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Especiais

Saúde a partir da base da pirâmide social em uma pandemia global: pandemia do COVID-19

Alan Sears*

Tradução Waldo Mermestein

O fato de a atual pandemia de coronavírus ter disseminado condições de distopia nos diz muito sobre as políticas de saúde. Um vírus pode ser um fenômeno natural, mas a destruição causada por essa pandemia é um produto da forma como nossa sociedade está organizada. A escala de sofrimento e deslocamento criados por uma emergência de saúde é o resultado de ações e inações humanas, assim como o impacto diferencial em várias comunidades segue as fronteiras das desigualdades sociais predominantes, atingindo desproporcionalmente pessoas racializadas ou indígenas, com consequências devastadoras específicas para aqueles que estão desabrigados (sem-teto), encarcerados, idosos, aqueles que sofrem de alguma deficiência e imigrantes indocumentados.

A emergência de saúde global de 2020 demonstrou o quão perto estamos do limite. Encontro-me dentro de um filme de ficção científica que nunca escolheria assistir: espaços públicos vazios, prédios fechados, colapso econômico, novas ondas de violência racista e anti-migrante e manchetes mostrando o crescente número de doenças e mortes, especialmente entre populações específicas e vulneráveis. Todo o lockdown é coberto por um autoritarismo assustador, com policiais em parques patrulhando quem está simplesmente sentado em bancos e a expansão da vigilância por meio de nossos celulares.

É claro que muitas pessoas têm vivido um pesadelo durante todo o tempo, negociando condições de impossibilidade em suas vidas diárias. O capitalismo colonial cria cataclismas cotidianos para muitos: comunidades indígenas que enfrentam políticas governamentais genocidas, sem acesso a água potável ou moradia decente; pessoas carentes sem teto; aquelas deslocadas de seus modos de vida por guerras, roubo de terras, reestruturação econômica ou regimes políticos brutais. A sensação distópica atual é apenas uma pequena amostra da vida daqueles para quem a emergência está em curso, seja na Palestina, na Caxemira ou em Toronto.

O impacto devastador da pandemia atual destaca a realidade de que a saúde é inerentemente política. Os governos optaram por não se preparar, apesar dos anos de advertências sobre a ameaça de uma pandemia global semelhante a esta. Políticos, formuladores de políticas e consultores em saúde decidirão quando e como aliviar as condições atuais do bloqueio, e essa escolha também será política, com lucros que certamente estarão no centro dos cálculos. Os socialistas têm uma importante contribuição a fazer no mapeamento de uma política insurgente de saúde a partir da base da pirâmide social. Essa perspectiva visa construir o conhecimento, poder e recursos necessários para sustentar o bem-estar diante do poder do capital e do estado, sem desconsiderar o impacto da pandemia nem confiar nas autoridades para proteger nosso bem-estar.

Crise no Sistema Público de Saúde

Os números horríveis da atual pandemia escancaram a crise da atenção em saúde nas sociedades capitalistas. Simplificando, o capitalismo não se importa com isso. O sistema gira em torno dos lucros, e qualquer bem social que resulte nessa sociedade é, na melhor das hipóteses, um subproduto de processos que enriquecem os empregadores, geralmente desenvolvidos em resposta à pressão dos de baixo para nos sustentar. “Enquanto o capitalismo como um sistema se preocupa apenas com o lucro, o lucro é o sangue e o motor da vida do capital“, lembra Tithi Bhattacharya, “o sistema tem uma relação de dependência relutante a respeito dos processos e instituições de produção da vida“.

Um sistema que se nutre do trabalho dos trabalhadores vivos deve “relutantemente depender” de certo nível mínimo de assistência para sustentar e repor a força de trabalho, mas isso é tratado principalmente como uma responsabilidade privada que recai sobre os membros das famílias da classe trabalhadora (e sobrecarregando desproporcionalmente as mulheres). Essa responsabilidade privada é complementada pela assistência social deliberadamente de segunda categoria, geralmente estigmatizada e projetada para incentivar a “autoconfiança” através do mercado. Pagamentos para o bem-estar social estabelecido bem abaixo do mínimo necessário à subsistência e habitação pública insuficiente que não é mantida adequadamente são exemplos de serviços deliberadamente empobrecidos.

