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BRASIL

Apesar dos 100 mil mortos, governo e imprensa seguem ignorando necessidade de uma política nacional de contenção

Gilberto Calil

Há duas semanas, em 22 de julho, pela primeira vez o país registrava mais de 50.000 novos casos em um dia. Desde então, esta marca já foi superada nove vezes e, pior, com mais de 630 mil casos em 14 dias, a média diária de novos casos no período já passa de 45.000 novos casos, e pela terceira vez consecutiva, devemos ultrapassar 300.000 novos casos na semana – o que indica um número real que provavelmente fique entre 1,5 milhão e 2 milhões de novos casos por semana. É uma marca trágica, que já vem sendo traduzida no aumento do número diário de mortes – 1.469 ontem, e 1.033 na média móvel calculada pelo portal G1. Enquanto isto, as informações desaparecem quase completamente das manchetes dos grandes portais e dos noticiários televisivos, como se o tema não importasse mais e fosse possível seguir vida normal, de um “novo normal” centrado na banalização da morte e naturalização da tragédia.

A naturalização da tragédia passa pelo discurso normalizador e pela imposição da crescente retomada de atividades em todos os âmbitos. O estado de São Paulo, por exemplo, conduzido pelo discurso normalizados do governador Dória, teve 145.819 novos casos nos últimos 14 dias, um crescimento de 49% em relação ao registrado nos 14 dias anteriores (98.081). Neste contexto, deveriam causar revolta e repulsa generalizada as propostas / ameaças de retomada do ensino presencial sem o prévio controle efetivo da pandemia. Não é possível esperar que a pandemia “vá embora” por força da natureza. Ao contrário, o incremento recente no número diário de casos reforça, uma vez mais, que sem medidas de contenção, não há nenhuma possibilidade de melhora no horizonte.

Em termos mundiais, mantêm-se uma situação preocupante em diversas regiões. Nos Estados Unidos depois de semanas de crescimento, há uma relativa estabilização, mas em patamar elevadíssimo de novos casos por semana, sobretudo nos estados sulistas, e tal como no Brasil a ausência de uma política nacional de contenção segue cobrando alto preço. Na Europa Ocidental o período de férias produziu aumento da circulação internacional e determinou reversão da tendência continuada de redução de casos em vigência nos últimos meses, o que é especialmente intenso na Bélgica e na Espanha (apenas na Catalunha registram-se nos últimos 14 dias 9.786 novos casos, dos quais 6.929 na região de Barcelona). Em diferentes regiões do mundo há crescimento de casos em países mais pobres, em especial na América do Sul, Oriente Médio e Ásia Central. Na Índia permanece um acelerado crescimento, com mais de 720 mil novos casos em 14 dias. De acordo com o site endcoronavirus.org, os dez países com maior número de novos casos nos últimos 14 dias são: EUA (853.769), Índia (725.738),Brasil (631.559), África do Sul (134.929), Colômbia (127.286), México (93.826), Peru (81.074), Argentina (78.782), Rússia (77.058) e Filipinas (73.411). (1)

A tabela anexa reúne os dados dos 15 países com maior número de mortes registradas de acordo com o wordometers e registra o número de novos casos dos últimos 14 dias, comparando com os 14 dias anteriores, de forma a identificar se a tendência em cada país é de crescimento ou redução da pandemia. Esta comparação envolvendo o número de novos casos em dois períodos de duas semanas visa avaliar se há avanço ou recuo da pandemia. Os Estados Unidos concentram 24% do total de novos casos no período, um resultado claro da reabertura econômica, em especial em estados que tinham sido menos atingidos até então, como Florida, Texas, Louisiana, Georgia, Alabama, Carolina do Norte e Carolina do Sul. O fato de serem estados sulistas e no auge do verão, comprova uma vez mais que as altas temperaturas não são fator protetivo suficiente para impedir o avanço da pandemia. Embora o número de novos casos dos EUA seja 38% superior ao do Brasil, dada a diferença de testagem, é muito provável que o número de brasileiros efetivamente contaminados no período seja superior ao dos EUA.

