Bolsonaro, bonapartismo e assistencialismo

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Dinheiro como dádiva e dinheiro como empréstimo, era com perspectivas como essas que esperava atrair as massas. Donativos e empréstimos – resume-se nisso a ciência financeira do lumpem-proletariado, tanto de alto como de baixo nível. Essas eram as únicas alavancas que Bonaparte sabia movimentar. Nunca um pretendente especulou mais vulgarmente com a vulgaridade das massas.” (MARX, O 18 Brumário de Luís Bonaparte)

Para os entusiastas (do passado e/ou do presente) do programa “Bolsa-Família” (sejam eles do Banco Mundial ou da esquerda social-liberal), que nele enxergaram uma grande novidade, um grande ineditismo na área das políticas públicas, a observação de Marx quanto às investidas beneficentes de Bonaparte dirigidas às parcelas mais miseráveis da sociedade francesa talvez apresente uma importância particular; possivelmente, ela os leve a perceber (mas não a reconhecer, evidentemente) que o assistencialismo governamental, como um meio de dispor do apoio político dos segmentos sociais mais pauperizados para o governante “benfeitor”, data, justamente, dos primórdios do Estado capitalista moderno (como também dos primeiros momentos da democracia burguesa).

Desse modo, assim como “nunca [antes na França] um pretendente” havia especulado “mais vulgarmente com a vulgaridade das massas”, nunca antes nesse país (Brasil) um presidente da República soube tão bem cativar as massas por meio de políticas sociais que, embora importantes, dada a pobreza extrema de tais massas, muito pouco lhes ofereceram em termos de direitos sociais. O posterior fato de que, com o avançar da crise econômica, a classe dominante brasileira tenha, a partir de 2015, se decidido a assestar um golpe de Estado para interromper qualquer tipo de colaboração de classes, até mesmo as fundamentadas em uma perspectiva assistencialista, em nada modificam retroativamente os limites do Bolsa- Família e demais políticas sociais do lulismo.

Convém lembrar ainda, talvez, que as políticas sociais de Lula (que, apesar de apresentar um estilo e retórica bonapartistas, não foi, certamente, um presidente bonapartista) e de Dilma Rousseff não encerraram, de modo algum, um caráter universalizante, dado que não estiveram voltadas para o conjunto do tecido social, e não se exprimiram juridicamente na forma de “direitos”. Neste aspecto, a política social lulista-petista se diferiu tanto da política social-democrata europeia do welfare state, quanto da política de massas varguista no Brasil que, embora excluísse de sua alçada os trabalhadores rurais, materializou-se em “direitos sociais” válidos permanentemente para todos os cidadãos urbanos, além de uma significativa expansão pública e universal dos sistemas de saúde e de educação básica. Obviamente, as diferenças substantivas entre as políticas sociais focalizadas e compensatórias, como o “Bolsa-Família”, e a política de massas do reformismo varguista devem-se menos aos distintos perfis políticos de governantes como Lula e Getúlio do que aos diferentes momentos históricos em que estes hábeis e loquazes líderes nacionais se situaram. Enquanto o populismo bonapartista de Vargas, brotado numa etapa de significativa margem de manobra da periferia capitalista perante o centro, teve por tarefa conduzir a urbanização, a industrialização e a modernização social retardatárias do país, incorporando as amplas massas populares urbanas à esfera estatal (cidadania social), o lulismo não foi senão uma variante timorata da social-democracia latino-americana em tempos de hegemonia do capital financeiro internacional, de contrarreformas do Estado, de sacralização da democracia-liberal e de crise estrutural de um capitalismo monopolista e neoliberal que avança celeremente rumo à barbárie social.

Por fim, não deixa de ser sugestivo o fato de que o atual candidato a Bonaparte tupiniquim Jair Bolsonaro, buscando ampliar sua margem de manobra em face da burguesia – e chocando-se com seus representantes políticos tradicionais que lhe cobram mais celeridade nas contrarreformas e uma intensificação da austeridade ultraneoliberal – tenha, em meio à pandemia, buscado valer-se também do vulgar assistencialismo junto às cada vez mais vulgarizadas massas populares. Assim, embora sórdido, não chega a ser surpreendente que a sua popularidade entre elas tenha aumentado ao passo em que também aumenta a pilha de corpos vitimados pela Covid. Comprovando a força da ideologia enquanto categoria presente e explicativa do real, muitos dos que hoje cultuam o “mito” encontram-se justamente entre os setores sociais que mais entregam corpos para a pilha cadavérica…