Estou na militância política desde meados da década de 1980. Tudo começou quando ingressei no curso de história do então campus II da Universidade Federal de Campina Grande, hoje sede da Universidade Federal de Campina Grande, localizada no agreste paraibano. Com pouco mais de 20 anos passei a atuar no movimento estudantil, embalado por uma contraditória sensação, feita ao mesmo tempo de alívio e frustração, de testemunhar o fim da sanguinolenta ditadura militar e experimentar o sabor amargo de uma transição que havia se dado por cima, preservando, portanto, os interesses da autocracia burguesa agora reciclados. Ainda na condição de discente pude entrar em contato pela primeira vez com a luta sindical, que naquele momento histórico também efervescia na cidade e no Estado, quando passei a ministrar aulas na rede privada de ensino. Foi nessa condição que me filiei ao antigo SINPRO-PB, retirado das mãos da pelegada patronal havia pouco tempo e agora tendo à frente uma diretoria combativa recém-eleita. Mostrando a que veio, o sindicato organizou a primeira greve da história da categoria em novembro de 1986, movimento paredista esse de que muito me orgulho ter ajudado a construí-lo coletivamente. Outras greves e atividades políticas vieram década adentro, das quais continuei participando como base e como direção. Ainda tive oportunidade de participar, por essa mesma época, de lutas dos movimentos negro e comunitário que então se desenrolavam local e nacionalmente.
Na década de 1990 retornei para a mesma instituição em que me formei, agora na condição de professor. A partir daí, além das atividades acadêmicas que passei a desenvolver desde então, minha vida se confundiu com o movimento docente da ADUFCG/ANDES-SN. Nele me encontro até hoje, nas múltiplas e complementares trincheiras de defesa da educação pública, gratuita e socialmente referenciada, dos direitos dos trabalhadores e por uma outra sociedade para além do capitalismo.
Por razões de ordem pessoal e política, acabei optando por priorizar a inserção orgânica nos movimentos sociais, em detrimento da militância partidária. Nesse meio tempo, contudo, conheci, convivi e estive junto com muitos valorosos companheiros e companheiras vinculados a diferentes partidos e organizações da esquerda brasileira. Obviamente que nesse contexto tinha, e continuo tendo, mais afinidades ideológicas com uns do que com outros. Foi assim, por exemplo, com o Partido dos Trabalhadores, agremiação partidária que surgiu dos embates com a ditadura militar e que durante um bom tempo agregou em seu interior e no seu entorno o que de melhor a lutas sociais e políticas do período produziram. Nesse sentido, estive, na condição de “companheiro de viagem”, com o PT em muitas campanhas eleitorais, plenárias, eventos e, principalmente, nas lutas de rua.
Com o processo de transformismo (para lembrar uma terminologia gramsciana clássica) que começou a impregnar o partido desde pelo menos os anos 1990, fui paulatinamente me afastando do PT. Esse longo e tortuoso quadro político se completou com a posse e as primeiras medidas do governo Lula, em especial a reforma da previdência de 2003, quando o partido abdicou definitivamente de alguns de seus mais caros princípios, aí incluso a democracia interna, e passou a ser um dos gestores da ordem capitalista no Brasil.
Quando o Partido Socialismo e Liberdade surgiu em 2005, a partir de grupo de parlamentares dissidentes do PT, me tornei um seu simpatizante, passando não só a votar em suas candidaturas (mormente aquelas mais à esquerda do espectro político que habita em seu interior) assim como estar junto com muitos de seus militantes nas lutas sociais contra a agenda neoliberal mitigada dos governos petistas, com seu cortejo de repressão e retirada de direitos da classe trabalhadora e do povo pobre.
Contudo, a trajetória do Psol, que não nos esqueçamos, surge numa conjuntura histórica adversa e totalmente diferente daquela que viu emergir o PT e os movimentos populares que lhe deram sustentação e legitimidade por um bom tempo, tem sido bastante acidentada. Assim, o risco que o partido corre é o de sucumbir a uma das maiores tentações das organizações de esquerda ao longo da história da sociedade burguesa: abdicar de sua independência de classe e sucumbir ao canto de hiena da ideologia e da institucionalidade burguesa. Em outras palavras, se transformar num partido meramente eleitoral. Estes dilemas foram repostos no atual contexto político das eleições municipais em curso. Talvez o caso de Campina Grande seja exemplar em alguns aspectos da questão aqui discutida.
