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Exército e milícias, a balbúrdia armada

Reprodução/EB em Revista

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por Gabriel Kanaan e Danilo Georges

Como apontamos em “Tensionamentos entre os militares e a familícia olavista”, as diferenças entre as Forças Armadas e o bolsonarismo parecem mais de forma do que de conteúdo, visto que compartilham o mesmo horizonte de varrer do mapa comunistas e “identitaristas”. E, como lembramos em “Dos esquadrões da morte às milícias”, as Forças Armadas estimularam, durante a ditadura empresarial militar, a atuação dos esquadrões da morte, protótipos das milícias contemporâneas. Hoje, a partir da defesa explícita dos bandos milicianos, Bolsonaro parece ter garantido um “consenso” a esses grupos e dado a eles uma certa direção política. Com isso, mesmo estando as Forças Armadas, o bolsonarismo e as milícias entrelaçados, observamos, a partir dessa mobilização política de bandos armados pelo bolsonarismo, algumas tensões entre a tendência autocrática dos militares, que atua para abafar as mobilizações sociais, e a tendência protofascista do bolsonarismo, que vive da mobilização da sua base social – fundamentalmente composta por parcela do baixo escalão das Forças Armadas, polícias, milícias e setores agregados. 

Bolsonaro sustenta seu governo com uma agenda de pautas que mobilizam constantemente essa sua base social fundamental. Ele age como um sindicalista militar, subvertendo a hierarquia das Forças Armadas ao mobilizar essa base com pautas máximas para induzir os generais a tomarem posicionamentos mais radicais, com o risco de se descolarem de suas bases. A convocação de atos pela intervenção militar para a frente dos quartéis é o exemplo mais claro dessa tática de pressão. 

Os militares acompanham a escalada, mas ao menos uma parcela deles tenta frear a expansão dos bandos milicianos, que corroem o seu monopólio sobre o uso da força, e a insubordinação crescente das polícias com a hierarquia militar. É bom lembrar como tais tensões não são de hoje, como evidencia a criação da Inspetoria Geral de Polícias Militares dentro do Exército, em 1967, uma tentativa das Forças Armadas de controlar as tensões com as polícias. Com a ocupação em massa de cargos no Estado no governo Bolsonaro pelos militares, intensificaram-se contradições das hierarquias militares, pois patentes mais altas podem ficar subordinadas a patentes mais baixas na hierarquia do governo.

A corrosão da hierarquia militar nos quartéis e demais instituições militares é um dos principais problemas que a milícia impõe à democracia e que tensiona o Exército. A origem dessa corrosão está na venda da segurança privada, que inicia um processo de degradação da hierarquia no interior das instituições. O sociólogo Luiz Eduardo Soares, na página 39 do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) sobre a atuação das milícias, exemplifica essa relação: “na segunda-feira, o superior hierárquico impõe obediência aos inferiores hierárquicos, o coronel determina ao soldado que cumpra determinados procedimentos, determinadas ações. Na terça-feira, são sócios do ilícito; na quarta, voltam a se encontrar no batalhão ou na delegacia. De que modo se reconhecem mutuamente? De que forma passam a redefinir suas relações? Para ele, é evidente que isso acaba corroendo a relação hierárquica institucional”. 

É nessa corrosão que Bolsonaro tende a se apoiar para tensionar governadores, militares e as instituições. Na lógica da milicialização da segurança pública qualquer soldado pode liderar insurreições. Vale recordar, que o próprio capitão Bolsonaro desafiou em 1986 a hierarquia do exército ao planejar explodir bombas em quartéis.  

Tensões entre os bandos armados

Exemplo emblemático de quebra de hierarquias pelas polícias ocorreu em outubro de 2019, na formatura da Polícia Militar de São Paulo, quando o chefe da Polícia, o governador João Doria, foi vaiado, enquanto Bolsonaro foi aclamado. Em maio de 2020, policiais militares de São Paulo deram mais um passo e bateram continência aos que se manifestavam pelo Fora Dória. Como observou o GEDES, os insubordinados podem dizer que a quebra da hierarquia é exemplo dos próprios comandantes, como Villas Bôas, que protegeu Mourão das suas insubordinações contra o poder civil.

