Um dos temas mais delicados na esquerda é o carreirismo eleitoral. Depois de mais de trinta e cinco anos de eleições ininterruptas são incontáveis as decepções amargas. Precisamos conversar, portanto, sobre ambição e humildade na hora de escolher candidatos. Discutir o carreirismo eleitoral exige algum rigor, porque é comum que se façam generalizações rápidas e injustas.
Pressões eleitoralistas não são o mesmo que carreirismo. Nos nossos movimentos há pressões eleitoralistas e anti-eleitoralistas. As eleitoralistas são as mais poderosas, mas não são as únicas. O eleitoralismo é uma estratégia política, o carreirismo uma conduta pessoal.
O carreirismo não é uma “forma” de ambição. Não há nada de errado em ter aspirações, inclusive, pessoais, na vida. Mas entrar em uma organização socialista é um gesto de humildade pessoal. Quando cada um de nós decide fazer uma experiência organizada em um coletivo está aceitando que terá direitos, mas também, deveres diante dos outros.
Renuncia-se a fazer somente o que se quer. Deixar de agir, individualmente, significa escolher uma forma de militância em que as ideias, iniciativas e projetos políticos serão, previamente, discutidos com os outros. O que se perde em liberdade pessoal se ganha em força, segurança, eficiência revolucionária. Significa estar disposto, também, a aceitar a vigilância dos outros.
Um militante que tem sua candidatura escolhida por uma organização de esquerda deve saber que, se eleito, seu mandato pertence ao coletivo, e não a ele mesmo. A seriedade da organização é a maior garantia que o candidato pode oferecer aos seus eleitores.
Carreirismo é uma forma de arrivismo, de “alpinismo”, de oportunismo pessoal. Carreiristas não aceitam as regras de controle mútuo coletivo. Oportunismo é o “vale tudo”. Deriva de aproveitar oportunidades para fins próprios. Oportunistas são pessoas sem escrúpulos, manipuladoras, que não têm código de conduta. Carreiristas operam manobras escusas para esconder suas verdadeiras intenções. Aproveitam-se dos outros para conquistar posições, cargos e vantagens para si mesmos.
O sistema eleitoral brasileiro incita, favorece e estimula a construção de figuras públicas que são representantes de si mesmas, porque votamos em pessoas. Mas, não fosse isso o bastante, os partidos estão muito desmoralizados. A forma-partido tem hoje uma péssima reputação. Existem mais de trinta partidos legalizados no país, e a maioria deles é somente uma legenda eleitoral, e não têm programa. A imensa maioria é de partidos burgueses de aluguel, uma “especialidade” brasileira. São sublegendas de outros. Podem apoiar qualquer governo e, de fato, já o fizeram. As tendências e correntes da esquerda brasileira sofrem, também, as sequelas desta desmoralização.
Carreirismo não é sinônimo de reformismo. Há militantes na esquerda que são reformistas, ou seja, defendem uma estratégia de regulação do capitalismo, são moderados, porém, honestos. E há super-revolucionários que não respeitam limites na luta política. Mas como o eleitoralismo reformista é mais prometedor como escada de ascensão pessoal, a imensa maioria dos carreiristas é reformista. Porque não são idiotas.
Em um país como o Brasil há, em cada conjuntura, com maior ou menor intensidade, disseminadas pressões proto-reformistas, mas, também, algumas pressões semi-anarquistas. Nem todos os que se deixam impressionar pela ideia de que a representação nas instituições é uma questão central são reformistas incorrigíveis. E nem todos os que são hostis à luta eleitoral são anarquistas convictos. Muitos fatores podem explicar que uma ou outra pressão possa ser maior, em algum momento.
Mas, evidentemente, se há uma lição estratégica que deveria ser incorporada como definição programática para toda a esquerda é que a luta parlamentar deve estar subordinada à luta de massas. A presença parlamentar é um instrumento auxiliar da luta política. Dizer que é auxiliar significa que não é prioritária. É complementar à luta política. Prioritário é o que está em primeiro lugar.
O que deve estar sempre em primeiro lugar é a construção da mobilização de massas. Nenhuma organização, nem a mais poderosa, pode mudar o mundo. A transformação da sociedade sempre foi e será a obra da luta direta de milhões de pessoas que se unem em torno de um objetivo comum. Mas as massas precisam de pontos de apoio para que as suas lutas não se dispersem. O centro da luta política tem como bússola a luta pelo poder.
Mas ainda estamos em um nível de abstração muito alto. O eleitoralismo é somente uma das formas de reformismo, ou seja, a ilusão de que é possível “consertar” o capitalismo, ou, pelo menos, ir reduzindo os danos de um sistema que só pode se reproduzir com a desigualdade social. O eleitoralismo se manifesta nos partidos, mas, também, nos movimentos.
O movimentismo pode ser, também, uma estratégia reformista, ainda que com um vocabulário diferente do eleitoralismo, uma forma, aparentemente, mais radical. E assim como pode haver carreirismo eleitoral, pode haver carreirismo movimentista.
Em todo e qualquer processo de luta ou movimento, seja nos sindicatos ou de moradia, de mulheres ou negros, LGBT’s ou de cultura, direitos humanos ou estudantis, agrários ou ambientais, indígenas ou internacionalistas, comunicação popular ou saúde, é compreensível que prevaleça a ideia de que aquilo que cada um de nós está fazendo é o mais importante de tudo.
Afinal, um engajamento sério exige compromisso e empolgação. Elaborar um programa, organizar as pessoas, preparar mobilizações, divulgar iniciativas, construir campanhas são atividades permanentes que podem consumir todas as energias da militância.
Mas se todos os movimentos são necessários e justos, não é possível que sejam todos, igualmente, prioritários, ao mesmo tempo. Defender que todos sejam prioritários, em simultâneo, é o mesmo que dizer que nenhum é prioritário. Aonde concentramos nossas forças? Quais são as bandeiras que, em cada situação, todos defendemos com máximo vigor para que a audiência e repercussão sejam a maior possível?
Um movimento não é mais importante do que outro em função da sua sofrência. A dialética da sofrência pode ser cruel. Não são sempre os mais explorados e oprimidos aqueles que estão com um maior grau de disposição de luta. A força social de impacto de cada luta é que pode estabelecer a referência, em cada situação política, do caminho que pode.
Deve se estabelecer uma régua para medir e fazer escolhas. Escolhas são decisões difíceis. Não se pode fazer tudo. Quais são os critérios? O que é principal, em cada conjuntura, se altera, varia, muda. E isso não é possível sem discussões apaixonadas, porque é legítimo que todo movimento aspire a ser o mais prioritário. Porque fazer escolhas deixa sempre alguém contrariado. Estas decisões remetem ao debate de estratégia. E os espaços em que se reúnem os militantes de todos os movimentos são as organizações políticas.
Por isso, os melhores candidatos não são aqueles que podem ter mais votos, são os que têm clareza estratégica.
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