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A Petrobras e o andar de cima: o avanço da agenda privatista em plena pandemia

Roberto Castello Branco (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, fala sobre os resultados da empresa durante o ano de 2018.

Andar de cima

Acompanhamento sistemático da ação organizativa, política, social e ideológica das classes dominantes no Brasil, a partir de uma leitura marxista e gramsciana realizada no GTO, sob coordenação de Virgínia Fontes. Coluna organizada por Rejane Hoeveler.

Por Julio Carvalho*

Assim como Ricardo Salles na pasta do Meio Ambiente, Paulo Guedes, na Economia, vê a pandemia do novo coronavírus como a oportunidade para “passar a boiada” nas privatizações. Da mesma forma que a Eletrobrás, Telebrás, Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), Casa da Moeda e tantas outras, o sistema Petrobras está em um processo sistemático e gradativo de esfacelamento.

Apenas no período da pandemia, o governo lançou 10 de seus ativos para a liquidação. Após a parca demanda relacionada ao leilão da 6ª rodada do pré-sal, a gestão atual tem concentrado esforços para submeter à venda as subsidiárias da companhia, despedaçando a empresa “pelas beiras”. Contando com incentivo do STF e manobras legais, o avanço do capital frente às subsidiárias desta que é uma das maiores empresas do país, está imerso em um processo que envolve grupos econômicos gigantescos, de origem nativa e estrangeira. Vamos elencar algumas das especificidades desta triste saga.

A Petrobras comida pelas beiradas

O atual ministro da economia, Paulo Guedes, não foi o único membro do governo a ter formação em Chicago. Seu indicado para a presidência da Petrobras divide essa chancela formativa. Com pós-doutorado na Universidade de Chicago, Roberto Castello Branco assumiu o comando da companhia após longa carreira no setor privado. Da presidência executiva do Ibmec à chefia econômica da Vale S.A., Castello Branco se aproximou da Petrobras já no governo Dilma, em 2015, quando passou a integrar seu conselho administrativo. Adepto ao ideário ultraliberal, o economista, que assumiu a presidência da estatal já em janeiro de 2019, é a favor da privatização não apenas da Petrobras, mas de outras empresas federais.

Além da chegada do governo Bolsonaro ao poder, talvez um dos episódios que mais contribuiu para o esfacelamento da Petrobras em 2019 tenha sido a decisão do STF sobre a venda de subsidiárias públicas. Em junho daquele ano, o Supremo, já sob presidência de Dias Toffoli, decidiu que a privatização das empresas subordinadas às estatais não mais precisava de aval do Congresso para sua consolidação. Embora não abrangesse as empresas-mãe, sendo ainda preciso o crivo do Legislativo para a venda destas, a decisão abriu as alas para os grupos privados abocanhar parcelas expressivas do bem público, favorecendo, sobretudo, o capital estrangeiro. 

Roberto Castello Branco fez questão de acompanhar o julgamento e comemorou a decisão, declamando que “foi um dia muito feliz – uma grande vitória para o Brasil”. A deliberação também foi comemorada pelo então ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), André Mendonça: “Houve o reconhecimento de que há muitas empresas estatais sem necessidade. Não se justifica uma empresa como a Petrobras ter mais de uma centena de subsidiárias. Precisa haver um desinvestimento dessas empresas para que as matrizes foquem naquilo que dá lucro e resultado”, disse o ministro.

Essa desabilitação do Congresso acirrou a expropriação das subsidiárias da Petrobras. No mesmo mês da decisão do STF, o ministro Edson Fachin revogou sua própria liminar que proibia a venda da Transportadora Associada de Gás (TAG). O ministro do Supremo havia entravado a venda da transportadora realçando que, na ocasião, havia necessidade de instituir processo licitatório, algo que também passou a ser desnecessário após a decisão de Toffoli. Com essa resolução, a Petrobras concluiu a privatização desta subsidiária em 14 de junho de 2019.

A TAG era uma subsidiária da Petrobras do ramo de transporte e armazenagem de gás natural. Ao contrário da retórica rotineira dos adeptos à privatização, a Transportadora tinha capacidade financeira e produtiva extremamente positiva. No momento de sua venda, a companhia possuía uma rede de gasodutos de 4,5 mil quilômetros e capacidade de movimentação de 74 milhões de metros cúbicos por dia. Isso sem citar sua alta rentabilidade, tendo fechado 2017 com lucro líquido de R$ 2,3 bilhões, e 2018 com R$ 2,4 bilhões.

