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Especiais

Salvador para a maioria

Jean Montezuma* e Priscila Costa**, de Salvador, BA
Marcos Musse

Hilton (PSOL)

Nós somos a maioria. Eu, você, e os incontáveis corpos que se amontoam nos ônibus e vagões de metrô abarrotados. Os que vivem nas encostas e não dormem quando chove, ou os que mesmo quando dormem, tem o sono sobressaltado pela violência que, muitas vezes, vem do próprio Estado por meio da polícia. Somos os que sempre madrugaram nas filas das unidades de saúde para marcar um exame ou consulta numa data a perder de vista. Os mesmos que hoje, em 2020, amanhecem nas filas da Caixa Econômica, na esperança de conseguir ter acesso as parcelas da renda mínima emergencial aprovada pelo Congresso. 

Nós somos a maioria que trabalha, que às custas de sangue e suor fazem girar as pás do moinho da economia. Somos nós também a maioria que financia a União, os Estados e municípios, pois todo nosso sistema tributário se apoia nas costas de quem vive de salário, e não de quem possui as grandes fortunas. Em Salvador, bem como em todas as demais cidades, somos também quem dá vida as suas ruas, praças, festejos e cultura. Ainda que, na maioria das ocasiões, sejamos sempre barrados no baile. 

Por tudo isso e muito mais, o mínimo que devemos exigir é que todo o potencial econômico, criativo e construtivo da nossa cidade esteja voltado para nós. Esteja a serviço de implodir as imensas desigualdades econômicas, sociais e raciais, ao contrário de seguir construindo muros que nos dividem em duas cidades. Gestão após gestão, ano após ano, Salvador sempre foi governada pela mesma elite, o “1%” que trata a prefeitura como balcão de negócios para manter seus privilégios. Portanto, a nós socialistas, o único ponto de partida possível, apoiados em nosso legado de séculos de resistência negra e popular, é uma ruptura radical com essa lógica. A única maneira de salvar vidas, proteger direitos sociais, combater o desemprego, a fome e o desalento, é um governo dos 99%. Ou seja, da maioria para a maioria.

A pandemia reafirmou nossas desigualdades

Uma mulher negra jovem que, com seus 30 ou 35 anos, precisou sair de casa todo dia, pegou transporte público, seguiu trabalhando sem ter garantias de higienização no local de trabalho e totalmente descoberta de direitos e proteção social; teve muito mais chance de contrair o vírus que um homem branco rico com mais de 60 anos. Enquanto o segundo, no caso de contrair a doença, pode cumprir a quarentena numa casa bem estruturada, devido a sua condição econômica a primeira personagem divide seu domicílio, que muitas vezes tem apenas 1 ou 2 cômodos, com várias outras pessoas, tornando inviável os procedimentos exigidos numa quarentena. E se o quadro piorar, quem vai conseguir acesso a leito, UTI e respirador? E quem fatalmente poderá morrer na fila da regulação?

À despeito de o vírus não olhar a quem contamina, sendo “democrático”, as nossas conhecidas desigualdades estruturais têm determinado quem tem maior exposição ao contágio e, quando doente, quem tem mais chances de morrer. E tudo isso foi e segue sendo potencializado pelo negacionismo do governo federal. Jair Bolsonaro é o maior negacionista mundial do Covid-19, e vem dia após dia agindo em favor do vírus: Combateu desde sempre o isolamento social, receitou remédio comprovadamente ineficaz e perigoso, ameaçou médicos, cientistas, pesquisadores, governadores, prefeitos, o judiciário, o congresso, e até seus próprios ministros. Todo mundo que se colocou entre ele e a sua estratégia genocida. Os números desse crime já superaram a barreira dos 2,5 milhões de contaminados e mais de 90 mil vidas perdidas.

Nos Estados e municípios, apesar da maioria dos governantes se afastarem do discurso negacionista, passamos longe de medidas radicais de contenção do contágio e de proteção social. O isolamento social, mais eficiente medida para salvar vidas, foi sendo sabotado por governos que foram deixando a população pobre trabalhadora diante da dura escolha: ficar em casa e morrer de fome? Ou sair para ganhar o pão me expondo ao contágio? Agora nem esse dilema existe mais, pois a plena e precipitada reabertura dos comércios e serviços riscou do mapa o que restava das medidas de isolamento social. 

