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MUNDO

Explosões em Beirute: um desastre em um país já em crise e revolta

Por Nathan Erderof. Publicado em inglês no site Left Voice em 06/Ago/2020

Danos causados por explosão na área portuária de Beirute, no Líbano 05/08/2020 REUTERS/Mohamed Azakir

Tradução: Marcio Musse

Uma dupla explosão devastou a capital do Líbano na terça-feira (04/Ago). Este desastre é uma tragédia em um país que enfrenta uma crise econômica e política, marcada por importantes mobilizações há cerca de um ano.

Beirute está em choque. O número provisório de mortos já é de pelo menos 100, com mais de 4.000 feridos, de acordo com dados fornecidos pelo Ministro da Saúde do Líbano. O dano material é colossal; distritos inteiros foram devastados. O prefeito da cidade, Marwan Abboud, estima que “quase metade da cidade está destruída ou danificada” e que mais de 300.000 pessoas podem estar na rua, conforme relatado pelo Le Monde.

A causa das explosões ainda não foi determinada, mas as autoridades libanesas estão apresentando como causa mais provável a teoria de um acidente. De acordo com Abbas Ibrahim, oficial de segurança interna do Líbano, uma carga de 2.750 toneladas de nitrato de amônio, que o governo confiscou de um navio há alguns anos, estava armazenada no porto da cidade há seis anos e acredita-se que tenha causado as duas explosões fatais. O nitrato de amônio é usado principalmente como componente de fertilizantes agrícolas, mas também pode ser usado na fabricação de explosivos. De acordo com a Al Jazeera, “as autoridades libanesas sabiam há mais de seis anos que o nitrato de amônio estava armazenado no Hangar 12 do porto de Beirute e não fizeram nada para protegê-lo ou removê-lo”.

Uma onda de solidariedade internacional?

Nas horas que se seguiram à tragédia, países ao redor do mundo manifestaram solidariedade ao Líbano. Uma após a outra, promessas de ajuda vieram da França, Irã, Estados Unidos, Rússia, Alemanha, Kuwait e outros. A França enviou dois aviões militares com toneladas de equipamentos médicos e um destacamento de segurança civil de 55 pessoas, além de equipes de emergência. A chanceler alemã, Angela Merkel, prometeu “apoio ao Líbano”, seguindo os passos do Reino Unido e do Canadá.

As potências imperialistas, portanto, parecem querer responder agora, em um contexto de tensão econômica, quando há poucos dias exigiam reformas drásticas. No início de julho, Jean-Yves le Drian, Ministro das Relações Exteriores da Europa e da França, fez uma viagem ao Líbano onde exortou as autoridades do país, que atravessa uma profunda crise econômica, a aplicarem reformas para que pudessem obter o apoio da comunidade internacional, e afirmou que a ajuda não seria garantida na ausência de um acordo entre o Líbano e o FMI (notadamente os US$ 11 bilhões prometidos na conferência CEDRE em 2018). De fato, as negociações com o FMI estão em andamento, pois a instituição condicionou sua ajuda a um conjunto de reformas.

A tragédia de terça-feira à noite também ocorreu em um clima de tensões de segurança, em particular devido às frequentes disputas entre o Hezbollah e Israel, sobre a fronteira no sul do Líbano. Israel, que há várias semanas retomou um clima de guerra latente com o Hezbollah, negou qualquer responsabilidade nesta tragédia e afirmou que ofereceu sua ajuda, com mediadores internacionais, uma vez que os dois países estão oficialmente em guerra.

Do Irã, principal aliado do Hezbollah xiita, passando pelo Catar à Arábia Saudita, que tem grande influência sobre a parte sunita do Líbano, as potências vizinhas que desempenham um papel decisivo na balança de poder no Líbano também anunciaram seu apoio. A combinação de ajuda de países opostos com interesses divergentes no país será um grande desafio. O risco para o Líbano, já atormentado por influências internacionais, seria que a competição internacional ocidental, seja imperialista ou religiosa, fosse jogada contra a ajuda futura, à custa de um país já sobrecarregado por interferências externas.

Uma tragédia em um país em crise

O desastre sobrecarrega ainda mais um sistema de saúde que já enfrenta a pandemia do coronavírus. Na semana passada, o governo libanês impôs medidas novas e particularmente rígidas de segurança sanitária e fechou suas fronteiras após um novo pico alarmante de casos de Covid. Esta situação às vezes deixa hospitais e médicos em Beirute sem equipamento para lidar com a emergência. Um oficial da Cruz Vermelha disse que alguns dos feridos tiveram que ser transferidos para hospitais em outras regiões porque os de Beirute já estavam em sua capacidade máxima. Isso num momento em que muitos hospitais da cidade, alguns dos mais importantes, foram destruídos ou danificados pela explosão. No ritmo atual do surto, o sistema de saúde do país ficará rapidamente sobrecarregado. Os hospitais públicos do país não dispõem de equipamentos nem pessoal para lidar com a situação.

O desastre também está atingindo um país cuja economia já estava à beira do colapso. O Líbano está no meio de sua pior crise econômica em décadas. O valor da libra libanesa caiu quase 80% desde setembro, enquanto os preços dos bens de consumo atuais cresceram muito, com inflação de quase 90%. O colapso financeiro resultante paralisou a economia do país, fazendo com que a inflação, o desemprego e a pobreza disparassem. Quase um em cada dois libaneses vive hoje abaixo da linha da pobreza em um país cuja classe média já foi considerada uma das mais ricas do mundo. Na segunda-feira, o ministro de relações exteriores libanês, Nassif Hitti renunciou, dizendo que o governo não poderia evitar a falência. Esta crise econômica está levando a uma degradação generalizada dos padrões de vida da população: “A classe média libanesa, considerada a mais rica e com mais acesso à educação do Oriente Médio, é a grande perdedora da crise. A, professor universitário de 30 anos, que ganhava o equivalente a US$ 4.000 por mês no ano passado, agora ganha apenas cerca de US$ 800”, escreve o Le Monde.