Outro caso emblemático das tensões entre protofascistas e autocráticos foi o motim policial no Ceará. Em fevereiro deste ano, policiais cearenses se amotinaram contra o governo de Camilo Santana (PT) exigindo aumento salarial. Ocuparam os batalhões da PM, queimaram veículos e balearam o senador Cid Gomes quando ele tentou desocupar um quartel com uma retroescavadeira. O capitão Wagner, capitão da PM do Ceará, deputado federal (PROS) e favorito para as eleições para a prefeitura de Fortaleza deste ano, foi ao Estado apoiar o movimento, recrutando para sua comitiva o deputado federal capitão (da PM do Amazonas) Alberto Neto e a deputada federal (PSL) major (da PM do Rio de Janeiro) Fabiana. A política do capitão Wagner sempre foi feita nas trincheiras dos motins e nas barricadas de mobilizações de rua: em 2011 e 2012, liderou as greves da PM cearense, e em junho de 2013, insuflou o que via como protestos contra a corrupção. O capitão também é investigado por chefiar milícias no Estado.

Como apontou o GEDES, as Forças Armadas pressionaram para intervir e acabar com o exemplo de insubordinação e quebra de hierarquias (o comandante das PM’s são os/as governadores/as). Mas Bolsonaro segurou até onde pôde a autorização para os militares intervirem, pois viu o motim como uma oportunidade de comprovar sua capacidade de dirigir as polícias, criar as condições para nacionalizar o modelo miliciano carioca, e de quebra desestabilizar um governo do PT. O presidente estimulou o motim com sua omissão e atacou a imprensa por tratar o que chamou de “greve” como motim. O ex-ministro da Justiça Sérgio Moro seguiu a linha de Bolsonaro e, quando visitou o Ceará, disse que não havia desordem e que os policiais deveriam ser valorizados. O coronel comandante da Força Nacional de Segurança Pública, ligada ao Ministério da Justiça, Aginaldo de Oliveira, chegou a elogiar a atuação dos amotinados. Como disse o, “se já havia dúvidas no Alto Comando sobre as relações carnais entre a família do presidente e as forças de segurança, estatais ou não, o episódio ligou a luz vermelha”.

Exemplo da tentativa de parcela das Forças Armadas em frear a expansão das milícias foi a elaboração de três portarias pelo Comando Logístico do Exército com regras para facilitar o rastreamento de armas e munição. As portarias foram uma ação desse setor do Exército para conter a expansão das milícias. Mas dia 17 de abril, Moro e Azevedo, a mando do presidente, assinaram a revogação das portarias. Bolsonaro justificou a revogação, uma medida nitidamente pró-milícias, como resultado da “pressão feita pela categoria dos caçadores, atiradores e colecionadores”. Mas como Bolsonaro disse na reunião ministerial de 22 de abril, o objetivo era armar a população para que ela enfrentasse as decisões dos governadores e prefeitos.

Há indícios de tensões entre as Forças Armadas e a Polícia Federal inclusive pelo controle do Palácio do Planalto. Foi por atritos com o Secretário da Presidência Jorge Oliveira que o general Santa Rosa e seu grupo de generais saíram da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) do governo (subordinada à Secretaria da Presidência). Como Oliveira é policial militar e intimamente ligado à familícia, é possível que um dos elementos do desentendimento esteja relacionado a atritos por conta do general Santa Rosa estar sob o comando de um mero policial (na hierarquia, as polícias estão subordinadas às FFAA). A saída do general Jesus Corrêa do Incra e suas acusações contra facções criminosas que operam no órgão, como apontamos em “Tensionamentos entre os militares e a familícia olavista”, também traz indícios de conflitos entre forças organizadas e hierárquicas com forças difusas, policiais ou milicianas

Devemos estar atentos também às fissuras abertas entre Bolsonaro e os praças, criadas quando o presidente apresentou projeto de reestruturação da carreira militar que favorece o alto escalão e prejudica a baixa oficialidade, aumentando a distância entre as hierarquias. Embora a esquerda deva tentar disputar as brechas que se abrem entre as Forças, como fizeram os deputados federais do PSOL Marcelo Freixo e Glauber Braga, infelizmente os bolsonaristas dificilmente darão o braço a torcer, e Bolsonaro já está tomando medidas paliativas para se reconciliar com esses praças, como aumento de diárias e abertura de novos empregos nas escolas cívico-militares, no INSS, na recém criada estatal NAV Brasil e, agora na pandemia, com os coronavouchers para os militares

Sem dúvida, as Forças Armadas sabiam das ligações de Bolsonaro com as milícias na época das eleições. Na hipótese do GEDES, elas decidiram ocupar o governo porque tinham medo de que se não entrassem, o vácuo no poder pudesse ser ocupado por forças paramilitares.

