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BRASIL

Lutar não é crime, lutar é direito: arquivado processo contra profissionais de saúde no Rio de Janeiro

Aline Caldeira Lopes, Fernanda Vieira, Isabela Blanco, Gabriel Ferreira e Rafael Borges, do Rio de Janeiro

Vigília na Delegacia Policial, após a prisão

No dia 23 de maio, um grupo de profissionais de saúde realizou um ato no Rio de Janeiro. Na ocasião, abriram uma faixa de cerca de dez metros de comprimento, em solidariedade às famílias das pessoas mortas pela Covid-19, manifestando-se, também, contra a falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) nos hospitais do estado.

A atividade, que não foi amplamente divulgada pelo quadro de pandemia atual, contou com apenas oito pessoas, na praça do pedágio da Linha Amarela. No local, todas as pessoas estavam utilizando máscaras sobre a boca e o nariz e mantiveram o distanciamento social, de acordo com as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Porém, estarrecedoramente, os manifestantes foram abordados pela polícia militar e conduzidos à 26° DP. Na delegacia, foi lavrado boletim de ocorrência e foram enquadrados dois profissionais que compunham o grupo, o médico Carlos Alberto e a agente de endemias Lúcia Pádua, no artigo 268 do código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa(…)”, alegando descumprimento do Decreto Estadual local que proibia aglomeração.

É de conhecimento público o quadro de insegurança a que estão submetidos os profissionais de saúde do estado do Rio de Janeiro. De acordo com o Conselho Federal de Enfermagem, somos o estado com o maior número de mortes de enfermeiros em meio à pandemia por Coronavírus do país. (1)

Ainda que a situação do Rio de Janeiro demonstre contornos dramáticos, ela não é exclusiva, de modo que por todo o país ocorreram protestos legítimos de profissionais de saúde em uma tentativa de sensibilizar o poder público para a importância de proteger aqueles que estão de frente no combate à pandemia, sob o risco de grave prejuízo à saúde e à vida de toda a população que depende do trabalho destes profissionais.

Tipificação do artigo 268

O art. 268 do Código Penal trata-se de um tipo penal que depende de complementação para sua exata definição (chamado, pela doutrina, de norma penal em branco). Ou seja, a caracterização do crime descrito pelo artigo 268 do Código Penal é dependente de um ato normativo que complemente a normativa “determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. (2)

Porém, o ato normativo complementar que estabelecerá a conduta incriminadora não pode ficar a cargo de todos os entes federativos brasileiros, sob pena de insegurança jurídica e inconstitucionalidade, e necessita de definição por meio de ato normativo de abrangência nacional.

A Constituição Federal consagra “privativamente à União” a competência para legislar sobre direito penal (art. 22, I), não estando autorizados os demais entes federativos (estados e municípios) a complementar um ato normativo próprio do poder federal que implique em reflexos na legislação penal.

No caso do ocorrido, o decreto referido no enquadramento era estadual e não nacional. Além disso, ainda, os participantes exerciam seu direito de manifestação seguindo recomendações sanitárias. Portanto, o artigo 268 não poderia ter sido tipificado nesse caso.

Arquivamento do processo

No dia 27 (terça-feira), os advogados que atuaram no caso, representando a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, após despacho de esclarecimento com o Ministério Público, tiveram notícia do arquivamento definitivo do processo, o que caracteriza uma importante vitória. Conforme restou demonstrado, os fatos se limitaram ao exercício legítimo do direito constitucional de manifestação em defesa da saúde pública.


Aline Caldeira Lopes é advogada, Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-RJ) e Membro da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB-RJ. 

Fernanda Vieira é advogada da Rede nacional de advogados populares (RENAP/RJ),  professora da UFRJ e Membro da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB-RJ. 

Isabela Blanco é advogada, Mestre em Direitos Humanos (FND-UFRJ), Membro da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB-RJ e colunista do Portal Esquerda Online.

Gabriel Ferreira é advogado, assessor parlamentar, Mestrando em Teoria do Direito (Uerj) e Membro da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB-RJ. 

Rafael Borges é advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-RJ e Conselheiro Seccional.

NOTAS

1 – https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/15/com-acoes-judiciais-hospitais-do-rj-tem-mais-mortes-de-enfermeiros-no-pais.htm

2 – https://www.migalhas.com.br/depeso/325510/o-crime-de-infracao-de-medida-sanitaria-preventiva acessado em 29 de junho de 2020.