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Sobre a militância (22): Sobre a fadiga da quarentena

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Parece que uma parcela da esquerda, lendo o que se escreve nas redes sociais, endoidou. Surgem discussões surreais. Ficar em casa seria pelegar. Ir para rua seria revolucionário. Tudo ou nada. Infelizmente, parece incontornável que uma parcela da esquerda aderiu, em alguma medida, às extravagantes ideias negacionistas sobre a epidemia.

Não creio que haja muitas dúvidas que as mobilizações contra o bolsonarismo nas ruas foram justas. É evidente que foi e permanece correto, quando não se pertence aos grupos de máximo risco, aderir aos Atos tomando todos os cuidados de autoproteção. A partir de uma certa escala é impossível garantir a preservação de um mínimo distanciamento social. São Atos pelo critério de representação, dos quais devem ser poupados todos os idosos, os portadores de doenças crônicas, e aqueles que estão em contato direto com eles. Ou seja, uma maioria da nossa base social.

Defender o contrário não é só uma irresponsabilidade sanitária, é uma estupidez política. Que autoridade teríamos para denunciar a desfaçatez genocida do governo Bolsonaro, se a própria esquerda tomasse a iniciativa de promover Atos com dezenas de milhares de pessoas?

Portanto, não é correto concluir que já estão reunidas as condições para que a esquerda e os movimentos populares possam disputar as ruas. Estamos em pleno auge da pandemia. O risco de contágio é imenso. Enquanto não houver vacina todos os que saírem às ruas estão se expondo, e devemos ser claros em explicar o perigo.

Alguns entre nós temos o privilégio de poder ficar em casa, embora estando sobre a pressão do trabalho remoto. Ninguém deveria estar constrangido por isso. Trata-se de um privilégio porque embora estejamos ainda, em quase todas as grandes cidades do país em uma fase de expansão acelerada da pandemia, uma maioria do povo já se viu obrigado a ter que ir trabalhar. Não têm escolha, estão desamparados.

Mas ninguém “amarelou” porque está refugiado em quarentena na sua própria casa.

O direito de ficar em casa e nos protegermos do perigo de contágio é o mesmo que a defesa do direito à vida. Esse direito é irredutível. Quem fantasia para si mesmo que é mais revolucionário porque, podendo ficar em casa se expõe, se engana.

Não há militância socialista sem a disposição de correr riscos. Mas os riscos devem ser sempre muito bem calculados. Correr riscos desnecessários não é uma atitude revolucionária, é, simplesmente, uma tolice infantil.

Pode ser que esteja pesando muito a fadiga da quarentena. É razoável que depois de mais de quatro meses estejamos todos diante de um previsível cansaço das rotinas de confinamento. Ela exige um grau de autodisciplina muito elevado. Mas a autodisciplina é uma qualidade importantíssima, e é um bom momento para cultivá-la. Fazer as atividades domésticas de faxina e alimentação, cuidar de si mesmo e dos outros, equilibrar o tempo de trabalho com o descanso, fazer exercícios, reservar espaço para o lazer, enfim, manter rotinas saudáveis.

O tema de quem está à esquerda de quem é, também, recorrente. O que é ser de esquerda, embora polêmico, merece atenção. A coerência é um valor na militância, mas parece haver muita confusão sobre qual é a régua que usamos para medir a coerência uns dos outros. Há parâmetros objetivos.

Na tradição socialista sempre existiu um respeito pelo espaço da vida privada e pessoal, distinto da dimensão pública da vida. A militância é o espaço da vida pública. A vida pessoal de cada um não deve estar no escrutínio e muito menos controle dos outros. Devemos respeitar que somos, felizmente, muito diferentes uns dos outros.

Alguns entre nós priorizam a poupança e outros não. Alguns entre nós priorizam o consumo de livros e outros não. Alguns de nós adoram ir ao futebol, ou a concertos, ou viajar para a praia, ou organizar festas, e outros não. Claro que deve existir uma coerência entre a vida privada e pública. Não se pode ser socialista na vida pública e um grandessíssimo sacana na vida privada. Não deve haver lugar nas nossas fileiras para cafajestes, canalhas, e vagabundos.

Mas ser socialista não é o mesmo que fazer um voto de pobreza. Os socialistas não defendem que todos vivam como os pobres. Essa é a acusação mais torpe que os reacionários fazem contra o socialismo. Ser socialista é ser contra o envenenamento mental que associa a busca da felicidade ao consumismo. Mas a triste realidade é que o que prevalece no Brasil ainda é o subconsumo popular.

As amplas massas do nosso povo não têm acesso a um mínimo de condições materiais e culturais para uma existência digna. Dezenas de milhões sequer têm acesso ao esgoto sanitário, senão à água tratada. Isso não obriga ninguém que vive no Brasil, e é socialista e tem condições de se proteger, a deixar de procurar uma casa digna para morar. A nivelação do consumo não é o programa do socialismo.

Ser socialista é manter viva a rebeldia contra a injustiça e tirania no mundo, é a adesão ao movimento social da luta dos trabalhadores e oprimidos, é se organizar, politicamente, para derrotar o capitalismo, e é um compromisso internacionalista.

Pessoas com as mais distintas origens de classe e modos de vida têm o seu lugar nas fileiras da luta pelo socialismo. Ninguém deve ser julgado menos socialista pela casa em que mora, pelas roupas que veste ou pela dieta de sua preferência. Ninguém é mais ou menos socialista em função de seus hábitos pessoais, porque eles remetem à dimensão de sua vida privada.

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Série militância