O cuidado é sistematicamente desvalorizado e recebe poucos recursos nas sociedades capitalistas, assumindo a forma de trabalho não remunerado ou mal remunerado, feito de forma desproporcional por mulheres e geralmente por mulheres de cor. O impacto devastador que esta pandemia está tendo entre os idosos e as pessoas que vivem com deficiência em instituições de longa permanência ou em casas de apoio é o resultado da crise da prestação de cuidado integral nas sociedades capitalistas. Por um lado, os residentes nesses locais são vistos como descartáveis, categorizados como “improdutivos” e são deixados de lado. Por outro lado, os funcionários que trabalham nesses ambientes residenciais são profundamente subvalorizados, muitas vezes trabalhando em meio período em instalações com pouco pessoal e recursos insuficientes, sem os protocolos ou equipamentos de proteção necessários para sua própria saúde, bem como para os residentes e outras pessoas em suas vidas. O sistema obriga os funcionários a assumir trabalhos de meio período em mais de uma instituição para tentar sobreviver e enfrentar desafios brutais, tentando reconciliar sua complexa agenda de turnos no emprego remunerado com seus próprios compromissos pessoais de prestação de cuidados.

O fechamento de escolas e creches nesta emergência de saúde pública mostra as profundezas da crise cotidiana do cuidado domiciliar nas sociedades capitalistas. Isso não é simplesmente uma questão de más condições de atendimento em instituições subfinanciadas, mas também de mulheres que lutam para sustentar seus entes queridos com recursos inadequados, ao mesmo tempo em que tentam conseguir a renda necessária sempre que possível. Mesmo com todos os sistemas em funcionamento, as mulheres lutam para conciliar as demandas de trabalho remunerado com as de cuidar de crianças, pais e parceiros. A rigidez do cronograma, mesmo em tempos normais, fica clara quando uma criança doente é enviada para casa pela creche, interrompendo o ritmo do trabalho remunerado com um número insuficiente de dias para cuidar da criança doente em casa. São aniquilantes os esforços de estudar à distância ou trabalhar em casa enquanto cuidam de crianças o tempo todo.

Além disso, as condições na quarentena intensificam a situação de violência cotidiana que muitas mulheres e crianças enfrentam em suas residências. A prestação de cuidados está profundamente entrelaçada com a contínua violência de gênero e com a violência contra as mulheres, que tornam a casa um lugar de grande perigo para muitas delas.

Essa emergência também destacou a amplitude das atividades de prestação de cuidados nesta sociedade. A capacidade de obter alimentos para comer, por exemplo, depende do trabalho muitas vezes subvalorizado de uma cadeia de trabalhadores, dos supermercados aos armazéns, dos frigoríficos e do campo. Esses prestadores de cuidados essenciais não são adequadamente remunerados nem apoiados com os protocolos e equipamentos necessários para garantir seu bem-estar. O presidente local da United Food and Commercial Workers (Trabalhadores Sindicalizados do Comércio e da Indústria de Alimentos) – (UFCW), Thomas Hesse, representando trabalhadores da fábrica de embalagem de carne da Cargill em High River Alberta (Canadá), escreveu ao empregador sobre um surto de infecção por COVID-19 entre os trabalhadores da fábrica. Ele observou que a organização do processo de trabalho aproxima os funcionários um do outro: “Infelizmente, o empregador não está fazendo o suficiente para proteger seus funcionários nesse ambiente. Você precisa fazer mais”.

Capitalismo e Política de Saúde

A desvalorização sistemática da prestação de cuidados mina a saúde. Mas os empregadores e os formuladores de políticas públicas não podem ignorar totalmente as questões de saúde em um sistema que lucra com o trabalho vivo. A atual emergência demonstra claramente o impacto que uma crise de saúde pode ter nos lucros dos empregadores.

A posição padrão para empregadores e formuladores de políticas públicas é tratar os trabalhadores como descartáveis e substituíveis, ignorando os problemas de saúde no local de trabalho ou de forma mais ampla na sociedade. Claramente, havia muitos avisos e muito conhecimento para se preparar para esta pandemia, mas simplesmente não era uma prioridade. Já em 2006, o governo canadense tinha um plano detalhado para preparar o setor de saúde para uma pandemia semelhante à atual, mas não foi implementado.

