Trago na memória a história de uma menina “filha” de parteira, as parteiras, tão comum em um passado recente da nossa história, e que eram responsáveis pelo poder ancestral da reprodução social, um conhecimento transferido de geração a geração. As mulheres detinham o conhecimento dos chás, das ervas, da cura. Quando criança íamos muito pouco ao médico minha mãe nos levava às benzedeiras e eram tratadas com as simpatias, e os xaropes caseiros. E onde está o poder dos chás? Embalado em cápsulas e vendido a preços exorbitantes. E as benzedeiras, as curandeiras e as parteiras? Assassinadas nas fogueiras! “A violência de gênero que vivenciamos hoje reflete as dinâmicas contraditórias da família e da vida pessoal na sociedade capitalista. E essas, por sua vez, são na inconfundível divisão, pelo sistema, entre a produção de pessoas e a obtenção de lucro, família e ‘trabalho’” (ARRUZA, BHATTACHARYA, FRASER, 2019, pg. 57). Foi necessário a destruição, e a transformação do modo de vida público com base nas comunidades, para a vida privada do individualismo. A consequência da consolidação do sistema capitalista, o racismo estrutural, a ampliação das opressões.
A dor é imensurável, o silêncio e a culpa acompanham as vítimas de violências. Enquanto escrevo essas linhas me lembro de um ditado que minha mãe dizia “foi pega à laço”. A colonização das Américas foi feita por meio do horror, da violência e da dor. O sequestro e o estupro das mulheres indígenas deram a base para a formação social do Brasil. A escravidão normatizou a violência nos corpos das mulheres negras. Muitos de nós ainda não se deram conta de que somos frutos da violência. “O que permite essa violência é um sistema hierárquico de poder que funde gênero, raça e classe. O que resulta disso é o esforço e a normatização desse sistema” (ARRUZA, BHATTACHARYA, FRASER, 2019, pg. 59).
A cultura do estupro banalizada na dor de uma criança de 10 anos, a menina pequena com sonhos de criança não conseguiu se defender do tio mau? A violência sexual na qual essa criança foi exposta, infelizmente não é única, num país que mais mata as mulheres por questão de gênero, o abuso sexual está presente nas histórias de muitas crianças, dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos mostra que dos “159 mil registros feitos pelo Disque Direitos Humanos ao longo de 2019, 86,8 mil são de violações de direitos de crianças ou adolescentes, um aumento de quase 14% em relação a 2018”.
Os dados demonstram ainda que quem deveria cuidar se torna responsável pela dor: “O levantamento da ONDH permitiu identificar que a violência sexual acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito, mas é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias”.
O estado opressor julga o corpo de um anjo sonhador, os fundamentalistas religiosos usam o corpo de uma criança para espalhar o ódio e o terror. Ao meio de tudo isso, ressoam as vozes das mulheres que se organizam em busca de um lugar mais seguro para os nossos corpos. Na contramão do discurso neofascista incorporado, principalmente, pelo presidente genocida, misógino e sexista. Os movimentos feministas sempre desempenharam um papel essencial para assegurar políticas sociais. Mais uma vez se preparam para ocupar às ruas e afirmar que o aborto é legal quando há violência sexual, lutar pela liberdade aos nossos corpos e pela descriminalização do aborto.
#Nem mãe sem desejar
#Nem presa por fazer
#Nem morta por tentar
#ABORTO LEGAL JÁ
* Angela da Silva Leonardo é professora de Londrina, licenciada para o pleito eleitoral. É pré-candidata pela pré-chapa coletiva Voz das Mulheres PSOL, é integrante da Resistência Feminista.
REFERÊNCIA
ARRUZA, Cinzia. Feminismo para os 99%: um manifesto. Cinzia Arruza, Tithi Bhattacharya, Nancy Fraser; tradução Heci Regina Candiani. 1. Ed. – São Paulo: Boitempo, 2019.
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