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OPRESSÕES

A vida de uma menina de dez anos não vale nada?

Uma disputa que não deveria existir sobre o aborto legal em casos de estupro e risco de vida da gestante

Aline Beatriz Coutinho* e Sonara Costa*
Marcello Casal Jr. | Agência Brasil

“Está em análise [a interrupção da gestação], as equipes técnicas e médicas avaliam a possibilidade. A gente precisa aguardar o posicionamento do Judiciário. (…) Vamos aguardar o posicionamento dos critérios médicos e judiciários para tomar uma decisão em conjunto com a família”. A declaração acima, dita pela Secretária de Assistência Municipal de São Mateus, no Espírito Santo, mostra a ineficiência do Estado na proteção à saúde mental e integridade física de meninas e adolescentes, e inclusive mulheres, garantidos por lei no Brasil. É um posicionamento sobre o chocante caso da menina de dez anos, grávida de três meses, após estupros recorrentes de seu tio (realizados desde seus seis anos de idade) e da possibilidade de interrupção de sua gravidez, que se tornou um objeto de decisão judicial em um momento de ascensão do conservadorismo e fundamentalismo religiosos no país, e no mundo, como visto na Polônia e EUA.

A legislação brasileira detalha em seu Código Penal os três únicos permissivos para a realização do aborto legal: em caso de risco de vida da gestante, devido à ocorrência de estupro e no diagnóstico de anencefalia fetal. Também observa que sendo a vítima incapaz ou não podendo consentir, a decisão deve ser tomada por seu representante legal. É óbvio que o triste caso dessa menina se enquadra em dois permissivos, por ser a gestação proveniente de estupro e, nesse caso em específico, o mais relevante: sendo alto o risco de vida da criança na possibilidade de se levar uma gestação adiante. Além disso, pela vítima estar em um abrigo público, a responsabilidade das decisões a serem tomadas por sua vida recai ao Estado.  Entretanto, ao invés da realização do aborto ser imediata levando em consideração essas circunstâncias, o que ocorre agora é uma disputa – de forma silenciosa – sobre quem tem mais “direito” de viver: a menina de 10 anos ou o feto.

Ao levar ao Judiciário a decisão se essa menina de 10 anos gestante vítima de estupro pode abortar, o Estado mostra a continuidade de violações perpetradas contra essa menina-vítima. Afinal, já está consolidado no Brasil a garantia da integridade física e mental de meninas e mulheres que necessitam do acesso ao aborto legal e seguro sem precisar de laudos do IML, B.O.’s ou decisões judiciais por meio de Notas Técnicas (2005, 2011) e decretos-leis. Além disso, o Estado também se coloca como irresponsável ao não levar em consideração a urgência da situação e risco de vida que essa menina passa a cada dia que permanece gestante. Estudo formulado pelo Ministério da Saúde indica a existência de uma alta taxa de mortalidade infantil entre mães mais jovens (até 19 anos) com 15,3 óbitos para cada mil nascidos vivos, sendo a mortalidade materna para a faixa etária de 10 a 14 anos de 66 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos.

O posicionamento da ministra Damares Alves – reconhecida defensora da existência da vida desde a concepção e contrária aos Direitos Reprodutivos – produzido na nota do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, formulando que está sendo dado atendimento psicológico “a fim de amparar emocionalmente a criança vitimada, que ainda se encontra em desenvolvimento, bem como seu bebê” é mais um indício que a garantia da vida da menina-vítima não está sendo levada em consideração pelas autoridades responsáveis. Denominar de “bebê” um feto que pode levar à morte de uma menina de 10 anos é promover a equivalência da vida entre a criança que existe e aquela que ainda é somente uma possibilidade.

Para forçar o parto a Ministra apresentou como alternativa o programa “criança feliz”, uma politica de acompanhamento voltada às crianças de 0 a 6 anos que prevê visitas domiciliares. Nós perguntamos: onde estavam essas visitas quando a menina-vítima foi estuprada?

Ao utilizar uma tragédia familiar, que deixará graves cicatrizes na vida dessa menina-vítima, para promover sua cruzada anti-aborto, Damares demonstra o fracasso  do Estado em promover a proteção dessa criança. A ausência de suporte às famílias, o assédio contra os professores que tentam debater gênero e sexualidade nas escolas, como forma de prevenção a esse exato tipo de situação, o desinvestimento na assistência social, sob constante ajuste fiscal, tudo isso resulta no caldeirão onde fermentam abjetas violências, cujas maiores vítimas são as mulheres e crianças, e ainda assim, é sobre elas que o Estado joga as responsabilidades.

É importante destacar que no Brasil, não há limite de semanas para que a gestação seja interrompida nos casos previstos em leis, somente convenções médicas (como o limite de 500gr do feto para a realização do aborto). Assim, cada segundo, minuto e dia contam para que a vida dessa menina-vítima não se torne um símbolo de morte para salvar uma “vida” que ainda não existe de fato.

Gravidez aos 10 anos mata! Lutemos por uma vida que existe, pela vida dessa menina!

Educação de gênero e sexualidade nas escolas já!

Aborto legal e seguro para não morrer!

 

*Aline Beatriz Coutinho é especialista em Gênero e Sexualidade IMS/UERJ, pesquisadora do Leddes/UERJ e co-coordenadora do GT de Gênero da Anpuh/RJ, militante feminista do NHLA-RJ

*Sonara Costa é da Resistência Feminista e mestranda em serviço social pela UERJ