Publicado originalmente no site da ADUFC.
Inicio esta escrita agradecendo a provocação. Já tinha pensado na necessidade dela. Mas, estava adiando…. Chegou o momento.
Dia 11.03.2020. Saindo do Cariri para Fortaleza, cumprindo duas agendas lindas – Encontro de Mulheres da UECE e o de Mulheres do IFCE (12-13.março), culminando com Ato em memória da Marielle. Naquela ocasião, já sabíamos do perigo que estava por vir para o Brasil. Foi importante, pois tivemos oportunidade de nos fortalecer, de estar juntas, antes do isolamento. Já não foi possível o Ato de Rua de 14 de março, 2 anos sem Marielle. Ela, assim mesmo, nos reuniu, quando realizamos grandes atos de rua no 8M, em todo o Mundo.
Dias 14 e 15 de março: eu estava em São Paulo, para evento político. Outro momento para pensar o que iríamos fazer e traçar cenários diante da crise internacional. Foram dias de muita preocupação, não consegui dormir, depois de escutar análise da conjuntura tão devastadora para a classe trabalhadora, em governo da morte que já estabelecia sua agenda de cortes de recursos da saúde e da educação. No retorno ao Ceará, já trazia comigo a preocupação de estar infectada. No caminho era uma sensação de desespero, ao ver pessoas correndo de um lado para o outro, sem saber o que era esta doença invisível e o que ela iria significar: medo do outro, do toque, medo de respirar, medo da morte. Nem tínhamos ideia do que era “isolamento” e o tempo que seria, o que iria significar para cada um e para a coletividade.
Dia 17 de março: nossas atividades nas universidades pararam. Foi um corte que sangrou, pois não tivemos tempos da despedida, de falar com o outro, de ver aquele que não foi pra aula naquele último dia, de pegar um livro na biblioteca (enquanto escrevo agora, estou chorando, pois agora dói mais ainda), se seria breve… se seria pra sempre para alguns…
Em seguida, recebi artigo intitulado Quarentena: porque você deveria ignorar toda a pressão para ser produtivo agora: Uma pesquisadora com experiência em ambientes adversos dá conselhos aos acadêmicos ansiosos com a quebra de rotina causada pelo coronavírus, escrito por Aisha S. Ahmad, professora-assistente de Ciências Políticas na Universidade de Toronto (Canadá), onde também dá cursos avançados sobre Segurança Internacional. No artigo, ela nos oferece humildemente um conselho! Compartilho com vocês, pois foi e está sendo fundamental para mim ao longo deste período. Disse ela: O que tenho observado entre meus colegas e amigos acadêmicos é uma resposta comum à contínua crise da COVID-19. Eles estão lutando bravamente para manter um senso de normalidade — correndo para cursos online, mantendo rigorosos cronogramas de escrita e criando escolinhas Montessori nas mesas de cozinha. A expectativa deles é apertar os cintos por um breve período, até que as coisas voltem ao normal. […] como alguém que tem experiência com diversas crises ao redor do mundo, o que vejo por trás dessa busca pela produtividade é uma suposição perigosa. A resposta para a pergunta que todo mundo está se fazendo — “Quando isso vai acabar?” — é simples, é óbvia, mas difícil de engolir. A resposta é nunca.
Em seguida, relata sua experiência em situações de guerra em que viveu e que obrigou a tomar decisões para se manter viva: Catástrofes globais mudam o mundo e esta pandemia é muito semelhante a uma grande guerra. Mesmo que a crise do coronavírus seja contida dentro de alguns meses, o legado dessa pandemia vai viver conosco por anos, talvez décadas. Isso vai mudar o modo como nos movemos, como construímos, como aprendemos e nos conectamos. […] O resto deste artigo é um conselho. […] trabalhei e vivi sob condições de guerra, conflitos violentos, pobreza e desastres em muitos lugares do mundo. Passei por racionamento de comida e surtos de doenças, bem como prolongados períodos de isolamento social, restrição de movimento e confinamento. Conduzi pesquisas premiadas sob condições físicas e psicológicas extremamente difíceis. […] Deixo aqui os seguintes pensamentos […] na esperança de que eles ajudem outros acadêmicos a se adaptar a essas condições duras. Pegue o que precisa e deixe o resto.
E nos propõe como caminhar: Primeiro Estágio: Segurança: Suas primeiras semanas numa crise são cruciais e você deveria ter um amplo espaço para fazer um ajuste mental. É perfeitamente normal e aceitável sentir-se mal ou perdido durante essa transição inicial. […] Saiba que você não está fracassando. Em vez disso, seu foco deve se voltar prioritariamente para sua segurança física e mental. Neste começo de crise, sua prioridade deveria ser a segurança da sua casa. Adquira itens essenciais para sua dispensa, limpe seu lar e faça um plano de coordenação com sua família. […] Monte uma estratégia para manter conexões sociais com um pequeno grupo de familiares, amigos e/ou vizinhos, mas mantenha o distanciamento físico de acordo com as orientações de saúde pública. Identifique os vulneráveis e garanta que eles estejam incluídos e protegidos.