Cidade de negócios x defesa da vida

O recente plano de reabertura de Salvador revelou a contradição imposta pela pandemia ao prefeito ACM Neto. Neto buscou se afastar do discurso bolsonarista, mas na dividida entre a defesa da vida e seu projeto de “cidade dos negócios”, no final acabou prevalecendo uma precipitada reabertura. A pandemia não foi controlada, não está ocorrendo uma desmobilização de leitos por conta de uma baixa procura. Pelo contrário, a diminuição da taxa de ocupação só está ocorrendo porque a prefeitura e governo do Estado seguem a maratona da criação de novos leitos. Contudo, se há um limite para criação de novos leitos, com a plena circulação de pessoas nas ruas não haverá limite para transmissão do vírus. Maior circulação de pessoas, mais aglomeração, maior transmissão do Covid-19. O preço da abertura de shoppings e demais serviços não essenciais será cobrado em vidas. 

Essa decisão de ACM Neto condiz com a sua trajetória política e com o balanço de seus dois mandatos à frente da prefeitura. Existe a Salvador da propaganda publicitária oficial, onde todos são felizes, onde a prefeitura atende a todos com igual apreço, não importando classe, raça e endereço. E há a Salvador real, aquela na qual a gestão do atual prefeito nunca se comprometeu a encarar históricas e estruturais desigualdades. Nessa Salvador sem maquiagem, as chuvas quando veem levam casas e vidas, o transporte público segue controlado por uma máfia que transforma nosso direito em serviço (péssimo por sinal) e cobra bem caro por isso. Perverter direito em serviço, essa sim foi uma lógica que a prefeitura de ACM Neto espraiou por todas áreas. 

Direitos promovem inclusão, emprego e aumentam a renda. Educação e saúde de qualidade, por exemplo, geram desenvolvimento e melhoria nas condições de vida. Já a lógica de serviços, de mãos dadas com uma gestão privatizante, chega no máximo ao limite de um assistencialismo efêmero e passageiro. O que nós, a maioria, exigimos é a promoção de direitos. A candidatura de Bruno Reis não tem esse compromisso. O que o afilhado político de ACM Neto projeta para o futuro é uma cidade onde quem pode pagar a banda, seguirá escolhendo a música. Nessa lógica liberal da cidade dos negócios quem sempre acaba dançando somos nós. É por isso que precisamos mudar esse disco, e acabar com essa festa estranha de gente esquisita.

O PT segue buscando o futuro pelo retrovisor

Na Bahia e no Brasil, o PT foi até aqui incapaz de tirar lições de fundo do golpe de 2016. Quem segue governando apertando a mão de coronéis da velha política como Otto Alencar e Ângelo Coronel (PSD), e João Leão (PP), acaba por se comprometer não apenas com o “toma lá, da cá” do aluguel de cargos e secretarias; compromete principalmente as suas decisões políticas. Afinal, são inconciliáveis os interesses desses representantes da minoria privilegiada e os nossos, da maioria, para a qual um Partido dos Trabalhadores deveria governar. 

A despeito da fragmentação de candidaturas da sua base aliada no governo estadual, o que inclui a aliança do PCdoB de Olívia Santana com o PP (partido que é base do governo Bolsonaro), o PT concorrerá nas eleições com a Major Denice, uma oficial da polícia militar reconhecida pelo seu comando à frente da Ronda Maria da Penha. O que há de mais inovador nessa candidatura, que é justamente o simbolismo e representatividade de uma mulher negra concorrendo a prefeitura de Salvador, carrega consigo inquietantes contradições que mais uma vez se chocam com nossas estruturantes desigualdades. 

Como não entrelaçar o racismo estrutural a violência e, dentro disso, o papel fundamental da instituição policial? E como não pensar que mesmo durante a pandemia os índices de violência policial só aumentaram, e dentro desse aumento a polícia baiana alcançou a liderança no sinistro ranking de letalidade entre as polícias do Brasil? A Instituição Polícia Militar, na Bahia e no Brasil, surgiu para proteger os privilégios da minoria rica, do 1% da sociedade. Quanto aos demais 99%, é de sua natureza colocar um alvo nas costas e rotular como suspeito até que se prove o contrário, especialmente os negros e negras. 

Um estudo apresentado pela Defensoria pública do Estado mostrou que 99% das prisões em flagrante realizadas em Salvador entre 2017 e 2018 foram de pessoas negras com renda de até 2 salários mínimos. Raça e classe convergem na delimitação do “inimigo público n°1”. A violência contra jovens negros da periferia incluí, também, a questão de gênero, que precisa ser compreendida em sua totalidade. São as mulheres negras que vivem o luto e a luta para tentar proteger a vida de seus filhos da violência policial. Num ano onde, além da pandemia, também foi marcante o levante antirracista que começou nos EUA e teve eco na Europa e no Brasil, como ficará o partido dos trabalhadores nesse tema crucial? 

