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BRASIL

Por pedagogias emancipatórias em tempos de pandemia

João Colares da Mota Neto*

Nem ensino presencial, em plena pandemia no Brasil, com mais de cem mil mortos apenas pelos dados oficiais subnotificados; nem ensino remoto, modelo precarizado de Educação a Distância, a serviço do mercado e que aprofunda já enormes desigualdades sociais e educativas. Proponho, em contraposição às duas soluções, Pedagogias Emancipatórias. Essas Pedagogias, já presentes nos movimentos sociais, nos movimentos de educação popular e nos diversos coletivos de luta, estão aí em distintos territórios para formar sujeitos que reconhecem e combatem os pilares da opressão: capitalismo, racismo, patriarcado, heteronormatividade, colonialismo, colonialidades, capacitismo e tantos outros. 

Universidades e escolas, em que pese a existência de profissionais com iniciativas que caminham na direção dessas Pedagogias da Emancipação, sufocam justamente estas iniciativas e instauram um modelo de gestão e de ensino-aprendizagem bancário, tradicional, a serviço da opressão e dos interesses das elites nacionais e internacionais. Reproduzem um modelo ocidentalizado de ensino, que pouco ou nada dialoga com pedagogias e práticas epistêmicas dos povos originários, das classes populares e dos movimentos sociais. 

Daí a falta de imaginação destas instituições de pensarem processos educativos emancipatórios durante a pandemia. Nada de obrigatoriedade. Nada de imposição. Sabemos que o ensino remoto é um engodo e que não se pode seguir com as “caixinhas” das disciplinas curriculares. É que parece que só sabemos pensar dentro dessas caixinhas e não imaginamos alternativas criativas para a formação, a produção do conhecimento e a relação sociedade – universidade, para falar dessa instituição que conheço e na qual trabalho.

A própria pandemia é um tema gerador para suscitar muitas reflexões e iniciativas práticas. Por que não refletir sobre a pandemia, em seus distintos aspectos, com as comunidades acadêmicas e sociais? Temos currículos engessados, que já não dão conta das questões da atualidade, com pouco ou nenhum espaço para mulheres, negros e indígenas intelectuais – tantas outras e tantos outros são também excluídos.  

Não a toa, a sociedade civil organizada e os movimentos sociais foram os agentes que mais desenvolveram processos educativos emancipatórios, populares, feministas, antirracistas, decoloniais neste período. E grande parte das universidades moveu-se entre dois polos: aquele que foi ágil em se aproveitar do momento e implantar um modelo excludente, tecnicista e tecnocrático de ensino; e aquele que, completamente paralisado, sem diálogos coletivos com os estudantes, professorxs, técnicxs-administrativxs e a sociedade de modo geral, não sabe o que propor, está completamente perdida, foge à escuta da comunidade e não sabe pensar fora das tais e muitas “caixinhas”, sendo “empurrada” para o ensino remoto que ela não tem como garantir as condições e que é consciente disso!

É condição do ser humano a aprendizagem. Se estamos vivendo tempos duros e de muita dor, também estamos aprendendo com estas dores. Por que não uma Pedagogia da Alteridade, em que se possa acolher, orientar e dar suporte a quem está precisando? Apoio psicológico, social, pedagógico é necessário a trabalhadorxs e estudantes. Fortalecer a política de assistência estudantil e apoiar efetivamente a maior categoria das universidades e os que mais necessitam de apoio, os estudantes, deveria ser prioridade. 

Por que não praticar uma Pedagogia da Indignação, como propunha Paulo Freire, e que tanto inspira esse texto, e investir esforços para que a universidade de fato lute contra as opressões intensificadas pela pandemia? Uma oportunidade ímpar de formar cidadãos e profissionais solidários, sensíveis às causas das classes populares e críticos quanto aos fundamentos e mecanismos das iniquidades e opressões. 

Evidentemente que durante esse período a universidade não parou. Muitas pesquisas fantásticas sobre a pandemia estão sendo feitas e publicadas pelos cientistas da saúde; também cientistas sociais têm refletido sobre as dimensões socioantrológicas, econômicas e políticas da pandemia. Na Educação, também há estudos importantes tanto no Brasil quanto no exterior. Cientistas que, vale dizer, têm sido desvalorizados, atacados e rechaçados pela política bolsonarista de educação, ciência e tecnologia. Cortes de bolsas, redução de verbas, aprovação de projetos de lei anti-trabalhistas fazem parte desse combo de perversidade. 

