As redes sociais estão tomadas pela polêmica em torno da propaganda da empresa Natura para o Dia dos Pais usando a imagem de Thammy Miranda, homem transexual. Setores ligados ao movimento LGBT, o público da diversidade em geral e alguns segmentos de esquerda ou liberal progressistas entraram numa polêmica visceral sobre o significado dessa campanha. Antes de usar munição seja com uma ou com outra posição, vale considerar algumas questões.
Em primeiro lugar, a Natura é uma empresa bilionária, com valor de mercado em R$ 60 bilhões e receita líquida de R$ 14,4 bilhões em 2019 (sem a Avon), e ninguém que movimente somas assim brinca em serviço. Como marca bem-sucedida que é, obviamente está com uma equipe de publicitários à altura do desafio. E o desafio é aumentar o valor de sua marca, seguindo uma linha que muito lembra a velha Benetton. Na última quarta-feira, 29, as suas ações na bolsa tiveram uma alta de 6,73%, segundo o Estadão. E agora começamos a discussão: esse disparo no valor das ações é o resultado da campanha com Thammy. Mas ao colocar um homem trans na campanha foi gerada uma pesada reação preconceituosa, e para os setores ativistas e engajados isso não deve ficar sem resposta. Esse parece ser o elemento detonador de polêmicas e impulsionador de discussões e conflitos nas redes. Obviamente a necessidade de responder aos ataques preconceituosos está certo do ponto de vista político. Porém, antes de tirar tal conclusão, cabe uma pergunta. Por acaso alguém acredita que essa equipe de marketing não calculou a reação do público transfóbico (cujo núcleo duro se concentra no bolsonarismo)? Existem conceitos no terreno da indústria publicitária sobre como fazer as pessoas divulgarem sua marca por meio de repercussão de polêmicas, em vez de pagar diversas inserções em rádio e TV ao estilo anos 90. Trata-se de gerar mídia espontânea, ou divulgação sem patrocínio pago. Já é sabido que os algoritmos de inteligência artificial (IA) que organizam as publicações nas redes priorizam dar visibilidade para temas que geram debates acalorados, ou seja, a “TRETA” como estratégia de marketing digital. Desse modo, o número de visualizações aumenta consideravelmente posicionando a marca em constante evidência.
Em segundo lugar, consideremos a estratégia em si. Se as brigas e conflitos fazem parte do plano, como organizar isso numa estratégia de campanha eficiente? Ora, em um cenário sem o elemento bolsonarista abertamente transfóbico, setores de esquerda denunciariam a Natura por instrumentalizar a identidade transexual para lucrar em cima e reforçar a imagem da marca como uma “marca do bem”, ao melhor estilo contos de fadas do livre mercado. Essa denúncia geraria uma tensão entre a população identificada ou apoiadora da causa – que entre os publicitários é chamada de nicho de mercado. Sem o elemento bolsonarista nos cálculos, portanto, poderia haver uma tendência à divisão e ao afastamento da marca Natura por uma parcela desse “nicho de mercado”, enfraquecendo a campanha. O que fazer então? Considerando o cenário real, definido pela existência do setor altamente LGBTfóbico e com forte capacidade de intervenção nas mídias digitais, a equipe de publicitários previu a reação desse setor (que por sinal era bastante óbvia) e apostou nisso.
Chegamos ao cenário planejado pela estratégia de valorização da marca (o famoso conceito de branding): de um lado, temos a empresa que apoia a causa da diversidade, mas lucra com isso. De outro lado, os ataques transfóbicos da população bolsonarista (que não faz parte do target people, podendo até respingar na marca, mas como dano colateral menor). Assim temos que, para defender Thammy e a população LGBT, você reivindica a campanha, e consequentemente, a marca e a empresa, ao mesmo tempo se contrapondo ao bolsonarismo. Ou, você critica a empresa por usar a bandeira trans em benefício próprio e lucrar com a luta de um dos setores mais oprimidos da sociedade, mas corre o risco de abrir brecha para a crítica bolsonarista preconceituosa.
Qual o resultado desse aparente paradoxo? O próprio paradoxo é a resposta. A marca está blindada pela identidade transexual, ou seja, os conflitos ficam limitados aos públicos a quem a campanha se dirige direta e indiretamente e não transbordam para a empresa. Mas não só isso. Uma operação ideológica muito inteligente foi feita. Em meio a toda população que compõe a sigla LGBTQI+ e os apoiadores da causa é feita uma espécie de triagem política. O setor mais ligado à esquerda, por criticar a marca e a reificação da identidade trans, é afastado de um segmento que se identifica com um liberalismo progressista ao estilo Califórnia, que apoia diretamente ou não vê problemas no “empreendedorismo” dos oprimidos. Esse segmento foca em rebater o bolsonarismo e com isso, querendo ou não, tende a se aproximar da marca ou validá-la. Isso é parte do objetivo da campanha de marketing.
Jogado no meio desses dois polos, o “público-alvo” se vê dividido entre duas posições: a posição de adotar uma postura de ampla unidade ao estilo “todos juntos contra a transfobia”, e nesse caso a Natura se apresenta como uma aliada fiel. Dada a gravidade do preconceito e da violência que sofrem LGBTs no Brasil, faz muito sentido que impere um sentimento do tipo “todo apoio é bem-vindo”. Ou, a posição de se dividir em função de bandeiras que não estão imediatamente ligadas à causa, e que além disso aparentemente dividem o bloco contra os ataques bolsonaristas. Percebemos, então, a pano de fundo da estratégia, uma induzir uma clivagem por meio da campanha. Isso é nitidamente disputa ideológica, em sentido clássico, e não reconhecer esse fato é estar no mundo mágico do fetiche da mercadoria, onde tudo reluz como ouro e todos são felizes comprando, gastando e alcançando a própria plenitude por meio do consumo.
Em último lugar, Thammy concorreu pelo PP a vereador em 2016. Nessa época um dos ilustres filiados era Jair Messias Bolsonaro. Em 2018, Thammy também se recusou a apoiar o movimento #ELENÃO. Ou seja, transitou no mesmo terreno de onde estão vindo os ataques. Ao fim disso tudo, a empresa teve suas ações muito valorizadas na bolsa e consolida sua identidade como empresa ESG (na tradução, a sigla significa: empresas que adotam as melhores práticas ambientais, sociais e de governança). Thammy certamente recebeu um cachê muito alto, distanciando-o ainda mais da realidade daqueles e daquelas que estava “representando” na campanha. O ódio transfóbico ganhou alguma evidência, unificando um pouco mais o lado de lá e, do lado de cá, um conflito entre militantes, ativistas e apoiadores dos direitos de LGBTs que não parece considerar o sujeito político determinante do processo, a empresa. O resultado da estratégia de campanha se comprova um sucesso, para a Natura.
*Douglas S. Alves é professor de Ciência Política da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)
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