A candidatura da Major Denice vem para coroar ou questionar essa lógica? Vem para questionar ou relativizar o seu rastro de tragédias que promoveu traumas recentes como a inesquecível chacina do Cabula? Para defender, em contraposição a cidade de negócios, uma cidade de direitos -sendo essa cidade Salvador- o primeiro e decisivo passo é bater de frente com o racismo estrutural e institucional. No entanto, embora seja mulher e negra a candidata, a estrela vermelha que agora se ostenta no peito, vem abotoada numa farda militar.

O que o PSOL oferece é coragem

O crescimento do PSOL se dá passo à passo com o engajamento desse partido nas lutas sociais. O PSOL, que foi oposição de esquerda aos governos petistas, não mediu esforços para lutar no Congresso e, principalmente, nas ruas contra o golpe. Seguimos nas ruas contra os ataques de Temer e não nos retiramos delas durante o governo Bolsonaro. Mesmo sob a pandemia, onde o isolamento social era recomendado, nossa militância assumiu o risco de estar na rua seja para organizar ações de solidariedade de classe, seja para cerrar fileiras com as torcidas antifascistas e a juventude negra que foi pra rua protestar contra a violência policial e as ameaças as liberdades democráticas.

A candidatura de Hilton Coelho para a prefeitura simboliza esse partido aguerrido, com uma militância combativa que atua nos movimentos sociais em sua vasta pluralidade de agendas e bandeiras. Não à toa, os movimentos sociais encontram no único mandato do PSOL na Assembleia Legislativa sempre um ponto de apoio, um parceiro para as suas lutas. Salvador precisa de uma prefeitura que ponha um freio na marcha de privatização, e que abandone a lógica de “cidade dos negócios” em favor da ampliação e promoção de direitos. Uma prefeitura que coloque a máquina pública para dar casa a quem não tem teto, creche e escola para quem precisa estudar, saúde com tratamento humanizado, segurança sem a lógica de guerra aos pobres e negros, proteção e acolhimento social as mulheres vítimas de violência, emprego para quem está no desalento, e assistência social a quem precisa.

E é justamente por ser a coragem um sentimento coletivo, que o programa de uma Salvador para maioria deve ser construído coletivamente, por várias e diversas mãos. E deverá partir de algo muito concreto: A pandemia não ficou no passado. Ela ainda nos ronda e ameaça nossas vidas, em especial as vidas negras. Precisamos massificar a testagem e desse modo, em sintonia com os profissionais da saúde, coordenar com mais eficiência as políticas públicas. Com as mulheres à frente, um plano que combata a violência à mulher (que só cresceu durante a pandemia) que se inicie na prevenção, mas que também contemple ampliação de casas abrigo e outras medidas protetivas e de acolhimento social. Junto com os sindicatos, os movimentos populares e as comunidades, enfrentar a crise econômica colocando o orçamento público a serviço de um plano de geração de emprego e renda, rompendo com a lógica de priorizar os bolsos dos grandes empresários. É esse programa vivo que o PSOL se dispõe a construir, e que nós desde já colocamos o Esquerda Online como um espaço de socialização e divulgação dessas ideias.

As lições do golpe de 2016, a ascensão da extrema-direita bolsonarista em 2018, e agora os efeitos da pandemia, exigem da esquerda a capacidade de buscar o novo olhando para a frente, não pelo retrovisor. Não temos o direito de seguir confiando e fazendo alianças com aqueles que nos golpearam em 2016. Sem abdicar da unidade na luta com todos aqueles e aquelas que rejeitam a escalada autoritária de Bolsonaro; e seguindo na  defesa da mais ampla frente única dos partidos e movimentos da classe trabalhadora para lutar nas ruas por direitos sociais, o PSOL assume o compromisso de nessas eleições apresentar-se como uma alternativa de esquerda independente, e com um programa anticapitalista,  que irá expressar no debate eleitoral as vozes das diversas resistências dos movimentos sociais e populares.

*Historiador, militante da Resistência/PSOL e membro do Diretório Estadual do PSOL-BA.
**Jornalista, militantes da Resistência/PSOL e membro do Diretório Municipal do PSOL Salvador.