A privatização se deu em benefício da ENGIE Brasil Energia, controlada pelo grupo franco-belga Engie, e pelo fundo canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec (CDPQ). O fechamento da transação consistiu na venda de 90% da participação da Petrobras no negócio, pela bagatela de R$ 33,5 bilhões, sendo aproximadamente R$ 2 bilhões destinados à liquidação da dívida da TAG com o BNDES. Os 10% de participação restantes da Petrobras na transportadora entraram em processo de venda em janeiro de 2020.

Além dessa forma de aprofundamento das privatizações, a atual gestão da Petrobras se aproveitou da decisão do STF em relação à venda das subsidiárias públicas para aprofundar esse processo de modo escuso e torpe. Como denunciou o próprio presidente do Senado, Davi Alcolumbre, insuspeito de esquerdismo, o Governo Federal está fazendo manobras (encurtador.com.br/esENS), de modo a fatiar a ‘empresa-mãe’ do sistema Petrobrás em ativos e transformando-os em subsidiárias com o evidente intuito de vendê-las posteriormente.  

No final de julho de 2019, foi a vez da perda da maior distribuidora de combustíveis do Brasil. A privatização da BR Distribuidora consistiu na oferta de 30% das ações da Petrobras na subsidiária, fazendo sua participação no capital social cair de 71,25% para 37,5%, o que também implicou na perda do controle da distribuidora por parte da estatal. Com a operação, a Petrobras desapossou 400 milhões de ações, que resultou em um rendimento de meros R$ 9,6 bilhões. No mesmo ano, a companhia também recuou em sua atuação internacional, concluindo a venda da refinaria de Pasadena, no Texas, para a Chevron, assim como suas operações no Paraguai, em benefício da empresa paraguaia Copetrol.

 A venda dessas companhias está atrelada a um plano mais amplo de desestatização. A justificativa central é reduzir seu endividamento e concentrar esforços nas atividades relacionadas à exploração e produção de petróleo, sobretudo àquelas atreladas ao pré-sal. Nesse bojo, o diretor financeiro da BR Distribuidora, André Natal, realçou que um dos objetivos pós-privatização é a redução dos custos operacionais da companhia, tendo o corte de pessoal como uma das metas. Como de praxe em matéria de efetivação do projeto ultraliberal, os trabalhadores são os primeiros e os principais atingidos.

Como bem expôs o petroleiro Rafael Queiroz, em texto publicado neste portal, mesmo com o desgaste sofrido pós-Operação Lava Jato, afirmar que a Petrobras teria debilidades financeiras fundamentais é uma grande falácia. Ele realça que, diferentemente de outras grandes petrolíferas internacionais, como a Chevron e a Exxon, pelo menos até 2019 a Petrobras manteve relativamente estável sua Geração Operacional de Caixa. Isto ocorreu até mesmo em 2015, quando houve queda expressiva no preço internacional do petróleo, que chegou próximo a US$ 35. Contudo, com o esfacelamento gradativo do sistema Petrobras, a tendência em longo prazo é que haja não apenas uma diminuição da capacidade de rendimento da companhia, mas um ônus direto à maior parte da população brasileira, decorrente da expressiva elevação dos preços dos derivados, como a gasolina e o gás de cozinha (GLP).

A falácia do prejuízo da Petrobrás e o golpe do “impairment”

O balanço do primeiro trimestre de 2020 da Petrobras, publicado em maio, consiste em um elemento relevante para compreender as distintas formas que a estratégia privatista do atual governo vem adquirindo. A síntese do balanço expôs um aparente paradoxo. A Petrobras apresentou R$ 48,5 bilhões de prejuízo líquido (encurtador.com.br/nxNT2), o maior de sua história (quando comparado ao mesmo período de 2019, a companhia registrou lucro líquido de R$ 4 bilhões). Por outro lado, houve um aumento no caixa da empresa, tendo um crescimento de 36% de seu lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda ajustado), que fechou em R$ 37,5 bilhões. Além disso, houve aumento de 7% de sua receita total de vendas, alcançando R$ 75,5 bilhões no trimestre em questão.

