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Trotsky vive, oitenta anos depois

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

No dia 21 de agosto de 1940, oitenta anos nesta sexta-feira, Leon Trotsky foi assassinado por Ramon Mercader, um oficial da espionagem soviética, catalão de nascimento, por ordem de Josef Stalin. Depois de iniciada a Segunda Guerra Mundial, Trotsky era consciente que estava marcado para morrer. Mercader tinha se infiltrado no círculo íntimo de Trotsky e teve acesso à casa, no bairro de Coyoacán, na Cidade do Mexico, onde estava exilado.

O crime foi, especialmente, brutal: Mercader usou um quebrador de gelo, uma mini-picareta para golpear a cabeça de Trotsky. Era o último dos líderes da revolução de Outubro vivo, mas só tinha 60 anos ao morrer. Todos os outros tinham falecido antes, a maioria condenada à morte nos três julgamentos de Moscou entre 1936/38.

Trotsky tinha nascido na cidade de Ianovka, no sul da Ucrânia, no dia 7 de novembro de 1879, o mesmo dia em que triunfou a revolução de Outubro, no calendário juliano, que ainda vigorava na Rússia. Mas Trotsky era um cidadão do mundo. Uniu muito jovem sua vida à causa do socialismo. Foi estudar em Odessa, foi preso e desterrado para a Sibéria duas vezes, morou em Londres, Viena, Paris, Berlim, além de São Petersburgo e Moscou, além de exílios em Istambul, Oslo, e no Mexico. Lia e falava ucraniano, russo, francês, alemão e inglês. Era ucranianao, russo e judeu, mas, sobretudo, era um internacionalista.

A ideia de que o conflito entre Trotsky e Stalin se explica como uma luta pessoal pelo poder é ingênua. Foi uma disputa política que expressava diferentes pressões sociais. Durante os primeiros dez anos, embora os capitalistas tenham perdido o controle de seu capital e propriedades, persistiam antigas desigualdades sociais entre os habitantes do campo e da cidade, e agigantaram-se novas iniquidades entre os funcionários do Estado e do partido, e as amplas massas populares.

A luta pela redução da desigualdade social era o coração do projeto bolchevique. A fração que apoiava Stalin era a expressão da exaustão política de uma emergente burocracia ansiosa pela elevação imediata do seu padrão de vida material e cultural, e ambicionava a preservação do controle do aparato do Estado e do aparelho do partido. A oposição de esquerda liderada por Trotsky era a expressão da resistência da ala internacionalista que se opunha ao crescente autoritarismo e apostava no futuro da revolução mundial.

Esta luta só pode ser compreendido no contexto das transformações que a recém constituída União Soviética atravessou. As condições do atraso econômico, de miséria social, de arcaísmo cultural e de isolamento político, agravadas pela destruição material e humana da guerra mundial e da guerra civil, eram obstáculos intransponíveis para a transição ao socialismo.

As esperanças dos bolcheviques se alimentavam da perspectiva da revolução alemã. A aposta em uma revolução na Alemanha, um dos países mais desenvolvidos, economicamente e culturalmente, fundamentou a criação da III Internacional, e a expectativa de expansão da revolução europeia.

Foram duas as principais contribuições teóricas de Leon Trotsky para o marxismo do século XX. A primeira foi a elaboração sobre a degeneração do Estado soviético, compreendido como um híbrido historico: uma formação social pós-capitalista pioneira em transição, que se apoiava na propriedade social e no planejamento economico, as relações sociais mais avançadas do mundo, mas uma superestrutura política burocrática que sustentava um regime dictatorial, uma das formas políticas mais atrasadas.

A segunda foi a teoria da revolução permanente elaborada depois da revolução derrotada de 1905. Tinha como argumento forte a perspectiva de que, mesmo em países retardatários, como a Rússia, que chegaram atrasados às transformações capitalistas, portanto, em que as tarefas históricas da revolução burguesa não tinham sido realizadas, estaria reservado ao proletariado a necessidade de ser o sujeito social na liderança da revolução democrática em aliança com todos os oprimidos, em especial, a maioria camponesa e as massas das nacionalidades, sob o jugo da tirania czarista. Defendia que a vitória na revolução política democrática contra o Czarismo deveria ser a antesala de uma segunda revolução social anticapitalista em processo ininterrupto, em permanência, contra o capital.

Considerando a maturidade de condições históricas, que se definiriam à escala internacional, estaria colocada a possibilidade de substitucionismo social e um desenvolvimento por saltos históricos. Esta análise se fundamentava na teoria do desenvolvimento desigual e combinado.

Toda formação econômico-social em países retardatários convive com contradições internas dilacerantes, expressão do desenvolvimento desigual e combinado: a estrutura social mesma se atrasa em relação ao desenvolvimento das forças produtivas. Grandes massas camponesas no campo, às vezes, numericamente muito expressivas, subsistem muito tempo depois da penetração da grande indústria, assim como se perpetuam resíduos de classes médias de artesãos e comerciantes nas cidades, embora as suas atividades estejam, economicamente, ameaçadas pelo progresso técnico e pela concentração do capital. Disto resulta que relações sociais arcaicas e obsoletas são uma obstrução à penetração de relações modernas e avançadas, mas como o desenvolvimento é desigual, surgem amálgamas desproporcionais: o vigor das novas relações serve como um impulso adiante.

Estas duas elaborações teóricas passaram a prova no laboratório da história. A questão mais decisiva sobre a natureza da União soviética era: qual seria o seu futuro mais provável? Poderia a burocracia ser um aliado dos trabalhadores resistindo a um processo de restauração capitalista? Ou, sob a pressão avassaladora do mercado mundial, a casta burocrática buscaria a sua assimilação como camada burguesa associada? Trotsky previu que, se a revolução mundial não avançasse, seria uma questão de tempo até que a burocracia abraçasse o projeto de se transformar em classe proprietária. Foi o que ocorreu , dramaticamente, entre 1989/91, sob a liderança do partido comunista, primeiro sob a direção de Gorbatchev e depois de Yeltsin.

À luz da experiência histórica, quais foram os acertos sobre a teoria da revolução permanente? O maior acerto foi a compreensão de que, na época do imperialismo, todas as revoluções seriam, potencialmente, anticapitalistas. Porque as revoluções políticas democráticas têm uma possível dinâmica anticapitalista.

Em outras palavras, apesar do estágio maior ou menor de desenvolvimento capitalista da nação, as tarefas democráticas pendentes colocaram a necessidade de ruptura com o imperialismo na China e em Cuba, na Yugoslávia e no Vietnam . E, por essa via, com a propriedade privada, quando a luta pelo programa democrático foi levada, consequentemente, até ao fim.

Trotsky morreu assassinado defendendo a bandeira do internacionalismo quando ela foi depositada nas suas mãos. Chile, Argélia e Belarus, neste final trágico desta segunda década do século XXI, demonstram que revoluções, mesmo com destinos incertos, continuarão ocorrendo. Nelas, Trotsky vive.

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