Todo esse cenário tenebroso dificulta que pensemos a universidade em tempos de pandemia a partir de toda a potência intelectual que ela possui. Mas não deveria nos impedir de pensar! E essa é a experiência de muitxs que estão se esforçando ao máximo para trabalhar e aprender criativamente, embora professores sigam sendo chamados de improdutivos com salário. Não se valorizam as inúmeras atividades formativas que sindicatos, grupos de pesquisa, projetos de ensino, pesquisa e extensão, estudantes, articulados com as comunidades, os povos e a sociedade, estão desenvolvendo neste período. Nem se valorizam as redes de solidariedade criadas neste período para mitigar a fome e a pobreza das nossas populações tão marginalizadas.

Aprendemos muito sobre tecnologia durante a pandemia. Nem todxs, infelizmente, tiveram a oportunidade de aprender, por falta de acesso a dispositivos eletrônicos e à internet, realidade da Amazônia, de onde falo, mas também de muitos outros lugares em Abya Yala com quem temos nos conectado ou tentado nos conectar ao longo dos últimos meses. Mas nem só com tecnologias virtuais se aprende. Também o que foi aprendido por aquelas e aqueles que se engajaram a atender à população na saúde, na assistência social e na educação é fundamental. Muitos de nós  tivemos aprendizados incríveis, participando de diálogos com lutadorxs sociais e com acadêmicos e especialistas de nossa área do conhecimento da Amazônia, do Brasil e do Mundo. Para isso aprendemos a usar melhor as tecnologias. Não para fetichizá-las, mas para transformá-las em recurso que possibilite nossas interações em contexto de distanciamento social. Que continuemos a aprender com as tecnologias, mas que, ao mesmo tempo, lutemos para garantir a superação da exclusão digital, com políticas públicas inclusivas e transformadoras. 

Os professores, os demais trabalhadores da educação e os estudantes, com os diálogos que travaram neste período, com as interações estabelecidas, com as redes de solidariedade em que se engajaram, cresceram e não sentiram seu processo de formação ser interrompido, apenas o seu formato. As pressões acadêmicas para aderirmos a soluções ou que põem em risco a vida humana ou que aprofundam desigualdades educativas nos roubam tempo e impedem que aprofundemos essas Pedagogias da Emancipação. 

Mas também essas lutas por projetos de educação e sociedade nos educam. Por que não valorizar a Pedagogia das Lutas e das Existências, em que aprendemos com nossas lutas, dores, desejos e realizações? Escrever sobre isso, promover encontros virtuais não obrigatórios, estabelecer contatos humanizadores com as turmas de alunos e categorias profissionais são possibilidades para o período, e necessárias de serem feitas. 

Como “implantar” essas Pedagogias de Emancipação em nossas universidades? Elas não serão implantadas, pois devem ser criadas e construídas. Vamos pensar juntas e juntos! Vamos debater coletivamente. Vamos praticar um modelo de gestão democrática para estes debates, não superpondo as hierarquias às interações dialógicas, estas sim capazes de nos levar a alternativas pedagógicas emancipatórias. Por isso, respeitemos os colegiados instituídos, mas que estes deliberem a partir dos interesses da sociedade, ouvindo sua comunidade, seus grupos de pesquisa, sindicatos e movimento estudantil. 

Proponho Pedagogias da Criatividade, pois nós que conhecemos nossa realidade não podemos nos calar e aceitar soluções prontas vindas de fora. Temos que ser crítico-propositivos, tendo por base os estudos das ciências em que atuamos, as  sabedorias e as Pedagogias de Luta dos movimentos sociais e os diálogos que temos que aprofundar – e não  suprimir – em nosso cotidiano acadêmico.  

Novo normal? Que expressão horrível! Se a normalidade é quase sempre associada à opressão, não duvidemos que o tal novo normal seja uma versão ainda mais perversa da violência que sofremos. Pela Pedagogia da Criatividade, que pensa fora das caixinhas, imaginemos não um novo normal, mas o que Paulo Freire chamou na “Pedagogia do Oprimido” de “inédito viável”. O que queremos ainda não existe. Será inédito. Terá de ser criado. Mas só será viável se nos empenharmos coletivamente em construí-lo.

 

* Professor da Universidade do Estado do Pará.