Por Luiza Colombo (Prof.ª Pedro II) e Rodrigo Lamosa (Prof. UFRRJ)
“Aqui, o que nós queremos da educação, é que no final da linha, prezado ministro Milton [Ribeiro], é que esse jovem, com seus 20, 21, 22, 25 anos de idade, ele seja formado um bom profissional. Vai ser um bom empregado, um bom patrão, um bom liberal. E não apenas, como acontece em parte do Brasil ainda, um militante político. O investimento começa na base.”
Foi com este discurso que Bolsonaro saudou a inauguração da primeira escola “cívico-militar” da rede municipal do Rio de Janeiro no dia 14 de agosto de 2020. O espetáculo de horrores, digno dos atores mais canastrões, vivenciado na manhã de uma ensolarada sexta-feira no subúrbio carioca, foi produzido por uma escrete responsável em grande parte pela pandemia da pandemia, catalisada pelos governos ultraconservadores e sua política genocida. Ao lado do bispo-prefeito e seus ministros, incluindo Milton Ribeiro (MEC) e Augusto Heleno (chefe do Gabinete de Segurança Institucional), o presidente revelou parte fundamental que investe o projeto de militarização das escolas no Brasil. De acordo com Bolsonaro, a escola pública é “quase como quartel, se não tiver hierarquia e disciplina, ele [estudante] não cumpre a sua missão”.
Entretanto, Bolsonaro não é o mentor da ideia de transformar as escolas em quartéis para a formação de liberais. Então, de onde vem este projeto? Onde são formulados estes discursos? As mudanças produzidas nas escolas que são militarizadas e seus desdobramentos têm sido defendidos por organizações que vêm compondo uma frente de ação ideológica liberal-ultraconservadora. Estas foram as questões que nos mobilizaram a escrever este artigo.
A inauguração desta escola representa a inserção de uma das maiores redes públicas de ensino da América Latina em um processo de militarização em franca expansão em todo país. A militarização das escolas vem ocorrendo em todos os estados, desde a década passada, assumindo formas distintas em cada estado ou município. Em 2019, assim que assume a presidência, o governo Bolsonaro criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares no Ministério da Educação. Depois, em setembro, a partir do Decreto Nº 10.004, o lançamento do Programa Nacional das Escolas Cívico Militares federalizou o processo de militarização das escolas brasileiras.
A defesa da militarização das escolas públicas tem crescido, em todo o Brasil, especialmente a partir de 2013, quando identificamos maior ofensiva da frente liberal-ultraconservadora no país. Essa frente é formada por um amplo conjunto de organizações do tipo “think tanks” (que na nossa leitura gramsciana são Aparelhos Privados de Hegemonia) e outros tipos de organizações, que se expressam em redes de articulação e financiamento transnacionais (tal como a Atlas Network) e nacionais (tal como a Rede Liberdade, por exemplo). Dentre seus princípios liberais, defendem a predominância do indivíduo sobre o Estado (no sentido da ausência de políticas universais e da garantia de direitos básicos), a liberdade absoluta do mercado e a defesa irrestrita da propriedade privada. Também identificamos, especialmente no Brasil, preceitos do fundamentalismo religioso cristão que dão o tom ultraconservador também à grande parte das organizações que integram o conjunto desta frente, o que tornou possível e necessário caracterizá-la como ultraconservadora, haja vista a característica essencialmente conservadora da burguesia no Brasil ao longo de sua formação histórica no capitalismo dependente.
Na educação, identificamos o movimento Escola Sem Partido, no sentido da ideologia que representa, como o principal eixo articulador desta frente de ação ideológica. No nível discursivo e na profunda difusão de seu receituário de ações por meio de grande investida de suas novas estratégias de penetração na sociedade política e na sociedade civil, a marca propagandística “Escola Sem Partido” vem representando o conjunto de uma agenda liberal-ultraconservadora para as políticas educacionais no Brasil. Assim é produzido e difundido, por meio das organizações liberais-ultraconservadoras, o pânico moral sobre a suposta “ideologia de gênero” e a ideia de que a escola e as universidades públicas seriam palco de “doutrinação marxista”. Desta maneira tornam as escolas e universidades seu principal alvo. Para acabar com os “inimigos” e consolidar o projeto educacional da economia de mercado, eles têm buscado modificar a educação pública em todos os seus sentidos sócio-hisóricos.
