sistema capitalista que é, no Brasil, ancorado sobre as bases do racismo e do patriarcado, seja superada. E essa superação pressupõe um sistema em que a vida valha mais que o lucro, mas também a conquista de um patamar civilizatório que não seja baseado na desumanização de parcelas inteiras da nossa população em detrimento de outras.
No campo da política institucional, não é possível ignorar que o caminho trilhado para que a democracia representativa brasileira faça jus a esse título, ele precisa não apenas estimular as candidaturas desses sujeites invisibilizades, mas ampliar a possibilidade concreta da eleição destas nos espaços de poder e decisão, a fim de mudar o quadro de sub-representatividade política nas nossas cidades. Fora disso, é imprimir uma falsa ideia de fortalecimento real desses sujeites.
A compreensão do racismo estrutural e da perspectiva interseccional (indissociabilidade de raça, classe e gênero) não pode ser um discurso vazio e retórico das esquerdas. Não podemos deixar que o conjunto das mulheres negras que se disponibilizam a disputar eleições seja quebrada, minimizada ou utilizada como instrumento de manutenção de poder e privilégio dos mesmos, dos de sempre – daquela branquitude crítica apresentada acima.
Assim como não podemos deixar que os avanços conquistados pelo Movimento Negro e pelo conjunto das Mulheres Negras em luta sejam utilizados pela direita e ultradireita fascista para produzir representações fake, de perspectivas liberais, e/ou desenterrar modelos racializados e engendrados de representação política que não representem o combate às desigualdades e ideais de transformação social para a maioria do povo.
É tempo de comemorar o avanço no TSE em relação à distribuição proporcional de recursos para candidaturas negras, mas é tempo de fazê-lo reafirmando que os desafios ainda são enormes. E que o nosso papel de “neguinha atrevida”, do texto histórico de Lélia Gonzalez apresentado abaixo, estará presente em cada ação que vise, ainda que por debaixo dos panos, fazer com que alguma de nós continue a ser deixada (ou passada) para trás.
**Feminista negra, Defensora de Direitos Humanos e Relatora Nacional de Direitos Humanos da Plataforma DHESCA, membro do Fórum Marielles, Arquiteta e Urbanista, Mestra em Desenvolvimento e Gestão Social, dirigente do Coletivo 4 de Novembro, mulher mais votada para Deputada Estadual pelo PSOL em 2018, 2ª suplente de Deputada Estadual na ALBA e Pré-candidata a Vereadora, também pelo PSOL, em 2020.
“Cumé que a gente fica?*
(Lélia Gonzalez)
Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente pra uma festa deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente. A gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até pra sentar na mesa onde eles estavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado.
Eram todos gente fina, educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam das coisas. E a gente foi se sentar lá na mesa. Só que tava cheia de gente que não deu pra gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles.
Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que nem repararam que se apertasse um pouco até que dava pra abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente não podia bagunçar com essa de chega pra cá, chega pra lá. A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham chamado ela pra responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa pra falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba.
A negrada parecia que tava esperando por isso pra bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava mais pra ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham chamado a gente pra festa de um livro que falava da gente, e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles.
Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Teve uma hora que não deu pra aguentar aquela zoada toda da negrada ignorante e mal-educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu pra cima de um crioulo que tinha pegado no microfone pra falar contra os brancos. E a festa acabou em briga…
Agora, aqui pra nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com a língua nos dentes… Agora tá queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se comportar? Não é à toa que eles vivem dizendo que ‘preto quando não caga na entrada caga na saída…”
* Texto apresentado, pela primeira vez, por Lélia Gonzalez, na Reunião do Grupo de Trabalho “Temas e Problemas da População Negra no Brasil”, durante o IV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, realizado no Rio de Janeiro, entre os dias 29 a 31 de outubro de 1980.
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