Segundo Estágio: Modificação Mental: Estando seguro […] junto com seu time, você vai começar a se sentir mais estável e seu corpo e sua mente vão se adaptar, fazendo-o buscar desafios mais exigentes. Depois de um tempo, seu cérebro pode e vai reiniciar sob condições de crise […] você não deve tentar forçar sua modificação mental, especialmente se você nunca passou por um desastre. Mais do que nunca, precisamos abandonar o performativo e abraçar o autêntico. Modificar nossas essências mentais exige humildade e paciência. […] Essas transformações humanas vão ser sinceras, cruas, feias, esperançosas, frustrantes, lindas e divinas — e serão mais lentas do que os acadêmicos atarefados estão acostumados.
Terceiro Estágio: Abrace o Novo Normal: […] Do outro lado dessa mudança, seu cérebro maravilhoso, criativo e resiliente estará te esperando. […] Vão surgir ideias novas, que nunca lhe passariam pela cabeça se você tivesse ficado em negação.
Lembrança importante: Isso é uma maratona: se você disparar na largada, vai vomitar nos seus pés até o fim do mês. Neste momento, trabalhe para estabelecer sua serenidade, produtividade e bem-estar sob condições prolongadas de desastre. […] Nenhum de nós sabe quanto tempo essa crise vai durar. […] Essa incerteza nos enlouquece.
Sim, sairemos deste período, diz a autora: […] virá o dia em que a pandemia estará acabada. Vamos abraçar nossos vizinhos e amigos. Vamos retornar às nossas salas de aula e cantinhos do café. Nossas fronteiras voltarão a se abrir para o livre movimento. Nossas economias, um dia, estarão recuperadas das recessões por vir.
Li o artigo dia 20.03, fiquei impactada; fiz outra leitura e enviei para amigos. Li para alunos e orientandos para ajudá-los a entender o que estava por vir. Assim, comecei minha jornada, criando espaços de diálogo com a família, ajudando as mães a colocarem o assunto para as crianças e de como mantê-las no isolamento e saber um pouco o que estava acontecendo. Tive, inicialmente, momentos de muito medo. Depois, veio o sentimento de partilha e escuta. Como mais velha, mais experiente, com tempo de estudo e trabalho e, em especial, de militância nos movimentos sociais, precisava transformar este medo em resistência. Busquei meus pares e formamos grupos para saber como estava cada uma/um. Discutimos o que estava acontecendo e vimos o que era urgente fazer e o que poderia ficar para médio e longo prazo.
Nossas lutas são todas urgentes: mulheres em situação de violência; mulheres encarceradas; mulheres que morrem todo dia; alunos sem a merenda e o restaurante universitário; militantes sindicais com suas bases sendo demitidas. Além disso, um governo federal inimigo da população pobre do Brasil. Arregaçamos as mangas e fomos pra luta. Formamos comitês contra a fome, ocupamos ativamente as redes sociais com informações e conhecimento sobre os acontecimentos. Tivemos que visitar alguns companheiros em sofrimento psíquico: o contato virtual não foi suficiente! Fizemos Atos virtuais e escrevemos todos os dias. Mantive, na medida do possível, as orientações, defesas e aulas.
Diante de todo este esforço, tivemos perdas irreparáveis. A morte do menino João Pedro e do pequeno Miguel. A morte da empregada doméstica, como a primeira por COVID 19. No mundo, a morte do George Floyd foi incêndio em nossas almas! Estes acontecimentos trouxeram à tona situações como: quem tem lugar de isolamento? Quem não tem o que comer? Como ter aulas sem as condições mínimas? Quem tem direito a um respirador? Estamos discutindo estas questões, mais fortalecidos para cobrar estas respostas, pois estamos juntos. Conseguimos, aos poucos, encontrar um espaço de encontro e de luta, um espaço de Coalizão! E, mais do que nunca, estamos conseguindo entender que esta situação escancara o racismo estrutural no Brasil e no mundo. E que agora teremos que derrubá-lo, destruí-lo, mesmo isolad@s! Assim como Aisha S. Ahmad, vamos avançar, pois do […] outro lado desta jornada de aceitação estão a esperança e a resiliência. […] Faremos projetos que nem podemos imaginar hoje e vamos inspirar estudantes que ainda estamos para conhecer. […] Não importa o que vier depois: juntos, estaremos preparad@s e fortalecid@s.
*Zuleide Fernandes de Queiroz é Professora da URCA, Militante do MNU/CE e da Frente de Mulheres do Cariri.
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