As estratégias neoliberais adotadas pelos empregadores e formuladores de políticas públicas nos últimos trinta anos minaram a capacidade de se prepararem para possíveis ameaças à saúde. Os serviços estatais, incluindo a saúde pública e a assistência médica, foram cortados repetidamente. Além disso, os empregadores e os formuladores de políticas públicas têm procurado aumentar os lucros e reduzir os custos, minimizando o armazenamento e a preparação em favor da movimentação rápida de mercadorias ao longo das cadeias de suprimentos globais e da entrega “just-in-time”. O fornecimento diário de alimentos, suprimentos médicos e outros bens dependem desse movimento rápido, sem a preparação para condições adversas. Vimos o impacto em termos de estoque insuficiente de equipamentos e medicamentos desesperadamente necessários, bem como na abertura de linhas de transmissão através de pessoas que trabalham ao longo da cadeia de suprimentos.

Mas há momentos em que essa posição padrão de descartabilidade humana se torna insustentável e são necessárias intervenções orientadas à saúde para sustentar os lucros, salvando vidas com relutância. As intervenções estatais de saúde pública tendem a se basear em um quadro de saúde para o topo da Pirâmide Social, no qual especialistas médicos e autoridades estatais trabalham juntos para instruir ou obrigar a população a fazer o que é necessário para o bem-estar. A ideia é que as autoridades estatais e médicas devem intervir para manter a produtividade, salvando a população supostamente ignorante de seus piores instintos, incluindo o hedonismo e a falta de visão. Pense em como a epidemia de AIDS se desenvolveu, com a saúde pública e as autoridades estatais culpando as escolhas eróticas de homens homossexuais e tentando interromper a atividade sexual gay sem levar em consideração o impacto na vida das pessoas.

De fato, a história da saúde pública nas sociedades capitalistas é permeada de culpa e vergonha, que servem para traçar linhas entre os supostamente respeitáveis membros da sociedade e os forasteiros ou “maus atores” que violam normas e servem como vetores de transmissão. Sim, os vírus viajam globalmente à medida que as pessoas se movem e há momentos muito específicos em que alguma forma de controle de viagem faz sentido como parte do distanciamento físico para reduzir a transmissão. Mas isso é frequentemente coberto por julgamento moral, racismo e fixações coloniais.

A saúde precária não vem de fora ou da não conformidade moral, mas é uma característica essencial de uma sociedade que trata a vida de grande parte da população como descartável e prejudica as relações ecológicas ao tratar o meio ambiente, incluindo outras espécies e até mesmo seres humanos, como recursos a serem extraídos. De fato, as autoridades encarregadas de combater o hedonismo e a falta de visão afirmam estar regulando em nome da saúde estão, de fato, simplesmente promovendo a internalização dos valores dominantes das relações capitalistas entre a população. A maioria de nós, nas sociedades capitalistas, só tem acesso limitado ao conhecimento, poder ou recursos de que precisamos para praticar a boa saúde, que inclui tudo, desde boa nutrição a moradia, autodeterminação democrática genuína e relações de cuidado com os outros.

A estrutura da saúde a partir do topo da pirâmide social fica evidente no uso da linguagem da guerra para descrever a promoção da saúde nesta emergência. O primeiro-ministro de Ontário, Doug Ford, disse em 3 de abril: “Todo mundo tem um preço a pagar nesta guerra”. Como Jesse McLaren explica na Spring Magazine:

Como todas as guerras, uma ‘guerra ao coronavírus’ exige que as pessoas comuns sacrifiquem sua saúde, segurança financeira e liberdades por um suposto interesse nacional. Como todas as guerras, isso desvia os gastos da saúde, piora as epidemias, gera o racismo e prejudica a democracia e as liberdades civis”.

De fato, o planejamento pandêmico nas sociedades capitalistas geralmente se concentra na segurança nacional e na competição econômica, e não no bem-estar da população. A ideia de uma guerra pela saúde é usada para justificar um estado de exceção no qual as pessoas são forçadas a aceitar um grau muito maior de invasão autoritária na vida cotidiana, por exemplo, através da coleta de dados por celular ou da presença da polícia nos parques.

