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BRASIL

Da “anti-rosa atômica” ao “anticientificismo atônito”: o genocídio como paralelo

Emerson Monte, de Belém, PA

No momento em que a humanidade rememora, com largo sentimento de pesar pelas diversas vidas subtraídas, os 75 anos dos fatídicos acontecimentos deliberados, em 6 e 9 de agosto de 1945, nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, assiste-se a uma tragédia prenunciada, no Brasil de 2020, no conjunto das principais cidades do país.

Nos versos cunhados por Vinícius de Moraes, em 1946, ficou explícito que a “Rosa de Hiroshima” não era uma rosa a ser apreciada por sua exuberância perante os olhos ou por seu aroma característico ao invadir o mundo olfativo, a sua função não foi a de aguçar as melhores sinestesias humanas. “Como rosas cálidas”, Hiroshima e Nagasaki, colocou no topo da (i)lógica capitalista a verdadeira face que move esse sistema produtivo: o genocídio como projeto nos momentos decisivos.

A ação deliberada e planejada do alto comando militar dos EUA foi decisiva para arquitetar um dos maiores crimes contra a humanidade que o século vinte pode registrar, tatuando no solo oriental milhares de vidas humanas numa fração de segundos. O avião B-29 que transportou a bomba Little Boy foi o último estágio do primeiro uso de uma bomba nuclear utilizada como arma de destruição em massa, na cidade de Hiroshima.

Três dias depois Nagasaki viveu o segundo crime contra milhares de civis, com o lançamento de uma nova bomba nuclear. Num determinado documento japonês, Nagasaki ficou registrada “como um cemitério sem uma única lápide de pé”. O saldo final da segunda semana daquele mês de agosto de 1945 foi de 200 mil mortes.

O resultado desses fatos, agregada à barbárie protagonizada pelo regime nazista com números de 21 milhões de mortes, foi o reconhecimento do crime de genocídio. O termo, em si, foi cunhado a partir do resultado dos diversos crimes cometidos contra diversos povos no conjunto da segunda guerra mundial por Raphael Lemkin, em 1944. O produto final foi liderado por Truman, negando quaisquer outras medidas indicadas pelos seus estrategistas de guerra para por fim ao conflito bélico, os EUA lançam mão da arma nuclear e, com essa ação estúpida, promove o último genocídio dessa guerra.

Três anos à frente, em 1948, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou na convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio a resolução n. 260. Ficou definido, a partir de então, que o genocídio é um crime do direito dos povos, seja cometido em tempos de guerra ou de paz. Além disso, o genocídio foi delimitado como ações cometidas com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, a exemplo: a) Assassinato de membros do grupo; b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.

Um paralelo com o fatídico fim da segunda grande guerra, do ponto de vista do conteúdo, pode ser traçado a partir do que se iniciou em 12 de março de 2020, com a morte de uma mulher, em São Paulo (SP), vitimada pela COVID-19. O suceder de casos foi de 100 óbitos na segunda semana, 1.000 na quarta semana, 10.000 na oitava semana e a vigésima primeira semana epidemiológica de notificação dos óbitos encerrou com mais de 100 mil mortes.

As últimas 12 semanas epidemiológicas de notificação encerraram média de 1.000 óbitos diários (desde a penúltima semana de maio). Com esse saldo, o Brasil figura como o segundo país com maior número de mortes por COVID-19, com 14% das mortes no mundo, atrás apenas dos EUA. Ao ampliar o foco da lente sobre esses números é possível visualizar a dor e o sofrimento dos familiares das vítimas, com números expressivos de negros e negras, pertencentes às classes sociais com menores condições socioeconômicas e que vivem nas periferias das cidades. Além desse panorama, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) registra 652 indígenas mortos pela COVID-19 e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) contabiliza 148 mortes por COVID-19 nos territórios quilombolas do país.

Ante a barbárie instalada as medidas do (des)governo Bolsonaro, com a sua “intelligentsia” representada pelos Chicago Boys, desfere um golpe mortal para o conjunto da classe trabalhadora. A medida enérgica do governo foi a de salvaguardar os bancos e o capital financeiro com R$ 1,2 trilhões e destinar, após resistência, 600 reais mensais com curto prazo de validade aos trabalhadores e às trabalhadoras. No campo da saúde pública a batalha cotidiana, eivada pelo discurso anticientífico, caminhou na esteira do desmonte das ações consequentes do Ministério da Saúde no enfrentamento à pandemia, com a exoneração de ministro e a completa paralisia de uma condução da política pública no combate efetivo a proliferação do vírus.

Não se encontrando satisfeito com as suas ações em direção ao aprofundamento da barbárie, um show de horrores passou a ser construído a cada novo pronunciamento do chefe do executivo federal: “gripezinha”, “todos nós vamos morrer um dia”, “e daí?”, “cobre do seu governador”, “não precisa entrar em pânico”, “tem medo do quê? enfrenta!”, “a hidroxicloroquina tá dando certo”, “vírus está indo embora”, “eu não sou coveiro”.

Aliada a esse conjunto de medidas ancoradas na lógica ultraliberal, a negação das investigações científicas sobre medicamentos e vacinas, o não fortalecimento das pesquisas nas universidades e centros de pesquisa públicas (com corte de verbas para esse tipo de pesquisa), a defesa do mercado em detrimento das vidas, com o combate ao isolamento social, o desemprego com valores recordes e, por fim, a restrição à publicidade dos dados oficiais sobre a pandemia, colocam o governo Bolsonaro como um governo genocida, mesmo que não o faça por meio de uma bomba nuclear lançada por um avião B-29, o governo de B-17 o faz aos poucos por meio de seus atos oficiais.

Essa conclusão fica explícita tal como os feixes coloridos da luz que cinde ao transpor o prisma. A definição emanada pela Organização das Nações Unidas, em 1948, deixa vívido o crime de genocídio como a “submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial”. As ações do governo Bolsonaro são signatárias de conteúdo deletério ao conjunto da classe trabalhadora e “salvaguardacionista” do projeto da burguesia, portanto, um governo deliberadamente genocida.

A necessidade de enfrentar e derrotar o governo de Bolsonaro e Mourão são pujantes. O programa a ser defendido precisa perpassar pela defesa da vida, com a garantia da quarentena geral, emprego e renda digna para todas e todos. Nessa direção, a unidade que várias organizações da classe trabalhadora construíram com foco no pedido de impeachment do governo Bolsonaro, cumpre a função imediata de defesa da vida. A frente única pela campanha do Fora Bolsonaro e Mourão precisa ser potencializada para frear a barbárie que está instalada no país e denunciar o genocídio perpetrado por esse governo.

Não se pode defender um governo que instala uma nova “Rosa de Hiroshima” no país. Ao se ter a necessidade de incinerar os corpos dos casos de COVID-19, o Brasil passou a ser um grande cemitério sem as suas lápides para prestarmos homenagens aos entes queridos. Ao fim e ao cabo, a saída para essa crise do modo de produção do capital é a sua superação, a construção de outro modelo produtivo que não concentre a riqueza, que não seja fundada na exploração do trabalho, que socialize a produção e projete o futuro com foco na vida humana e em relações harmoniosas com a natureza.

Portanto, é necessário permanecer com o otimismo da vontade sem deixar de guiar pelas análises do pessimismo da razão. Frear as medidas “estúpidas e inválidas” do governo Bolsonaro e Mourão precisa ser a palavra de ordem para a atual conjuntura: FORA BOLSONARO E MOURÃO.