“Cidadão, não!” Extra, Extra, no Brasil se joga fora cidadania

Fabiane Albuquerque*

Dois episódios chamam a atenção. Dois cidadãos brancos, classe média, recusaram a cidadania. Nossa Senhora dos absurdos, rogai por nós! Faça com que não seja desperdiçada, mas dada ao meu povo pobre, à população negra,  aos periféricos, pois estamos esperando na fila para recebê-la há séculos. 

Cidadania quer dizer fazer parte da Polis, ou seja, de um Estado, e ter seus direitos civis e políticos garantidos, bem como cumprir com seus deveres. Uma mulher branca, de classe média, ao ser abordada junto ao marido, por um fiscal no Rio de Janeiro, reivindicou, ao ouvir do agente a palavra “cidadão” o seguinte: “cidadão, não! Engenheiro civil! Melhor que você”! Um outro, o desembargador, de um biotipo que não daria nunca para ostentar superioridade aqui na Europa, coitado,  pois é a cara do Barney dos Flintstones, disse a um outro agente no exercício de sua função: “Cidadão, não! Desembargador, com contatos! Melhor que você”! 

Ora, ora, ora! As duas criaturas, e não ousamos chamá-los de cidadãos para não ofendê-los, recusaram a própria cidadania. Venham, minha gente, vamos pegar! Apropriemo-nos dela, senão por direito, por estar sendo descartada.

Já imaginaram um policial chegando na favela e diante de um pai de família com seus filhos dissesse “Bom dia, cidadão, o documento, por favor”?  Ou, no alto de um helicóptero, outro policial, ao avistar uma criança negra de uma zona pobre, indo para a escola com a mochila nas costas, ao invés de atirar, virasse para seu colega de fardas e dissesse “Veja aquele pequeno cidadão ali, vamos cuidar para que cresça bem!” Que revolução seria, minha  gente! 

Estamos buscando cidadania, dando a vida por ela, e a branquitude descartando? “É brincadeira isso?”- perguntaria o meu vizinho francês. “Não, senhor!” No Brasil, cidadania para a classe média branca, é tão banal, tão excessiva, que já se empanturraram tanto e se lambusaram tanto com ela, que a tratam como produto descartável. Menosprezam cidadania no Brasil e pode ser que até a encontremos usada, jogada na lata de lixo dos condomínios fechados. 

Há  muita gente revirando as sobras da branquitude abastada a procura dos restos  de cidadania. E claro, não é a mesma coisa colocada no corpo de um pobre e preto, não é? Mas quem sabe assim não nos fuzilam mais. 

E essa classe média, que despreza igualdade perante a lei, vem para a Europa e  veste cidadania com prazer. Postam foto na internet falando com o garçom italiano e são só sorrisos. Amam andar de trem na Noruega e dizer como funcionam os serviços públicos que os cidadãos do Norte do globo utilizam. E mais, são os primeiros a usufruir do Estado  Social na França quando migram e a enfurecer com os  Programas Sociais no Brasil. Como é chique ser cidadão na Europa! Luana Piovani que o diga!

Ah meu Brasil! Explicando isso, aqui na França, ninguém entende. Eu só espero que o meu povo sofrido e massacrado por falta de cidadania lhes tirem à força e faça melhor uso dela. É uma questão de meritocracia, posto que, a classe média branca não a merece. Assim sendo, ela precisa entrar na fila novamente e nos dar o lugar, pois estamos de pé esperando há séculos, enquanto passam à nossa frente com essa arrogância de “engenheiro civil” e de quem tem “contatos”. Que meu povo faça bom uso dela  e reconstrua um país mais digno. 

*Fabiane Albuquerque é socióloga e pesquisadora pela Unicamp