Pular para o conteúdo
CULTURA

Do Pobre B.B. | Texto-homenagem a Bertolt Brecht no 64º ano de sua morte

José Rodrigues, Professor da Faculdade de Educação da UFF, membro do Niep-Marx
Nico

Eu, Bertolt Brecht, venho da floresta negra.
Para a cidade minha mãe me carregou
Quando eu ainda vivia no seu ventre. O frio da floresta
Estará em mim até o dia em que eu me for.

Na cidade de asfalto estou em casa. Recebi
Desde o início todos os sacramentos finais:
Jornais, muito fumo e aguardente. Desconfiado
Preguiçoso e contente – não posso querer mais!

[…]

Habitamos, uma geração fácil
Em casas que acreditávamos eternas
(Assim construímos aquelas imensas caixas na ilha de Manhattan
E as antenas cujos sinais cruzam o mar como invisíveis lanternas).

Destas cidades ficará: o vento que por elas passa!
A casa faz alegre o conviva: ele a esvazia.
Sabemos que somos fugazes
E depois nada virá, somente poesia.

Nos terremotos que virão tenho esperança
De não deixar meu “Virgínia” apagar com amargura
Eu, Bertolt Brecht, chegado há tempo na selva de asfalto

No ventre de minha mãe, vinda da floresta escura. 

Certos poemas e frases de Bertolt Brecht são bastante conhecidas entre nós militantes culturais das causas da classe trabalhadora. Talvez até mesmo algumas peças teatrais sejam conhecidas, canções, quem sabe. Em 14 de agosto de 1956, em Berlim (Oriental), morreu o homem Bertolt Brecht, o Pobre BB. Havia passado mal, durante o trabalho, do coração. Se sua vida fugaz foi, a sua poesia, sua música, seu teatro permanece ainda entre nós, apesar de seus inimigos continuarem vencendo. Amigo de Walter Benjamin, com quem gostava de jogar xadrez, companheiro de Helene Weigel – eterna Mãe Coragem, leitor de Marx, filósofo militante, poeta, músico, encenador, cineasta, “escritor de peças”, como ele mesmo se apresentava. 

Brecht contribui decisivamente para o revolucionamento do teatro, no século XX. Como Galileu que combateu o sistema geocêntrico aristotélico, Brecht criou um teatro que combatia a perspectiva de Aristóteles. Acusaram-no de ser “épico”. Pois bem, então, ele chama seu teatro de épico. Mais adiante, passou adotar a denominação de teatro dialético. Dizia que escrevia suas peças para Marx. Acusado por não fazer teatro bem feito, retrucou, que seja então “taetro”.  Atualmente, muitos preferem dizer que Brecht criou o “teatro épico em perspectiva dialética”. Podemos também dizer, hoje, que Bertolt Brecht recriou o teatro através de sua pena. Então, o teatro dele virou brechtiano, com o efeito de distanciamento e o gesto.

Eugen Bertholt Brecht nasceu em 10 de fevereiro de 1898, em Augsburgo, na Alemanha. Filho de sua classe, foi estudar medicina. Durante a Revolução Alemã, atuou com enfermeiro, traiu a sua classe e participou dos conselhos operários e de soldados, ao lado da Liga Spartakus, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. 

Epitáfio 1919
A Rosa Vermelha desapareceu
Para onde foi, é um mistério.
Por que ao lado dos pobres combateu
Os ricos a expulsaram de seu império.

Da sua experiência na Revolução Alemã, escreveu a peça Spartakus, mais conhecida como Tambores da noite (1919). Deixou a arte da medicina pela arte, teatro especialmente, mas não só. Com Um homem é um homem, de 1925, Brecht começa a estabelecer uma forma teatral que Benjamin assim nos apresenta: “Esse teatro faz com que a vida jorre para o alto do leito do tempo e, por um átimo, brilhe no vazio, para depois deitá-la novamente”. 

