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BRASIL

Quantos mais têm que morrer? Os podres poderes e as mais de cem mil mortes por Covid-19 no Brasil

Luciana Boiteux*
Rebeca Belchior

Chegamos no Brasil ao marco de mais de 100 mil mortes por Covid-19. Nosso presidente se manteve firme em sua política de morte ao longo de todos esses meses, deixando nosso país com um dos piores resultados mundiais de (não) combate à pandemia. Os governos estaduais e municipais têm se mostrado não só descoordenados, mas a interferência cada vez maior da Justiça em decisões de abertura de comércio e escolas nas cidades mostram como a ciência e os e as especialistas em saúde pública não têm sido ouvidos, prevalecendo a politização irresponsável de governos terraplanistas, que aprofundaram ainda mais a exclusão social e a desigualdade marcada pela raça e pela classe social da maioria dos mortos, pessoas negras e periféricas. Na condução de estruturas estatais tradicionalmente violentas e desiguais, o descaso com as milhares de famílias que choram seus mortos sem direito a velório ou abraço é uma marca da conjuntura. “E daí?”, responde o Presidente. “Não sou coveiro” (sic). Somente no município do Rio de Janeiro, são mais de 8.600 vidas perdidas. É nosso dever refletir sobre os significados da crise da pandemia em nossa realidade. O aumento da exploração e da precarização da maioria, além das mortes diretamente provocadas pelo vírus, têm sido a tônica atual. Não é possível silenciar diante da política autoritária, genocida e elitista em curso. Além disso, o mundo pós-pandemia já está sendo construído no hoje e precisamos disputar esses rumos. O “novo normal” não pode ser a naturalização da morte e da desigualdade.

O fato é que a situação do Brasil poderia ser diferente. A escalada dos óbitos não corresponde simplesmente à mortalidade do vírus. É o resultado, na realidade, de uma política conscientemente implementada pelo governo Bolsonaro, com o apoio de expressiva parcela de nossa classe dominante. A preservação dos lucros orientou desde sempre a intervenção do governo, ainda que se desse ao custo de milhares de mortos. Bolsonaro manteve esse discurso em alto e bom som, articulado com uma estratégia autoritária neofascista e apontando para seguir desenvolvendo a agenda ultraliberal. E, assim, a despeito das 100 mil vidas perdidas, somos chamadas a naturalizar um estado de coisas absolutamente inaceitável. Governadores e prefeitos(as), mesmo os que se opunham à política de Bolsonaro no início da crise, promovem a abertura da circulação como parte desse “novo normal”, que inclui a realização de operações policiais (a tempo limitada pelo STF, por iniciativa de movimentos sociais na ADPF das favelas). Aos corpos negros que caem na favela, alvos de uma polícia treinada para o genocídio de jovens pretos, inclusive crianças em escolas, hoje se somam a essa triste lista os mortos na epidemia, mas não por Covid, como João Vitor, assassinado pela polícia durante ação de solidariedade na Cidade de Deus, ou seja, justo nos territórios que mais precisam de políticas sociais.

A pandemia também vem aprofundando um processo de intensificação da precarização do trabalho no país, em especial de mulheres negras. O fenômeno tem agravado um processo já em curso anteriormente de ataques aos nossos direitos, com o marco da intensificação desde o golpe jurídico-parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016. É o caso da aprovação da PEC do Teto de Gastos, Reforma Trabalhista, e Reforma da Previdência nos anos seguintes ao golpe. Esse fenômeno se agravou também com outras formas de precarização do trabalho, no compasso das mudanças globais, com a “infoproletarização” ou “uberização” de enormes parcelas da população, que vem levando a novas lutas nas cidades, como das recentes greves “do breque”

Assim, vemos que no âmbito do trabalho formal perdemos um conjunto expressivo de direitos nos últimos anos. E, do ponto de vista das “inovações”, vivemos um aumento da exploração e ausência de garantias básicas na realidade de quem trabalha por serviços de aplicativos. Nos últimos meses, todo esse quadro tem se agravado, com um aprofundamento da crise econômica, que já se desenrolava anteriormente ao coronavírus, aumento do desemprego, da fome e da miséria no Brasil. Estamos com uma taxa de 13,3% de desemprego e 36,9% de trabalho informal. São 31,9 milhões de brasileiros e brasileiras que se encontram desempregados, desalentados ou subutilizados. Mais de 1.250.000 trabalhadoras e trabalhadores domésticos perderam seus empregos no último trimestre. Muitos dos que precisam desesperadamente trabalhar não conseguem, mesmo com a “reabertura” da economia. Vidas são ameaçadas, mas sem garantias para aqueles que são postos em risco.

Na pandemia, essa situação de intensificação da exploração tem afetado especialmente as mulheres, em especial as mulheres negras. A isso somam-se outras situações de opressão, como o racismo e a lgbtfobia, em um contexto de aumento de precarização das relações econômicas. Além do aumento de casos de violência doméstica, as mulheres vivem em seu cotidiano da pandemia uma sobreposição das jornadas de trabalho. Assim, as que tiveram, e as poucas que ainda conseguem manter, direito ao distanciamento social, têm que trabalhar, ao mesmo tempo em que cuidam da casa e dos filhos – muitas vezes com a nova tarefa imposta de virar “tutora” das modalidades de ensino virtual. A maioria, que precisa trabalhar fora, necessita encontrar formas de lidar com o cuidado dos filhos, e a piora geral das condições de vida. Na saúde, são as mulheres a maioria dos que estão na linha de frente, como cuidadoras, técnicas, enfermeiras, nutricionistas, psicólogas, fisioterapeuticas, médicas e também no apoio administrativo na saúde. E quem cuida de quem cuida?