E quais são principais políticas educacionais dessa frente? Aqui, destacamos as três principais: 1) a privatização das redes públicas em todos os níveis de ensino com transferência do fundo público através da implementação do sistema de vouchers; 2) a Educação Domicilar (que para nós é uma renovada roupagem para ampliação da Educação à Distância); e 3) a militarização das escolas. Portanto, vemos que esta pedagogia da hegemonia, representada pela ideologia do Escola Sem Partido, que visa formar jovens liberais, conservadores e reacionários, tem sido bem explicitada a partir do avanço da militarização das escolas.
As escolas militarizadas em nada lembram a rede de escolas do exército brasileiro. A militarização das escolas brasileiras tem sido formalizada pela parceria entre as secretarias de educação e as secretarias de segurança. A escola militarizada continua a pertencer a rede estadual ou municipal de educação, mas passa a ser organizada de forma também completamente distinta do conjunto das demais escolas estaduais ou municipais. A organização das escolas militarizadas se difere das demais já no ato que converte a unidade de ensino à condição de “escola militar”. Com turmas reduzidas, professores com matrículas integralmente dedicadas a estas unidades de ensino, verbas oriundas de emendas parlamentares e outras formas de financiamento vêm caracterizando condições bastante particulares de organização destas escolas.
A proposta de formar “um bom liberal” por meio da militarização das escolas está prevista no programa federal das escolas cívico-militares que impulsiona valores e concepções meritocráticas. No programa a avaliação dos alunos é realizada, calculada e medida em pontos. Os alunos devem seguir os valores do programa: civismo, dedicação, excelência, honestidade e respeito, sem qualquer consideração, menção ou apontamento à pluralidade de ideias, concepções e valores, gestão democrática ou liberdade de consciência. Como numa espécie de ranking a escola premia os “melhores” por meio de uma escala calculada da seguinte maneira: a) Elogio coletivo- 0,10; b) Elogio individual – 0,30; c) Aprovação – 0,50; d) Aprovado com recuperação final – 0,20; e) Transcurso de tempo sem receber medida educativa – 0,01 (um centésimo) ponto por dia no grau de comportamento do aluno que não sofra medida educativa no período de 30 (trinta) dias a contar da última medida educativa aplicada.
A militarização tem reorganizado também toda a estrutura administrativa e pedagógica das escolas. Na rede estadual de Goiás, por exemplo, as escolas que estão sendo militarizadas, desde 1999, tiveram seus projetos político-pedagógicos substituídos por um regimento escolar militar, as direções eleitas pelas comunidades escolares foram substituídas por um comando militar e o currículo foi alterado para incluir a disciplina cidadania, lecionada por agentes da polícia goiana com o objetivo de resgatar o “civismo”, numa espécie de resgate da falecida Educação Moral e Cívica, como base fundamental para a formação de seus alunos.
O “Regulamento Disciplinar do Colégio da Polícia Militar de Goiás” (CPMG) que “tem por finalidade especificar e classificar as transgressões disciplinares praticadas pelos alunos” traduz o projeto de conformação da comunidade escolar e, principalmente, dos estudantes. A militarização impõe às comunidades escolares e ao projeto de democracia das escolas uma profunda derrota. Este processo tem resultado, além da perda do controle da gestão escolar, na perda do controle de toda a dimensão político-pedagógico das escolas, uma vez que retira dos professores e demais trabalhadores da educação, estudantes e seus responsáveis, qualquer protagonismo na organização das escolas. As escolas, uma vez dirigidas pelo comando militar de ensino e pelo regimento militar, passam a estar sob controle de forças completamente estranhas às comunidades escolares.