Nos últimos sete dias, o Brasil teve 7.230 mortes o que representa 17,8% das 40.589 registradas em todo o mundo (o Brasil tem 2.75% da população mundial), mantendo-se na semana uma média de 1.033 mortes diárias. Depois de várias semanas com número de óbitos inferior ao Brasil, os Estados Unidos voltam a ter o maior número, 7.753 mortes na semana). O número de mortes de ontem (5/7) no Brasil (1.469) foi bem superior à soma dos 141 países da Europa, África, Oceania, América Central e Caribe (1.072), e superior até mesmo ao total de óbitos registrados na Ásia (1.424), que com 4,5 bilhões de habitantes tem uma população 21 vezes superior ao Brasil.

Este número oficial expressa apenas uma parcela dos óbitos, deixando de considerar outras duas situações. A primeira é que uma parcela dos contaminados morre em casa e mesmo tendo sintomas indicativos de Covid, não são contabilizados. É muito difícil estimar o número de óbitos decorrentes de Covid nesta situação, restando apenas a comparação do número total de óbitos (desconsiderando aqueles por causas externas, como homicídio e acidentes) em relação ao ano anterior (um dado que só é consolidado bastante tempo depois). A segunda situação envolve as mortes por insuficiência respiratória que ocorrem em ambiente hospitalar, com sintomas compatíveis por Covid, mas que não são testados. Neste caso, o óbito é registrado como Síndrome Respiratória Aguda Grave “não identificada”. O último dado disponível é de 20 de julho (Boletim Epidemiológico 23), quando tínhamos já 37.495 mortes por SRAG, além de outras 3.840 mortes em investigação. Somadas ao número oficial de mortes por Covid, já são mais de 138.000 óbitos. Alguns estados seguem registrando mais mortes como SRAG não identificada do que oficializadas para Covid (dados referentes a 27/7): Rio Grande do Sul (1.702 SRAG / 1.643 Covid), Paraná (2114 SRAG / 1.568 Covid), Minas Gerais (2.995 SRAG / 2.546 Covid) e Mato Grosso do Sul (366 / 321). Também Santa Catarina e Amazonas tem elevada proporção de mortes atribuídas a SRAG não identificada.

Além disto, o Ministério da Saúde segue propagando o número de “recuperados” como se fosse um dado positivo, ignorando as diversas pesquisas que indicam que mesmo entre os sobreviventes há diversas sequelas, parte das quais sequer há como avaliar neste momento. São inúmeras as pesquisas que indicam problemas persistentes entre os “recuperados”, incluindo-se fadiga, falta de ar persistente, problemas neurológicos, dificuldades auditivas e diversos outros ainda em investigação.

A subnotificação segue como problema grave, e a não renovação do convênio que permitiu a realização da pesquisa nacional Epicovid-19BR, em três etapas, é um ato que agrava muito o desconhecimento da real situação. A projeção mais recente disponível é a resultante da terceira etapa da Epicovid-19BR, divulgada no dia 26 de junho, que indica 5.1 vezes mais contaminados do que os oficialmente diagnosticados (naquela data, 2.9% da população). Mantendo-se a proporção da última pesquisa, estaríamos hoje com 14,8 milhões de contaminados, ou 6,9% da população do país. Considerando a intenção repetida 32 vezes por Bolsonaro de atingir 70% da população para garantir a alegada “imunidade de rebanho” (segundo levantamento da agência Aos Fatos), este número teria que crescer ainda mais 10,1 vezes, com o que se chegaria mantendo a mesma relação, a mais de um milhão mortes, sem considerar o acréscimo decorrente do colapso do sistema de saúde nem os óbitos não registrados. Mantendo persistentemente uma média superior a 1.000 mortes diárias, seguimos com elevado ritmo de expansão do número absoluto de mortes (17.5% em 14 dias) e de casos (28,3.% em 14 dias). O Brasil já chega a 13,7% das mortes mundiais, com 458 mortes por milhão de habitantes, ultrapassa em cinco vezes a média mundial (91.1). Entre os 15 países mais populosos do mundo, dez tem menos de 30 mortes por milhão: Paquistão, Índia, Filipinas, Indonésia, Bangladesh, Japão, Nigéria, China, Etiópia e Vietnã, sendo que os cinco últimos têm menos de 10 mortes por milhão.