A pressão pela volta às aulas presenciais nas escolas e universidades é parte dessa violência, que atinge especialmente as mulheres chefes de família e que são responsáveis por seus filhos. Expor a saúde de milhões de crianças, profissionais de educação e familiares conduziria, evidentemente, a um agravamento da situação da pandemia e das mortes. No Rio, Crivella ainda colocou em risco a segurança alimentar de alunos e alunas, com distribuição de alimentos sem condições de serem consumidos. Mas, para o lucro, a volta às aulas é absolutamente funcional, porque significaria forçar as condições para que pais, mas, sobretudo, as mães, retomem plenamente suas atividades laborais, ao se “liberarem” do trabalho de cuidado das crianças. Entretanto, é sobre essas mesmas mulheres que recai o cuidado de muitos dos contraem o COVID. Milhares de educadores e educadoras estão se organizando com o mote “um ano letivo se recupera, vidas perdidas não”. É nesse sentido que avança a greve pela vida do SEPE, no Rio de Janeiro, e essa batalha merece todo nosso apoio.

Dentre as denúncias na saúde, ainda mais demandada na epidemia, vemos as notícias de superfaturamento e corrupção na contratação de organizações sociais para gerir hospitais de campanha nunca inaugurados, enquanto pessoas morrem antes de conseguirem ter acesso a uma UTI. Além disso, verificamos a situação das mulheres, que já são cotidianamente afetadas pela não universalização do atendimento pré-natal nos postos de saúde, mas que vêm sofrendo ainda mais na pandemia. Isso sem contar a triste marca de recordista mundial em mortes maternas na epidemia, sendo o Brasil hoje o país com mais mortes de gestantes e puérperas no mundo, registrando o percentual de 77% do total dos registros do planeta e a maior taxa de letalidade materna pelo vírus no mundo, atingindo em especial mulheres negras e pobres. Inaceitável.

Nos presídios e penitenciárias lotadas, a pandemia do coronavírus sem que se tenha adotado medidas de desencarceramento nem mesmo para grupos de risco, como idosos, gestantes e portadores de comorbidades, já aponta para um número de mortes registradas nunca visto. Adota-se a política de suspender visitas de familiares que agrava o sofrimento, sem que se consiga prevenir o rápido contágio. São mortes evitáveis, como a de Lucas, em Minas Gerais, que cumpria pena pelo tráfico de 10 gramas de maconha. Mas a seletividade e o racismo do sistema de Justiça pesam mais do que a efetivação de direitos e o cumprimento da Constituição.

A pandemia também nos fala muito da destruição ambiental, que ameaça a própria continuidade da humanidade. Isso ocorre pela destruição de ecossistemas, em uma realidade urbana de grandes contingentes populacionais em condições muito precárias, o que é uma combinação explosiva para a propagação de doenças, em especial se pensarmos na imensa maioria de lares sem saneamento básico e fornecimento de água. E, de outro lado, como a ganância dos poderosos não vê limites e encontra oportunidades na miséria da maioria. A fala do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, de aproveitar o momento da pandemia para “passar a boiada” de legislações impopulares, é uma cruel ilustração dessa relação.

Na nossa cidade, Crivella, Bolsonaro e Witzel atuam conjuntamente para fazer da Floresta do Camboatá um autódromo, ao custo de cerca de oitocentos milhões de reais e a perda de duzentas mil árvores, mas isso não importa para eles. Uma área verde que precisa ser preservada, não trocada por uma disputa insensata com São Paulo pela realização de uma prova esportiva. A história recente do Rio mostra que os beneficiários desses mega-empreendimentos não pertencem à grande maioria da população, e sim aos que canalizam como lucro os recursos que poderiam gerar amparo a quem mais sofre com a pandemia e a crise. Vimos isso com a Copa e as Olimpíadas em 2016, e os movimentos sociais tinham toda razão.

No momento atual, é imprescindível a manutenção e ampliação do auxílio emergencial, ameaçado de descontinuidade por Paulo Guedes. Os R$ 600 mensais foram o mínimo de uma política de renda implementada neste período no Brasil, a contragosto, desde sempre, do governo. Sua retirada seria um golpe duríssimo nas famílias mais pobres de nosso país. Acabar com esse benefício seria uma verdadeira crueldade e o fim, para amplas camadas de trabalhadores e trabalhadoras, de qualquer perspectiva de se sustentar e preservar a saúde dos seus mais próximos. O mesmo vale para a Renda Carioca que Crivella impediu que se concretizasse. O “novo normal” banaliza a morte, mas também condena a uma vida cada vez mais precária, sofrida e miserável. De outro lado, não podemos perder de vista a retomada de mudanças mais estruturais, para combater a desigualdade gritante e ascendente. Para isso, a revogação da PEC do Teto de Gastos segue na ordem do dia, bem como a revogação da Lei de Responsabilidade Fiscal, a taxação de lucros e dividendos e outras ações que ajam sobre os milionários e bilionários do país.

Recentemente foi divulgada a notícia de que Bolsonaro efetivamente tentou articular um golpe militar no país, a pretexto de uma intervenção no STF, em maio de 2020. Vivemos a nível nacional uma banalização do autoritarismo e do golpismo, em consonância com um completo “e daí” com relação à vida de inúmeros brasileiros e brasileiras. O ministro interino da saúde comentou, sobre o número de mortos que chegaria a 100 mil no Brasil: “vida que segue”. Quero aqui reafirmar: não, general, são cem mil famílias com vidas interrompidas, sem seus entes queridos. 100 mil vidas que não seguiram. A todos e todas que foram atingidos nesse processo, minha solidariedade! E seguiremos em nossa luta, sementes que somos de uma nova primavera.

 

*Luciana Boiteux é advogada feminista, professora da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