No Rio de Janeiro esta inserção da Polícia Militar no interior das escolas públicas não se iniciou no lançamento da escola por Bolsonaro e cia. Esta inserção vem ocorrendo por meio de programas, desde os anos 1990, como o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD) e o Programa Estadual de Integração de Segurança (Proeis). O PROERD, criado em 1992 pela polícia militar do Rio de Janeiro, reproduz no Brasil o Drug Abuse Resistance Education (DARE), criado e realizado pelo Departamento de polícia da cidade de Los Angeles nos Estados Unidos, desde 1983. A expansão do programa de inserção policial nas escolas nos anos 1990 nos Estados Unidos ocorreu no contexto da “política de tolerância zero”, responsável pela prisão de milhões de jovens negros e latino-americanos no país com maior população carcerária do mundo. Atualmente o PROERD é realizado em todos os estados brasileiros e em escolas públicas e privadas. O PROEIS, denunciado exaustivamente pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE), foi instituído pelo decreto nº 42.875, em 2010, e legalizou a hora extra do policial militar do Rio de Janeiro que pode ser lotado em qualquer instituição pública ou privada inserida no programa, incluindo as escolas públicas da rede estadual onde as comunidades escolares ficaram expostas a todo tipo de violência.
A militarização das escolas do Rio de Janeiro avançou em 2019 em dois sentidos. O primeiro, com o governador Wilsom Witzel, que seguindo o processo que vem ocorrendo nacionalmente, lançou o projeto de militarizar um conjunto de escolas da rede estadual. Esta iniciativa se desdobrou na apresentação do Projeto de Lei nº 1667/2019 que propôs instituir o “Modelo de Unidade Escolar Cívico-Militar na Rede Pública de Ensino do Estado do Rio de Janeiro”. O Projeto de Lei previu um diferencial em relação ao programa federal: a parceria público-privada. Não basta a escola ser militarizada. Ela deve ser militarizada e privatizada por uma empresa nos moldes de outros programas como o “Ensino Médio Integrado” onde uma empresa define o perfil da unidade de ensino e os cursos de Educação Profissional que serão ofertados. Em outro sentido, enquanto o Projeto de Lei não é aprovado, o governador percorre o estado inaugurando “Escolas Cívico Militares”.
Na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro a escola inaugurada no Rocha é a primeira de um conjunto de escolas que deverá, segundo o bispo-prefeito, ser inaugurado no próximo período. A constar pela vocação política do sobrinho de Edir Macedo, a expansão deste modelo ultraconservador de educação deverá ter um período próspero até o fim do ano. Assim como na cidade de Duque de Caxias (RJ), onde o prefeito inaugurou a escola Colégio Militar Percy Geraldo Bolsonaro e defende desde o início da pandemia o negacionismo e ataca a ciência em nome da liberdade de comércio. Na cidade do Rio, a tendência ultraconservadora dá as diretrizes da política educacional na atualidade, aliando o ultraconservadorismo do fanatismo religioso à face mais trágica de um liberalismo dos trópicos que mata em tempos de pandemia.
O caráter conservador desta ampla frente liberal-ultraconservadora alinhada ao governo Bolsonaro, é caracterizada também no atual contexto pelo conservadorismo liberal expresso pela guerra cultural neofascista. Especialmente agora no período da pandemia, notamos uma intensificação absoluta das forças coercitivas sob o manejo discursivo da irracionalidade e do negacionismo em relação às ciências, reforçando as políticas bolsonaristas que tem produzido e sustentado a crise da pandemia no contexto brasileiro, que já resultou em mais de 110 mil vidas ceifadas e suas famílias destruídas. Não há nada a comemorar. Nem mesmo numa tarde de uma sexta-feira ensolarada do subúrbio carioca.
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