Elos entre os bandos armados

Essa relação tensionada também é construída sobre pontos de comunhão. O comando das tropas da MINUSTAH, a Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti, pelas Forças Armadas brasileiras aponta para alguns. As principais ações que os comandantes brasileiros dirigiram no Haiti foram ações de policiamento, como contenção de protestos favoráveis ao presidente democraticamente eleito e deposto com a participação dos EUA. Augusto Heleno ficou conhecido pelo massacre na favela Cité Soleil, onde comandou as tropas da operação “Punho de Ferro”, que assassinou 63 pessoas. Ao todo, foram mais de 8 mil assassinatos e 2 mil denúncias de abuso sexual. 

A semelhança com as ações das polícias nas favelas brasileiras não é coincidência. Já foram realizadas diversas operações conjuntas de soldados da MINUSTAH com as polícias militares, e mesmo equipamentos de guerra usados no Haiti foram enviados para a polícia brasileira. Entre 05 de abril de 2014 e 30 de junho de 2015, as forças armadas ocuparam por 14 meses as favelas da Maré, localizada na cidade do Rio de Janeiro, com a finalidade de implantação da Unidade de Polícia Pacificadora. A atuação dos militares — comandada pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e chamada de Operação São Francisco — foi regulada por uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO), expedida pela Presidência da República. Esta medida concedeu poder de polícia às tropas em uma área de cerca de 10 km², autorizando os militares a fazer patrulhamentos, revistas e prisões em flagrante. O Exército representou mais de 80% do efetivo presente na Maré. Na esteira dos mega eventos ocorreu a policialização do exército.

Em 2018, o então interventor federal no Rio de Janeiro, Braga Netto, presenteou a Polícia Militar fluminense com três “Urutus”, tanques de guerra blindados utilizados pelas tropas no Haiti. Já em 2010, os Urutus eram usados nas favelas cariocas pelo Polícia Militar, apoiada pelos soldados destacados pelo ministro da Defesa de Lula, Nelson Jobim, para “combater o tráfico de drogas” nas favelas. E em 2006, o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) do Mato Grosso realizava os treinamentos dos militares que iriam servir no Haiti.

Segundo o ex-comandante do BOPE do Rio de Janeiro Pinheiro Neto, o BOPE e a MINUSTAH estavam em contato desde 2005. Em 2007, as tropas da MINUSTAH foram ao Rio para conhecer o trabalho do BOPE, e no ano seguinte o BOPE retribuiu a visita e foi ao Haiti trocar experiências com as forças militares. Pinheiro Neto, que começou sua carreira na Força Aérea Brasileira, recebeu a medalha Tiradentes de Flávio Bolsonaro em 2007, virou comandante da PM do Rio em 2011 e foi substituído em 2015 quando era investigado em CPI da ALERJ por desvio de armas. 

Uma das conclusões dessa CPI é que fuzis e armamento pesado não chegam nas mãos de milicianos e do crime organizado pelas fronteiras, mas são majoritariamente armas desviadas do paiol do Exército e de outros órgãos de segurança pública. Em 2011, a Polícia Federal do Rio de Janeiro realizou a operação Guilhotina, que identificou quatro grupos de policiais que atuavam explorando o chamado “espólio de guerra”, ou seja, a venda de armas apreendidas para os próprios criminosos. Foi identificado o  envolvimento desses policiais civis com  grupos de milicianos e todos os crimes a eles relacionados. Em síntese: o tráfico de armas aparece como um forte elo entre militares e milicianos e policiais e milicianos.

Capital criminal e empreendedorismo miliciano

Pinheiro Neto, o ex-comandante do BOPE, também era chefe da SDS Sistemas de Defesa e Segurança Ltda. e usava as instalações do BOPE para dar cursos de gestão de segurança a empresas privadas. Esse caso é simbólico do entrelaçamento de todos esses bandos armados com o empreendedorismo bárbaro de mercantilização da segurança, o qual tem na sua ponta as milícias.