Com a intenção de confrontar o público burguês escreveu e encenou – A ópera dos três vinténs (1928). Foi um estrondoso sucesso de bilheteria e de crítica. A música de Kurt Weill ecoa até hoje. É, Bert, não deu certo. Então, de teimosia, no ano seguinte, escreveu outra: Ascenção e queda da cidade de Mahagonny. Dessa última peça, as classes dominantes não gostaram mesmo – cuspiram o teatro indigesto que Brecht lhes serviu. Rompe com o sistema produtivo teatral burguês e passa a escrever com e para a classe trabalhadora, que participava às dezenas de milhares em corais e grupos teatrais de organizações da social-democracia alemã. Destas peças, que ele chamava de didáticas, talvez a mais conhecida seja A exceção e regra. Antenado com as mudanças tecnológicas que explodiam escreveu rádio-peças didáticas e que questionavam o papel da tecnologia, os poderes do trabalho, como em A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo (1929). Alguns dizem que são simplórias. Não são. São peças para a formação dialética dos trabalhadores. Com seu teatro didático também enfrentou a política equivocada da Internacional Comunista para a China (1925-1927). Aí, ninguém gostou mesmo, nem aquela esquerda, nem a direita. A decisão, de 1930, segue proscrita.  

Brecht também fez cinema, escrevendo roteiros de filmes hoje considerados clássicos como Kuhle Wampe, de 1932.

Apesar da derrubada do Kaiser alemão, da instauração da República de Weimar, apesar da enorme força da social-democracia, com o fracasso da política de frente única, Hitler chega ao poder, em 1933. Brecht segue para o exílio. Estava na lista de potenciais vítimas da SA. Os livros de Brecht, juntamente com os Freud e Marx, pelos nazistas são incinerados em praça pública por serem consideradas obras degeneradas e representantes do “bolchevismo cultural”.  

Cabe talvez abrir um parêntese, cara leitora, caro leitor. O infame documento de fundação do hitlerismo é onde também nasceu o epíteto “bolchevismo cultural”.  Após a leitura desta breve nota, que tal ouvir o podcast do site de notícias Esquerda Online (EOL), Na trincheira com Iná Camargo Costa?, cujo primeiro episódio é precisamente sobre marxismo cultural? Em breve, irá ao ar um episódio sobre Brecht. Fechado o parêntese, sigamos com este texto-homenagem.

Sim, Brecht foi um marxista cultural.

Do exílio, Brecht escreveu 24 cenas que denunciam e analisam o Terror e a miséria do Terceiro Reich e um panfleto que foi distribuído clandestinamente, em 1934, na Alemanha nazista, que tratava das Cinco dificuldades no escrever a verdade:

Quem, nos dias de hoje, quiser lutar contra a mentira e a ignorância e escrever a verdade tem de superar ao menos cinco dificuldades. Dever ter a coragem de escrever a verdade, embora ela se encontre escamoteada em toda parte; deve ter a inteligência de divulgá-la, embora ela se mostre permanentemente disfarçada; deve entender da arte de manejá-la como arma; deve ter a capacidade de escolher em que mãos será eficiente; deve ter a astúcia de divulgá-la entre os escolhidos. Estas dificuldades são grandes para os escritores que vivem sob o fascismo, mas existem também para aqueles que fugiram ou se asilaram. E mesmo para aqueles que escrevem em países de liberdade burguesa. 

Infelizmente, parece que algum brasileiro escreveu tais palavras, anteontem, aqui em um post da Casa de Resistência Rosa Luxemburgo.

Numa época como a nossa, os governos que conduzem as massas humanas à miséria, têm de evitar que nessa miséria se pense no governo, e por isso estão sempre a falar em fatalidade. […] Mas é sempre possível opormo-nos à conversa fiada sobre a fatalidade: pode-se mostrar, em todas as circunstâncias, que a fatalidade do homem é obra de outros homens.

Embora esse pequeno texto de combate seja dirigido especificamente à luta contra o nazismo, sem dúvida, alguns elementos éticos fundamentais da obra desse escritor revolucionário estão lá delineados. É preciso mostrar a realidade como humana e, portanto, transformável pela luta coletiva.