A alternativa para a saúde a partir do topo da pirâmide social e para a guerra contra o coronavírus não é a afirmação libertária dos direitos individuais em desconsiderar nossas circunstâncias comuns de saúde. O individualismo competitivo que caracteriza as sociedades capitalistas mina nossa capacidade de pensar na saúde como um resultado comunitário em vez de individual – reconhecer o bem-estar de cada um de nós depende da situação de todos nós. As medidas de distanciamento físico associadas a essa emergência de saúde são para proteger os membros mais vulneráveis de nossa comunidade, mas esta sociedade não está organizada em torno da solidariedade social e as relações sociais capitalistas nos ensinam a pensar primeiro em nossa própria saúde.

Saúde a partir da base da pirâmide social

A verdadeira alternativa às guerras da saúde com o enfoque na segurança nacional é a “saúde a partir da base da pirâmide social”, orientada para a criação de vida. Há uma longa história de pessoas oprimidas – trabalhadores, mulheres, queers, racializadas, indígenas e portadoras de deficiência – mobilizando-se para exigir os recursos, conhecimento e poder para construir a saúde a partir da base da pirâmide social. A saúde a partir da base da pirâmide social se baseia na auto-atividade das comunidades vulneráveis, encarregando-se de seu bem-estar por meio da mobilização e compartilhamento de conhecimento.

As pessoas aprendem muito sobre sua saúde a partir da experiência cotidiana de viver em um grupo em engajamento com os demais. Esse conhecimento é construído por meio de uma organização informal e formal entre comunidades vulneráveis que reconhecem que não se pode confiar nos que estão no poder para cuidar do bem-estar da população. Essa experiência incorporada em primeira mão é necessária, mas não suficiente, para uma mobilização efetiva em prol da saúde; – ela precisa ser mais desenvolvida por meio do engajamento com habilidades especiais e conhecimento científico de alta qualidade e deve ser politizada para conectar a saúde às relações de poder dominantes.

O movimento ativista da Aids estabeleceu diretrizes para o sexo seguro, coletando e refletindo sobre as experiências da comunidade, contrapondo-se a especialistas que aconselham ou exigem que os gays desistam do sexo. Esse conhecimento incorporado foi crucial, mas os ativistas da Aids também se basearam em conhecimentos especializados, dedicando um grande esforço para exigir dos formuladores de políticas públicas, médicos especialistas e cientistas que compartilhassem o conhecimento e desenvolvessem práticas de prevenção e tratamento construídas em torno das experiências e necessidades daqueles em maior risco. Tal reapropriação popular, democratização e reorientação do conhecimento científico para atender às necessidades humanas são especialmente importantes no momento em que as evidências científicas em si – da mudança climática à pandemia atual – estão sendo anuladas por populistas de direita, de Trump nos Estados Unidos a Bolsonaro no Brasil, com um número de mortes devastador.

As mobilizações de saúde e segurança dos trabalhadores operam no pressuposto básico de que a administração não protegerá o bem-estar dos trabalhadores, a menos que seja forçada a tanto pela resistência. Houve importantes recusas de trabalho e greves violentas durante esta pandemia, pois os trabalhadores exigiram acesso aos recursos necessários para proteger seu próprio bem-estar e a saúde de outras pessoas com quem trabalham ou vivem. Algum grau de cinismo sobre as medidas introduzidas por quem está no poder certamente faz sentido, dada à longa experiência que os trabalhadores compartilham quando sua saúde está sendo prejudicada pelas condições e práticas de trabalho, incluindo ausência de licença médica, falta de equipamento de proteção e o silenciamento do conhecimento dos riscos envolvidos em muitos processos de trabalho distintos.

Há tantos exemplos importantes de mobilização na construção de um sistema de saúde a partir da base da pirâmide social. Os ativistas trans lutaram pelo acesso ao apoio médico necessário (por exemplo, para a transição, para aqueles que assim escolherem) de acordo com suas próprias exigências, não por normas ditadas, por exemplo, por critérios psiquiátricos sobre quem se qualifica ou não para fazer a transição. Os movimentos de saúde das mulheres têm enfatizado, em nome do famoso livro, “Nossos Corpos, Nós Mesmas”. Nações indígenas se basearam nas práticas tradicionais de cura e também exigiram acesso aos meios de saúde em suas próprias comunidades, desde moradias decentes a água potável, bem como serviços profissionais de saúde de acordo com as exigências da própria comunidade.