Há pelo menos duas décadas a segurança privada tornou-se um item indispensável no orçamento de empresas, empresários e famílias ricas. Irrigada pelo medo que assombra as cidades, a segurança privada tornou-se um negócio altamente lucrativo e disputado. A imensa maioria das empresas, legais ou clandestinas, e dos profissionais nesse mercado é constituída por policiais, ex-policiais, integrantes e ex-integrantes das Forças Armadas. Hoje, de acordo com denúncias feitas ao Disque Milícias, a cobrança de segurança, em muitas áreas, tem uma graduação: se o morador tem carro ou moto, o valor é maior. Em geral, a taxa fica em torno de R$ 15 a R$ 20 e quando não é paga diretamente na Associação de Moradores, há um cobrador que circula de porta em porta. O grande diferencial da segurança provida pelas milícias em relação à segurança privada, apesar de ambas estarem sob a responsabilidade de ex-policiais e de policiais em seus horários de folga, é que as milícias atuam no espaço público, nas ruas, assumindo o papel que deveria ser do Estado formal. Instalam portões, cancelas e guaritas, realizam rondas diárias uniformizados, utilizando rádios de comunicação e armamento pesado. Em algumas comunidades, impõem até o toque de recolher. Parece ser essa uma das mais antigas funções milicianas que foi se desenvolvendo nas últimas décadas.

Milicianos agem a partir da coerção, eixo indispensável para manter o controle. No caso da venda de segurança privada, a iniciativa parte dos próprios milicianos, que extorquem os moradores e comerciantes para terem segurança.  Em suma:  oferecem proteção paga contra eles mesmos, uma ação mafiosa. Aqueles que se recusam a pagar sofrem represálias, tais como: assaltos, ameaças, agressões, espancamento, tortura, expulsão da comunidade e até mesmo a morte.

Luiz Soares, no já citado relatório da CPI das milícias, declarou: “considero que a origem das milícias reside na segurança privada informal e ilegal, quase toda ela a cargo de membros e ex-membros da área de segurança pública (…) a privatização do agente público é a ponta de uma escala em que estão inseridas às privatizações do Estado, da segurança pública, da polícia e, por último, do próprio policial”.

Diante desse quadro de mercantilização da segurança, criam-se  as condições para que a prioridade não seja mais de servir ao público. É nesse sentido que ocorre a perpetuação e a expansão de diversas redes do capital/criminal capitaneadas na venda de segurança privada por agentes do Estado que  inclusive vendem seus serviços  para criminosos e pessoas ligadas à contravenção. 

A policialização da existência

Essas ligações apontam para uma teia muito mais ampla e complexa que envolve as milícias não só com as polícias, mas também com os próprios militares. Recentemente, a prisão de um soldado do Exército que atuava em uma milícia carioca é representativa desse entrelaçamento. Isso nos leva a outra pergunta formulada por Hoeveler e Georges: o processo de milicialização da política nacional e de controle sobre produtos e serviços providos para as populações periféricas necessita de Bolsonaro e de seu clã para avançar? Ou compõe um projeto de sociabilidade burguesa mais ampla, que emergiu no contexto de crise do capitalismo aberta em 2008, e é ancorado na necropolítica como método central de regulação social? Como tem argumentado Virgínia Fontes, vivemos um processo cada vez mais exacerbado de policialização da existência, que afeta principalmente as vidas periféricas com a intensificação do processo de mercantilização da segurança e aumento das milícias, mas também com a policialização das próprias escolas. 

Associadas às polícias e aos militares e enraizadas no sistema político e econômico, as milícias são uma das expressões da necropolítica. Mas o projeto necropolítico não se resume às milícias, que por si só não tem projeto político próprio. Por isso, observamos mais relações e tensões entre os bandos armados clandestinos e oficiais do que uma possível “autonomização” das milícias. O projeto necropolítico, da mesma forma, não se resume ao líder dessas massas fascistas. Analisando essa relação no sentido inverso, percebemos a ascensão de Bolsonaro como resultado do processo mais amplo de policialização da existência.