Caro Matheus,
Escrevo essa carta porque eu vi o vídeo que mostra um homem branco dizendo que você tinha inveja da cor dele e nunca conseguiria o que ele tem. Apesar de ter embrulhando o meu estômago, assisti até o fim e vi a resposta que você deu. Obrigada por ela. Obrigada por ter questionado com tanta força a falência de um modelo de sociedade que concentra riquezas e mantém desigualdades. Apesar de sua força, Matheus, eu não gostaria que você tivesse vivido isso. Fico pensando aqui quantas e quantos entregadores de aplicativos passam por isso com frequência ao entregarem alimentos em condomínios com muros altos.
Vi nas redes sociais muitas pessoas elogiando a sua calma. Achei curioso. A sociedade é tão violenta conosco, negras e negros, a todo o momento, mas esperam que tenhamos calma diante dessas situações de violência. Quantos de nós já ouvimos que somos negros raivosos, não é mesmo? A mesma raiva que destilam sobre nós todos os dias.
Por isso, o que mais me chamou atenção no vídeo foi quando o homem usou a palavra “inveja”. Eu imediatamente me coloquei no seu lugar. Quando eu era criança, lembro de me olhar no espelho e me perguntar por quê, dentre tantas pessoas com as quais eu convivia, Deus tinha decidido que eu nasceria com esse tom de pele e com esse cabelo. Por muito tempo eu tive, sim, “inveja” das meninas de pele mais clara e cabelo mais liso do que o meu. Eu demorei alguns anos de vida para entender que esse sentimento, que eu entendia como “inveja”, na verdade era fruto do próprio racismo que estabelecia um padrão de beleza que nunca seria alcançado por uma mulher como eu.
Foi só quando eu entendi que as dores provocadas pelo racismo são coletivas, que eu entendi a importância de coletivizar também as saídas para acabar com essas dores. Algumas feministas negras, como Vilma Piedade, chamam esse processo de “dororidade”, ou a solidariedade que é desenvolvida entre nós a partir das dores que compartilhamos.
Ao entender e reconhecer a minha negritude, eu passei a sentir orgulho da minha trajetória, da minha família, dos nossos ancestrais, e também da cor da minha pele, do meu cabelo, do meu nariz e da minha boca. Passei a sentir orgulho das nossas músicas, das nossas roupas, das nossas comidas e dos nossos costumes. Esse orgulho é o que me move e me faz lutar todos os dias para que pessoas como eu e como você – que temos trajetórias de vida muito diferentes e compartilhamos muitos sentimentos em comum – nunca mais tenhamos que passar por situações como a que você passou na última semana. Para que as crianças que vierem depois de mim não precisem se olhar no espelho com vergonha de seus traços.
Talvez, Matheus, pessoas como aquele homem nunca entendam o real sentido dessa solidariedade. E essa carta, na verdade, é para te dizer que você não está sozinho nessa, nem nas dores e nem nas respostas que precisam ser dadas. Não se preocupe, você não anda só.
Com carinho,
Paula Nunes.
* Artigo publicado originalmente no site GGN.
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