Em decisão que surpreendeu boa parte da militância e simpatizantes da legenda, no dia 07 de agosto o diretório municipal do partido, por 5 votos a favor e 3 contra, abdicou de candidatura própria para a prefeitura de Campina Grande e resolveu apoiar, já no primeiro turno, o nome de Inácio Falcão, do PCdoB, uma liderança local cuja carreira política tem se caracterizado pelas mais condenáveis práticas fisiológicas e clientelísticas, que por isso mesmo nunca teve nenhum compromisso com os interesses dos trabalhadores e dos movimentos sociais da cidade desde a época em que era vereador. Hoje, como deputado estadual, esse senhor ampliou o seu descompromisso com as causas populares, desta vez extensivo ao Estado como um todo. Não por acaso, recentemente ele ajudou a aprovar a proposta de reforma da previdência enviada à assembleia Legislativa pelo governador João Azevedo (outro inimigo da classe trabalhadora e do povo pobre paraibano), que é tão ou mais draconiana, no que diz respeito aos direitos dos servidores públicos, quanto a que o neofascista Bolsonaro elaborou e o Congresso Nacional, de forma subserviente, fez aprovar o ano passado.
Para justificar tal posicionamento político e eleitoral, os setores hegemônicos que controlam o partido em Campina Grande alegam que é preciso formar uma ampla frente antifascista para combater o bolsonarismo na cidade. Embora entenda que existe atualmente em curso uma ameaça fascistizante no Brasil, com reflexos em âmbito local, que não pode ser subestimada e precisa ser tenazmente combatida pelas forças democráticas e de esquerda, entendo que a tática do Psol campinense comporta dois erros. Em primeiro lugar, ela só deveria ser pensada e discutida para um possível segundo turno; em segundo, não podemos estar juntos, seja em que circunstâncias for, com quem, na prática, ataca os interesses dos trabalhadores e das liberdades democráticas.
Com essa atitude equivocada o Psol parece repetir a triste sina que acompanha a história dos partidos de esquerda em Campina Grande, que é a de se constituir em braço auxiliar das carcomidas facções das classes dominantes na luta encarniçada pelo poder local, hoje representadas pelos grupos políticos Cunha Lima, Vital do Rego e Ribeiro. Assim foi com a esquerda de tradição comunista. Algumas de suas principais lideranças eram originárias de dissidências da classe dominante local, como foi o caso do ex-vereador Felix Araújo nos anos 1940/1950. Mesmo quando produzia lideranças genuinamente populares, com o tempo estas acabavam sendo cooptadas, como foi o caso do sapateiro, sindicalista e ex-vereador José Peba Pereira dos Santos e de outras lideranças populares, que na condição sócios menores e subordinados acabaram chancelando e participando de diferentes governos oligárquicos que desde os anos 1980 mandam e desmandam na urbe, como se essa fosse um feudo de seus interesses particulares. Mais recentemente, em 2000, o Partido dos Trabalhadores (em sintonia com a política de conciliação de classe então em vigor para eleger dali a dois anos Lula presidente por todos os meios possíveis e imagináveis) fez uma aliança para a eleição municipal programada para aquele ano em que a principal liderança do partido na cidade, a ex-vereadora e sindicalista Cozete Barbosa, formava uma dobradinha na chapa encabeçada por nada mais nada menos que o ex-senador Cássio Cunha Lima, membro do clã que, mediante seu atual preposto, o prefeito Romero Rodrigues, continua dirigindo com mãos de ferro os destinos da “Rainha da Borborema”. (2)
É lamentável que, no momento em que os partidos de base popular mais precisam utilizar o momento eleitoral pra fazer avançar o seu programa político e denunciar junto à população os ataques brutais do capital contra a classe trabalhadora e o povo pobre, processo esse potencializado pela política genocida de Bolsonaro e seus aliados locais, o Psol de Campina Grande abdique de seu papel de polo de aglutinação da resistência, verdadeiramente antifascista, a partir das duras e imediatas lutas do tempo presente, apontando, ato-continuo, na perspectiva de reconstrução do projeto histórico de uma esquerda anticapitalista, socialista, de massas e revolucionária.
*O autor é professor da Unidade Acadêmica de História da UFCG.
NOTAS
1 – Antes de ingressar no PCdoB, em 2018, numa manobra eleitoreira típica de políticos tradicionais da direita, Inácio Falcão pertenceu aos seguintes partidos: PFL, DEM, PST, PDT, PSDB e ao AVANTE, de onde inclusive foi expulso.
2 – O cálculo pragmático do PT era, em troca, ter o apoio do grupo Cunha Lima para a candidatura de Lula à presidência da República em 2002. A primeira parte do acordo deu certo para ambas as partes, pois a chapa foi eleita com uma maioria esmagadora de votos, Cássio deixou a prefeitura para concorrer ao governo do Estado e o partido assumiu o governo municipal. Contudo, o seu desfecho foi um pouco diferente do que uma das partes imaginou: nem o PT teve o tal apoio nacional e, de quebra, Cozete Barbosa recebeu um verdadeiro presente de grego, pois quando assumiu a prefeitura de Campina Grande em 2002 esta estava totalmente quebrada e o partido e sua principal liderança pagaram um preço alto. Enquanto isso, Cássio, como uma boa raposa astuciosa da velha política oligárquica paraibana, não só foi eleito governador naquele mesmo ano, como apoiou a José Serra, que afinal de contas era o candidato a presidência de seu partido, o PSDB.
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