Em números absolutos, apesar da baixíssima testagem, o Brasil é o terceiro país com maior número absoluto de novos casos registrados nos últimos 14 dias, ultrapassado pelos Estados Unidos (que tem um total de testes dez vezes maior) e Índia. Dos 3.598.223 novos casos registrados no período, 17,5% ocorreram no Brasil (630.890) e 24.2% nos Estados Unidos (871.530). Portanto, dois países que juntos não chegam a 7% da população mundial, tiveram de 41.7% dos novos casos. A Índia teve 723.555 novos casos (20,1% do total mundial). Dentre os três países com maior número de casos ativos, a Índia teve o maior crescimento (54%), seguida pelo Brasil (24%, enquanto os Estados Unidos tiveram uma pequena redução (-7%). Os dois países que vêm na sequência com mais casos – Colômbia e África do Sul – passam a constar no quadro dos 15 países com mais mortes, ao terem ultrapassado Canadá e Alemanha. A Colômbia segue em expansão (+42%), enquanto a África do Sul (-21%) teve redução. Hoje são já cinco países latino-americanos entre os 15 com maior número de mortes (Brasil, México, Peru, Chile e Colômbia). O caso do Peru é trágico: Sendo o quinto país do mundo em mortes por milhão de habitantes (613, atrás apenas de San Marino, Bélgica, Andorra e Reino Unido), o Peru chegou a ter uma moderada redução por algumas semanas, mas desde metade de julho os efeitos da reabertura econômica tem provocado uma intensa aceleração, chegando a 43% de aumento. A piora na Espanha é ainda mais intensa, com aumento de 154% e passando a mais de 38 mil casos no período, assim como a da Bélgica (+199%). O crescimento do número de casos nestes três países já tão terrivelmente assolados pela pandemia deveria ser entendido como enfática demonstração de que altos níveis de contaminação não protegem contra a retomada da pandemia.

A China, que há tempos deixou de constar no quadro dos quinze países com mais mortes, foi ultrapassada por países como Holanda, Turquia e Suécia (que tem uma população 140 vezes menor), Equador, Paquistão, África do Sul, Indonésia, Egito e Iraque, e hoje é apenas o 26º país em número absoluto de mortes e o 165º em mortes por milhão de habitantes. O país não registra morte há 91 dias, embora venha enfrentando novos focos na região de Pequim, estando com 810 casos ativos.

A maior parte dos países vem elevando expressivamente a testagem e atingindo ou passando a relação de 20 testes realizados por resultado positivo indicada pela OMS como indicadora de um bom controle. O Brasil teve seu índice atualizado no wordometers para 62.664 testes por milhão (há uma semana estava em 23.093), mas não encontramos confirmação para este número, que não confere com o divulgado em outros sites de acompanhamento. (2) Apenas o México, com 2.3 testes por positivo, aparece com número inferior ao do Brasil (4.7), que é quatro vezes inferior ao mínimo indicado pela OMS. Na realidade, a situação brasileira é ainda pior, pois parte destes testes são testes rápidos, inteiramente inadequados para diagnóstico e que sequer deveriam ser contabilizados.

O elevado ritmo de crescimento das mortes no Brasil, associado a um ritmo de crescimento do número de casos ainda maior, indica um rápido e intenso agravamento do quadro nacional. Já chegando a 97.418 mortes oficializadas, a ausência de uma política nacional de contenção é expressão de uma política criminosa e genocida. Não existe nenhum indicador racional que permita esperar uma redução expressiva do assustador patamar de mortes diárias em curto ou médio prazo sem uma política nacional de contenção. As medidas pontuais e regionalizadas de fechamento temporário, tomadas apenas na iminência do colapso do sistema de saúde, já se mostravam fragmentadas e insuficientes. Mas mesmo estas medidas vêm sendo abandonadas, e, pior, substituídas por propostas absurdas como a de retomada de aulas presenciais. Torna-se imprescindível um lockdown nacionalmente unificado, com medidas de garantia de renda emergencial e que dure o tempo necessário para a efetiva contenção. Ainda que pareça custoso, é a única alternativa real, e menos dispendioso do que manter a situação de instabilidade e sucessivas aberturas e fechamentos. Infelizmente, desde o início da pandemia nosso isolamento social vem sendo relaxado e sabotado pelas autoridades federais, com cumplicidade explícita do grande empresariado, produzindo a conjunção trágica entre altas taxas de crescimento das mortes e dos novos casos, em um cenário de baixa testagem e subnotificação generalizada.