Essas mobilizações compartilham o compromisso de construir a saúde a partir da base da pirâmide social, que consiste em mobilizar o poder popular e a experiência coletiva. Obviamente, a competência científica e a prática profissional ainda são importantes. Eu, pessoalmente, não me submeteria a uma cirurgia do tipo crowdsource (processo colaborativo que se baseia na interação de comunidades para construir soluções em conjunto). Mas a perícia e a experiência devem estar presentes como um recurso para as comunidades em seus próprios termos, não como uma estrutura de autoridade que reforça a subordinação e a individualização.

A construção da saúde a partir da base da pirâmide social traz de volta as relações de reciprocidade e mutualidade, em oposição à acumulação individual competitiva de saúde como um concurso. As pessoas buscam a saúde a partir da base da pirâmide social, participando de ações coletivas para enfrentar ameaças à saúde, desenvolvendo conhecimentos, recursos e práticas para buscar o bem-estar comunitário.

Utopia contra a Distopia

A saúde construída a partir da base da pirâmide social abre espaços para imaginar uma melhor resposta à pandemia atual, uma visão utópica para inspirar mobilização, para que nunca precisemos repetir essa experiência de distopia. Imaginemos se um planejamento sério tivesse começado anos atrás, quando epidemias como o surto de SARS de 2003 soaram o alarme sobre a ameaça de pandemias. Todo bairro, escola e local de trabalho deveria ter um comitê de saúde democrático que, entre outras coisas, administrasse um centro de saúde comunitário, composto por profissionais responsáveis que prestam uma gama de serviços e também oferecem recursos para a mobilização e educação da comunidade.

Na verdade, isso não é tão utópico quanto possa parecer. Havia elementos desse modelo de serviços comunitários a partir da base da pirâmide social no desenvolvimento dos Centros Locais de Serviços Comunitários (CLSC) em Quebec, por meio das mobilizações militantes das décadas de 1960 e 1970. Há elementos desse modelo em locais seguros de uso de drogas, clínicas de saúde da mulher e centros de recursos de saúde e segurança dos trabalhadores, entre outros, que combinam a prestação de serviços com a mobilização da comunidade, baseando-se no conhecimento e na experiência dos usuários em vez de tratá-los como passivo e ignorante.

Cada bairro e local de trabalho precisam planejar em um nível bastante detalhado, envolvendo membros e trabalhadores da comunidade na atividade de mapear necessidades e recursos e construir redes de ação para garantir o bem-estar de todos. Ao mesmo tempo, processos mais amplos de planejamento em toda a cidade, na província, pan-canadense e global precisam ocorrer, com os órgãos delegados reportando todas as informações às assembleias locais.

A saúde construída a partir da base da pirâmide social exige um compromisso de solidariedade, construção em torno do conhecimento, experiência e necessidades das comunidades vulneráveis mais fortemente atingidas nesta pandemia e em qualquer outra emergência de saúde. Shiri Pasternak e Robert Houle observam que as comunidades indígenas no estado canadense geralmente carecem dos recursos básicos para o bem-estar, como fornecimento seguro de alimentos, água potável, moradia decente e acesso efetivo aos serviços de saúde. O longo padrão histórico de povos indígenas que enfrentam perdas e dificuldades desproporcionais em emergências de saúde se repetirá se não houver uma mobilização transformadora.

Ecoando os eventos de um século atrás, quando a pandemia de gripe espanhola de 1918 dizimou as comunidades das First Nations1 (Primeiras Nações) em todo o país, esta é uma crise que será definida por três fatores: divisões pré-existentes; até que ponto aqueles no poder político são responsabilizados por defendê-los; e nossa capacidade de aproveitar o momento para transformar tais fatores. 