A principal causa para a queda abrupta do lucro líquido da Petrobras se encontra em um mecanismo contábil chamado teste de impairment. Essa ferramenta consiste nas perdas da recuperabilidade econômica dos ativos da empresa. Em outras palavras, trata-se de uma espécie de revisão de ativos, traduzindo-se em uma despesa contábil da empresa em relação à projeção da desvalorização de seu ativo nos mercados futuros. Caso o valor contábil do ativo seja maior do que o valor projetado a ser recuperado, a empresa tem de reconhecer sua perda e efetuar o ajuste, o que acarretará em um débito em despesa com impairment

No caso da Petrobras, houve o acatamento, por parte de sua gestão, de uma perspectiva que projetou uma queda no preço do barril de petróleo de longo prazo, passando de cerca de US$ 65 no início de 2020 para US$ 50 em 2025. Essa projeção implicou em uma baixa contábil de R$ 65,3 bilhões, sendo esta a principal responsável pela despesa recorde da estatal no primeiro trimestre de 2020, como já mencionado.

O teste de impairment tem um caráter técnico, sendo uma exigência presente nas Normas Contábeis Brasileiras. Uma das consequências de um alto índice de impairment é o relaxamento no pagamento de impostos ou até mesmo uma redução do pagamento de juros e dividendos. Entretanto, esse dispositivo também tem fortes componentes políticos, como a decisão da data de sua realização, bem como a avaliação da dimensão da desvalorização do ativo nos mercados futuros, que tem margens expressivas de subjetividade.

Como destaca o economista Eduardo Costa Pinto, há uma profunda incoerência, para dizer o mínimo, em realizar um volume tão grande de impairment no primeiro trimestre, projetando o preço do petróleo em US$ 50 para 2025 em um cenário pandêmico e de profunda instabilidade internacional. Isto porque esses preços não dependem apenas da oferta e da demanda, mas de questões complexas relacionadas à geopolítica. A insensatez dessa lógica pode ser percebida na comparação do índice de impairment realizado pela Petrobras comparado a outras grandes petrolíferas no primeiro trimestre: ExxonMobil, 1,14%; Sinopec chinesa, 1,04%; British Petroleum, 0,87%, Shell, 0,31%; Petrobras, 10,17%.

Além da dimensão do índice de impairment, é pertinente realçar a escolha deliberada da atual gestão de Roberto Castello Branco em fazê-lo logo no início do ano. Em meio à crise sistêmica do capitalismo, aprofundada pela pandemia, é praticamente impossível projetar o preço do petróleo para o próximo mês, quanto menos para daqui cinco anos. Pela legislação brasileira, esse teste pode ser efetuado até o final do exercício social da empresa. Ou seja, no caso da Petrobras, este prazo coincide com o ano civil, logo, o teste poderia ser feito até o dia 31 de dezembro. 

Manobras contábeis

Essa sangria da Petrobras ocasionada, principalmente, pela projeção e escolha do momento do teste de impairment não está atrelada a um mero “equívoco” contábil, entre muitas aspas.

Concordando com as hipóteses feitas por estudiosos do tema, como Rafael R. da Costa e Eduardo C. Pinto, essa elevação do prejuízo contábil da Petrobras está atrelada a dois conjuntos de fatores. O primeiro deles é que o resultado catastrófico das contas da Petrobras serve para justificar a retórica do governo atual, que endossa a “necessidade vital” de desinvestimentos, sendo a venda da Petrobras fundamental nesse sentido. Sobre este ponto, é pertinente ressaltar um dos segmentos que mais contribuiu para elevar a lucratividade da Petrobras no primeiro trimestre: a exportação de óleo bunker, um combustível para navios. 

A estatal foi favorecida por uma deliberação da Organização Marítima Internacional (IMO) de janeiro de 2020, que exigiu a diminuição do teor de enxofre concentrado no óleo bunker de 3,5% para 0,5%. A Petrobras teve imensa vantagem frente aos seus concorrentes internacionais, já que o petróleo local possui naturalmente baixo teor de enxofre. Esse combustível bunker é produzido por todas as refinarias da Petrobras e são justamente elas que estão no gatilho da privatização, como será exposto a seguir.

O segundo fator explicativo para elevação deliberada do prejuízo contábil da Petrobras diz respeito a perda de direitos trabalhistas. O suposto resultado negativo da estatal passou a ser um potencial argumento para justificar cortes salariais nos “planos de contingência” atrelados à pandemia, bem como reduzir custos de pessoal via políticas de demissões voluntárias e congelamento dos salários. 