Atualmente os Estados Unidos e a América Latina (em especial Brasil, México, Colômbia, Peru, Chile, Argentina, Bolívia, Equador, República Dominicana) são os principais centros mundiais da pandemia, seguidos pelo Sul da Ásia (Índia, Paquistão, Bangladesh, Filipinas), Ásia Central (Quirguistão, Casaquistão) e Oriente Médio (Arábia Saudita, Irã, Iraque, Israel, Kuwait, Bahrein, Omã) e parte da África (especialmente África do Sul, Egito e Nigéria).

De outro lado, há um crescente número de países com a situação estabilizada e que se encontram com menos de mil casos ativos, em todos os continentes, como Ásia (China, Coréia do Sul, Sri Lanka, Síria, Iêmem, Chipre, Vietnã, Malásia, Geórgia, Tailândia, Jordânia, Mongólia, Myamar, Camboja, Taiwan e Butão), África (Mauritânia, Ruanda, Bostswana, Guiné, Angola, Cabo Verde, Mali, Gâmbia, Libéria, Serra Leoa, Tanzânia, Lesotho, Tunísia, Togo, Benin, Mayotte, São Tomé e Príncipe, Uganda, Burkina Faso, Burundi, Reunião, Eritréia, Chad, Djibouti, Niger, Comoros), América do Sul (Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Uruguai), América Central e Caribe (Bahamas, Cuba, Martinica, Jamaica, Turks ans Caicos, Sint Maarten, Guadalupe, Trinidad e Tobago, Barbados, Belize, Aruba, Antiga e Barbuda e Granadinas,), Europa (Croácia, Eslováquia, Hungria, Dinamarca, Eslovênia, Lituânia, Noruega, Letônia, Malta, Finlândia, Estônia, Andorra, Ilhas Faroe, Islândia e Mônaco) e Oceania (Nova Zelândia e Papua Nova Guiné.). São países de distintas situações econômicas e sociais, mas que vêm tendo êxito na contenção da pandemia. Incluem-se entre eles países de expressiva população: 25 entre os 90 países com mais de dez milhões de habitantes tem menos de 1.000 casos ativos, incluindo-se o país mais populoso do mundo.

Alguns países e territórios tem situação ainda melhor, com menos de dez casos ativos: Fiji, Timor Leste, Saint Martin, Caribe Holandês, Gibraltar, Bermuda, Lieschtenstein, Curaçao, Saint Pierre, Santa Lúcia, Polinésia Francesa, St. Kittis e Nevis, Laos (7,3 milhões de habitantes), Monserat, Granada, Ilhas Virgens Britânicas, Saara Ocidental e St. Barth.

Em todos os continentes existem países ou territórios que já não tem nenhum caso ativo: dentre 213 países e territórios considerados no wordometers, 11 estão nesta situação: Ilhas Maurício, Macao, Brunei, Nova Caledônia, Ilha de Man, Dominica, Groenlândia, Ilhas Cayman, San Marino, Anguilla, Malvinas e Vaticano. O Vietnã, com 97 milhões de habitantes e uma política de contenção exemplar, registrou registro oito óbitos e 628 casos ativos.

É imprescindível e urgente reduzir o ritmo de crescimento do número de novos casos, para em consequência reduzir o número de mortes, pois a manutenção dos índices atuais projeta um cenário que é pior a cada dia e só vai piorar se o processo de reabertura tiver continuidade na situação atual. Se por hipótese considerarmos que este ritmo se mantenha o mesmo (crescimento de 17,5% a cada 14 dias), o número de mortes oficializadas no Brasil atingiria 114.466 em 19/8, 134.497 em 2/9 e 158.034 em 12/9. Não se trata de uma previsão, mas de projeção do que pode ocorrer caso não sejamos capazes de diminuir o atual ritmo de forma muito mais vigorosa. Para isto, são inadiáveis medidas para ampliação do nível de isolamento individual, associadas à garantia de efetivas condições de sobrevivência ao conjunto dos trabalhadores, em especial aos mais vulneráveis.

 

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NOTAS

1 – Os números são ligeiramente distintos dos do wordometers reunidos no quadro porque o endcoronavirus atualiza os dados a cada 6 horas. https://www.endcoronavirus.org/green-zone-rankings#countries

2 – Por esta razão, deixamos este número entre parênteses no quadro. Pelos dados divulgados no CoronavirusBra1, o número seria de 38.372. https://coronavirusbra1.github.io/