Da mesma forma, os negros americanos estão enfrentando consequências particularmente terríveis com essa pandemia, como enfrentaram nas crises da saúde no passado. Em vez de solidariedade, a resposta dominante foi a culpa:

O complexo médico-industrial americano gosta de culpar explícita ou implicitamente os americanos negros por seus resultados em saúde, em vez de fornecer os recursos e as ferramentas para erradicar as desigualdades na saúde … No passado, como hoje, fatores sociais que estão fora do controle das comunidades de cor são responsáveis pelo aumento da incidência de doenças e agora tais fatores sociais colocam as comunidades de cor em maior risco de morte em caso de infecção por COVID-19.

Diante de nacionalismos reacionários ressurgentes, a política de solidariedade em torno da saúde construída a partir da base da pirâmide social precisa ser global e internacionalista. A má distribuição de recursos que leva grande parte da população do Sul Global a ser particularmente vulnerável a emergências de saúde está embutida no sistema dominante de relações políticas e econômicas:

O modo como a maioria das pessoas na África, América Latina, Oriente Médio e Ásia experimentará a pandemia que se aproxima é uma consequência direta de uma economia global sistematicamente estruturada em torno da exploração dos recursos e povos do sul. Neste sentido, a pandemia é muito mais um desastre social e causado pelo homem – e não simplesmente uma calamidade decorrente de causas naturais ou biológicas.

Em última análise, a construção da saúde a partir da base da pirâmide social exige uma maciça transferência de poder, uma transferência revolucionária, para possibilitar um planejamento democrático da saúde da comunidade, construído de acordo com princípios de solidariedade. A saúde da base da pirâmide social está integralmente conectada à derrubada do capitalismo. Mas isso não significa que a construção da saúde da Base da Pirâmide Social deva esperar até depois da revolução.

A mobilização em torno da saúde da base da pirâmide social fornece os meios para salvar e melhorar vidas agora, através da construção de um poder coletivo alinhado aos princípios de solidariedade para assumir o controle das principais decisões, tais como obter acesso aos equipamentos e protocolos de proteção necessários para os trabalhadores da linha de frente entrando em greve ou recusando trabalhar em ambiente inseguro. A saúde da base da pirâmide social é explicitamente política e, assim, vai além das redes de ajuda mútua, tão importante quanto aqueles estão em momentos como este. Não podemos ser apenas espectadores, pois empregadores, políticos, formuladores de políticas e especialistas médicos tomam decisões que são críticas para a nossa saúde, tais como quando e como é seguro acabar com a exigência de permanecer em casa, em quarentena.

Aqui enfrentamos um desafio específico. A saúde da base da pirâmide social prospera na coletividade, e nesta atual crise de saúde somos atomizados e descartados. O distanciamento físico é essencial para a saúde neste momento, e precisamos reconciliar a ruptura da comunidade cotidiana com a provisão dos recursos para que as pessoas possam se distanciar com segurança e sustentar redes de amor e cuidados. Também precisamos ativar todas as redes possíveis para o trabalho urgente de mobilizar para garantir que esta distopia nunca se repita. Nesta emergência, vimos exemplos amplos de greves ferozes e inspiradoras além de recusas em trabalhar sem os equipamentos de proteção e os protocolos para salvar vidas. Essas mobilizações são um exemplo crucial da luta que precisamos construir em todos os locais de trabalho, escolas e comunidades para refazer o mundo em torno do poder daqueles que estão na base da pirâmide social bem como da solidariedade ativa.

Artigo originalmente publicado em: http://www.internationalviewpoint.org/spip.php?article6577

Alan Sears é um ativista na Assembleia dos Trabalhadores e Docentes da Grande Toronto pela Palestina e é professor na Universidade Ryerson, em Toronto. É um ativista anticapitalista queer e um Associado Editorial do New Socialist Webzine e membro do New Socialists de Toronto. Ele é autor de The Next New Left: A History of the Future.

1 First Nations é um termo usado para descrever povos indígenas no Canadá, que não são Méts ou Inuit. Os povos da Primeira Nação são habitants originários da terra que hoje é o Canadá e foram os primeiros a ter contato europeu sustentado além do comércio e estabelecimento. Fonte: https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/first-nations#:~:text=First%20Nations%20is%20a%20term,European%20contact%2C%20settlement%20and%20trade.