Brecht precisou mudar-se de país para país a fim de sobreviver e ganhar a vida, escrever sobre a vida. Passou também pela União Soviética, mas lá não permaneceu. Lênin já estava embalsamado, Trótsky e a Oposição de Esquerda já estavam banidos. Da vigorosa e revolucionária explosão artística, sobrava o realismo socialista como estética oficial decretada por Stálin. Chegou aos Estados Unidos, em 1941, destino de muitos emigrados alemães, como seu companheiro e inventor do teatro político Erwin Piscator. Lá também escreveu para Hollywood, fez amigos e encenou peças. Na cova dos leões, Brecht trabalhou bastante e nos legou Os carrascos também morrem, filme de Fritz Lang, cujo roteiro escreveu, além de peças como A vida de Galileu e O círculo de giz caucasiano. Foi obrigado, em 1947, a depor perante ao infame Comitê de Atividades Anti-Americanas, acusado de ser comunista. Logo em seguida, deixa os EUA rumo à Europa, se instalando na Suíça. Seus trânsitos pela Europa são interrompidos pelos Aliados vitoriosos. 

Finalmente, em setembro de 1949, Brecht alcança Berlim (Oriental), agora dividida como despojo de guerra, e com Helene Weigel funda o Berliner Ensemble, sua companhia de teatro. Escreve Os dias da Comuna. Sem a nacionalidade alemã, cassada por Hitler, Brecht consegue a nacionalidade austríaca, em 1950. Muitas são as peças encenadas que, inclusive, viajam pela Europa. Em julho de 1952, Lukács visita Brecht.  Muito há para ser escrito sobre o debate entre esses dois, mas, isso fica para outra ocasião.

Sobre a violência
A corrente impetuosa é chamada de violenta
Mas o leito de rio que a contém
Ninguém chama de violento.

A tempestade que faz dobrar as bétulas
É tida como violenta
E a tempestade que faz dobrar
Os dorsos dos operários na rua?

O governo da República Democrática Alemã aprecia a presença do grande dramaturgo, mas não aprecia muito algumas de suas peças, nem alguns de seus escritos. A burocracia tinha seus motivos, afinal diante de um levante operário em Berlim Oriental, no mesmo ano da morte de Stálin, BB escreve que o governo deveria trocar de povo. Como que anunciando a conclusão de sua obra, em 1954, inicia-se a publicação de seu Teatro completo. O Berliner Ensemble fixa-se no Teatro Schiffbauerdamm. Na tentativa de domesticá-lo, concedem-lhe o chamado Prêmio Stálin da Paz. Weigel eterniza a sua Mãe coragem e a peça é aclamada no Festival de Paris. A obra de Bertolt Brecht começa a sofrer as ameaças de se tornar clássica. Ele jamais concordaria.

Sobre o teatro cotidiano [fragmento]
Vocês, artistas que fazem teatro
Em grandes casas, sob sóis artificiais
Diante da multidão calada, procurem de vez em quando
O teatro que é encenado na rua.

[…]

Mas para que nos entendamos: mesmo se aperfeiçoassem
O que faz o homem da esquina vocês fariam menos
Do que ele, se o seu teatro fizessem
Menos rico de sentido, de menor ressonância
Na vida do espectador, porque pobre de motivos e
Menos útil. 

Em agosto de 1956, Brecht está trabalhando com o Berliner Assemble na terceira versão de A vida de Galileu. Galileu Galilei que estabeleceu o teatro moderno, quer dizer, que teve a coragem de confrontar Aristóteles e inventar a ciência moderna, mas que diante da ameaça da fogueira da Inquisição, preferiu viver, mesmo que preso. Brecht não pactuava com o mito do herói. O Galileu de Brecht, sobre isso, nos diz: “Triste da terra que precisa de heróis”. No dia 10, após dirigir o ensaio de A vida de Galileu, cai. É levado ao hospital.  Às 23h do dia 14 de agosto de 1956, morre do coração o homem Brecht.

Não necessito de pedra tumular
Não necessito de pedra tumular, mas
Se necessitarem de uma para mim
Gostaria que nela estivesse escrito:
Ele fez sugestões
Nós as aceitamos.
Por uma tal inscrição
Estaríamos honrados.

 

 Niterói, RJ, 14 de agosto de 2020. Publicado no facebook da Casa de Resistência Rosa Luxemburgo.

Marcado como:
brecht