As classes trabalhadoras também estão na linha de frente da crise. “As consequências sociais dessa contração da atividade”, escreveu Les Echos em junho, “são pesadas. Nada menos que 37% dos libaneses estavam desempregados em abril, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, e 48% da população agora vive abaixo da linha da pobreza, de acordo com o governo. Isso não inclui os 200.000 trabalhadores estrangeiros, incluindo trabalhadores domésticos etíopes e filipinos que seus empregadores não podem mais pagar em dólares e alguns dos quais agora esperam ser repatriados”.

De forma quase simbólica, na manhã da dupla explosão, dezenas de manifestantes tentaram entrar à força no Ministério da Energia para protestar contra os cortes de energia e racionamento de eletricidade, que às vezes duram 10 horas por dia. A companhia nacional de eletricidade simboliza o colapso da economia libanesa e é a fonte de 40% da dívida do país.

Neste contexto já desolador, as duas explosões destruíram quase inteiramente o porto de Beirute e a força econômica do país. Num país que “importa quase tudo o que consome”, a destruição do porto é uma catástrofe.

Finalmente, esta tragédia enfraquece ainda mais um sistema político falido e sem fôlego, como escrevemos em nossas colunas ontem de manhã. “Nesse contexto já catastrófico, a dupla explosão corre o risco de reforçar a crise social e política. Alguns membros do bloco Joumblattista, Partido Socialista Progressivo – oposição socialdemocrata – acusam o governo de ter devastado Beirute. O deputado Marwan Hamadé renunciou oficialmente hoje, dizendo que “não tem mais qualquer confiança nas instituições libanesas, especialmente no Parlamento”, conforme relatado em L’Orient-Le Jour. Pouco antes, um de seus colegas, Hady Aboulhosn, denunciou “um regime político corrupto, que só causa desastres e tragédias” e explicou que “não confia nas comissões internas de inquérito e nas autoridades tolas e criminosas”, que o endossaram o armazenamento de produtos tão perigosos como o nitrato de amônio em um porto civil. Nas redes sociais, também foram feitas acusações de hipotética responsabilidade israelense ou do Hezbollah, o que nenhuma evidência parece corroborar”. Esta crise política é também uma crise do modelo confessional e comunitário libanês, nascido com o Acordo de Taif em 1989, para encerrar a guerra.

É neste contexto de crise que desde 2019 ocorrem mobilizações massivas que denunciam a corrupção e o clientelismo. Em 17 de outubro de 2019, após o anúncio do governo de novos impostos, principalmente sobre aplicativos de mensagens instantâneas, e em um contexto de profunda crise econômica, uma onda de protesto começou. Isso levaria à renúncia do Primeiro Ministro Saad Hariri. Este movimento não apenas questionou as políticas neoliberais e a corrupção do governo, mas também desafiou todo o sistema confessional e burguês libanês.

Em nossas colunas, em novembro passado, Joseph Daher, um ativista anticapitalista suíço-sírio e especialista acadêmico sobre Oriente Médio e Norte da África, voltou ao caráter excepcional do movimento e seu potencial: “A amplitude e profundidade das manifestações populares atuais superam em muito as anteriores. As manifestações explodiram não apenas na capital Beirute, mas também em todo o país: Tripoli, Nabatiyeh, Tire, Baalbeck, Zouk, Saida e outros. No domingo, 20 de outubro, cerca de 1,2 milhão de pessoas se reuniram em Beirute, e pouco mais de 2 milhões de pessoas se manifestaram em todo o país – em um país de 6 milhões de pessoas […] A composição social do movimento o distingue de movimentos de protesto anteriores: ele está muito mais enraizado nas classes trabalhadoras e populares do que nas manifestações de 2011 e 2015, nas quais as classes médias tiveram um papel mais importante. […] Manifestantes se mobilizaram nas ruas de todo o país para denunciar os próprios fundamentos do sistema político e econômico. Para eles, todos os partidos religiosos da classe dominante são responsáveis ​​pela deterioração de suas condições socioeconômicas ”.

Todos os partidos políticos denominacionais [NT: partidos que têm relação com alguma doutrina cristã] foram visados, incluindo o Hezbollah. “O confessionalismo deve ser entendido como uma ferramenta da burguesia libanesa para intervir ideologicamente na luta de classes, para fortalecer seu controle sobre as classes populares e mantê-las em uma posição de subordinação aos seus líderes confessionais. O confessionalismo é um elemento constituinte e ativo das formas atuais de poder estatal e de classe. Nessa perspectiva, o confessionalismo deve ser considerado um produto dos tempos modernos e não uma tradição de tempos imemoriais. No passado, as elites dominantes libanesas foram capazes de pôr fim ou esmagar os movimentos de protesto populares por meio da repressão ou jogando em divisões confessionais. […] O caráter não denominacional do movimento é, portanto, de grande importância neste contexto”, disse Joseph Daher.

Em abril, os manifestantes voltaram às ruas, apesar das medidas de contenção, com coquetéis molotov em mãos para atear fogo em bancos durante os “motins da fome”. Assim, a tragédia de 4 de agosto promete ser terrivelmente dolorosa e atingiu um quadro já frágil. Nesse contexto, a possibilidade de ressurgimento das mobilizações parece ser uma perspectiva central contra o governo e a crise. Diante da crise econômica e da recessão, enquanto a pandemia acentuou as desigualdades e a miséria, diante da corrupção, a única resposta virá de baixo para o Líbano, na continuidade das mobilizações que ocorrem desde 2019.