No que tange aos desinvestimentos, nem mesmo a crise ocasionada pelo Covid-19 foi capaz de desacelerar o avanço da privatização de parte expressiva do sistema Petrobras. Ao contrário, como afirmamos acima, a pandemia gerou a “oportunidade” de ouro para o entreguismo de Guedes, Castello Branco e o nosso “andar de cima”: só no período da pandemia, até o momento, a estatal lançou para liquidação dez de seus ativos, sendo que um desses processos já foi finalizado.

O interesse do capital brasileiro (e dos amigos do Rei) na privatização

Voltando à questão das subsidiárias, a gestão de Castello Branco está dando seguimento ao processo de venda de oito refinarias da Petrobras. No início de julho, a estatal anunciou três empresas interessadas em comprar os ativos atrelados à primeira refinaria do Brasil, a Landulpho Alves. Essa nova fase de entrega do patrimônio brasileiro para o capital estrangeiro pode beneficiar a Mudabala, companhia dos Emirados Árabes, a indiana Essar e a chinesa Sinopec.

Ainda em andamento encontra-se também a venda de 100% da participação da Petrobras na Gaspetro, distribuidora de gás natural presente em 19 estados do país. Colocada à liquidação em fevereiro, a Petrobras afirmou, no dia 15 de julho deste ano, que já há companhias classificadas para a fase vinculante de sua venda, com destaque para a Cosan, o Grupo Ultrapar, a Naturgy (controlada pela Ceg Rio e pela Ceg), e a Mitsui, de origem japonesa.

Aqui, cabe levantar dois adendos ao processo de venda da Gaspetro. O primeiro deles consiste no fato de haver, na lista de empresas interessadas, dois grupos com participação expressiva do capital local (Cosan e Grupo Ultrapar). Isso realça que a agenda privatista do governo Bolsonaro não atende tão somente o capital de origem estrangeira, apesar de este ter tido precedência sobre os capitais locais na maioria das negociações. 

Embora careça de investigações mais detalhadas, o segundo adendo consiste na perspectiva de que há uma grande tendência da Cosan ser favorecida nesse processo. Isto porque seu acionista majoritário, Rubens Ometto, foi e continua sendo um dos mais ardilosos asseclas de Bolsonaro, tendo feito, inclusive, campanha para a privatização dos negócios da Petrobras. Além disso, a Comgás, subsidiária da Cosan atuante no ramo de distribuição de gás, já foi agraciada por uma Portaria do Ministério de Minas e Energia, de julho de 2019, que aprovou como prioritário o investimento da companhia de Ometto na expansão de serviços de gás canalizado, concedendo incentivos fiscais à empresa paulista.

Em um cenário pandêmico e de crise sistêmica do capital, no qual se somam mais de 80 mil mortes oficiais pelo Covid-19, quase 13 milhões de desempregados e outros 38 milhões de trabalhadores na informalidade, o andar de cima parece se satisfazer com a barbárie. Os mega empresários, suas entidades organizativas e devidas representações no Estado restrito estão a léguas de distância de mobilizar as empresas estatais para instituírem estratégias factuais de reversão desse quadro crítico. À custa da perda de soberania nacional, da morte e constante expropriação da classe trabalhadora, seguem reproduzindo a máxima de Jorge Paulo Lemann: “toda crise é cheia de oportunidades”.

*Mestre em Ciências Sociais (UFRRJ), doutorando em História (UFF), membro do Grupo de Trabalho e Orientação (GTO) e do Núcleo de Pesquisa sobre Capitalismo, Poder e Lutas Sociais (NECAP-UFRRJ).

 

NOTAS

1 – Para uma apresentação do pensamento ultraliberal, ver o texto de João Miranda, publicado aqui no portal: https://esquerdaonline.com.br/2020/07/14/brevissima-genealogia-do-pensamento-ultraliberal/

2 – Geração de Caixa Operacional seria uma espécie de resultado financeiro que expressa os recursos que sobram da empresa após o abatimento de todos os custos e despesas. Tais recursos podem ser utilizados para reduzir endividamento da empresa, fazer novos investimentos ou distribuir dividendos aos acionistas.

3 – Para mais detalhes sobre o teste de impairment, ver:

 https://www.treasy.com.br/blog/teste-de-impairment/.

4 –  São as seguintes: Refinaria Abreu e Lima (RNEST); Refinaria Presidente Getúlio Vargas (REPAR); Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP); Refinaria Landulpho Alves (RLAM); Refinaria Gabriel Passos (REGAP); Refinaria Isaac Sabbá (REMAN); Lubrificantes e Derivados de Petróleo do Nordeste (LUBNOR); Unidade de Industrialização do Xisto.

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