Na noite de 26 de julho de 2020, o Rio Branco Football Club anunciou a contratação do goleiro Bruno de Souza, condenado em primeira instância por sequestrar e assassinar brutalmente Eliza Samudio em 2010. Bruno nunca assumiu a autoria do crime e o corpo de Eliza nunca foi encontrado. As Mulheres Acreanas de Esquerda não receberam a notícia de forma passiva e demarcaram no debate público a indignação com o que representa para o Acre, estado que por dois anos consecutivos apresenta o maior índice de feminicídio no Brasil, possuir em posição de destaque e prestígio o autor de uma violência tão cruel e, infelizmente, tão comum nas sociedades patriarcalmente organizadas, marcadas por desigualdades materiais entre mulheres e homens, que se expressam na responsabilização daquelas pelos trabalhos domésticos e cuidados das crianças, idosos e doentes; na discrepância de participação na política institucional, nas diferenças salariais e postos no mundo do trabalho, bem como nas violências interpessoais e institucionais que o Estado tem se demonstrado incapaz em oferecer respostas adequadas, especialmente no que tange à sua prevenção e em se tratando das mulheres não brancas.
Os ataques ao firme posicionamento feminista já eram esperados e não tardaram a chegar, dentre eles o de que as mulheres organizadas pelo fim da violência de gênero se colocam contra a ressocialização dos egressos do sistema penitenciário ao denunciar o fino compromisso com a misoginia que a contratação de Bruno como goleiro estampa.
Esse debate não é novo e é bem recorrente entre os pesquisadores e ativistas da Criminologia Crítica e do Abolicionismo Penal. Desde que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) adentrou no ordenamento jurídico brasileiro, as feministas têm sido acusadas de interferirem negativamente na lógica do sistema de justiça criminal. Afirmou-se que a lei desequilibrava a persecução penal e geraria mais encarceramento em um dos países com maior população carcerária no mundo. 13 anos depois, vamos aos números: Em 2019, o número de presos no Brasil era de 773.151, sendo a maioria (39,4%) enquadrada pela Lei de Drogas (11.343/2006). Apenas 11,31% das pessoas presas cometeram crimes contra a pessoa, como homicídio, lesão corporal grave, ameaça, instigação ao suicídio etc. Assim, estima-se que os presos relacionados à violência doméstica ou por feminicídio é ainda menor, representando parcelas ínfimas da volumosa população carcerária.
Desde a entrada em vigor da Lei de drogas no Brasil – o que se deu no mesmo ano da entrada em vigor da Lei Maria da Penha – a população carcerária aumentou em torno de 8 vezes seu número até 2015, sendo que o aumento da população carcerária feminina foi de 628%, 62% das quais estão presas por condutas tipificadas justamente na lei de drogas. A principal crítica à essa lei tem sido a falta de critérios objetivos para diferenciar as condutas entre traficantes, apenados com aprisionamento, e usuários, a quem são destinadas penas mais brandas, deixando à subjetividade dos agentes do sistema de justiça essa seleção. Em um país erigido por mais de 300 anos de escravização do povo negro e que não passou por políticas profundas de reparação após o fim da escravatura, as prisões estampam rostos de uma juventude negra e pobre que frequentemente tem sido encarcerada portando quantidades insignificantes de substâncias ilegais, enquanto o tráfico internacional de drogas segue a todo vapor.
O encarceramento em massa é um problema no Brasil e nós, feministas, o tomamos como nosso, especialmente porque são as mulheres que enfrentam longas filas nos órgãos públicos para assegurar o direito de defesa de seus parentes e ainda para visita-los nas prisões, ocasiões em que são submetidas a revistas íntimas vexatórias e violentas. A chamada ressocialização de egressos do sistema – uma contradição em termos, uma vez que não há crime fora das relações sociais – também é uma questão que precisa ser urgentemente enfrentada com seriedade por meio de políticas públicas que envolvam em um amplo diálogo sociedade civil e Estado. E não somos nós feministas que nos colocamos como entrave a esse desenvolvimento. Temos muito interesse em que a população negra e pobre a quem tem sido historicamente negado os direitos mais básicos e vem sendo sistematicamente aprisionada, receba toda a dignidade e direitos que são devidos durante a permanência no cárcere e após a sua soltura. Inclusive muitas de nós estamos travando esses debates e enfrentamentos nas universidades, no Estado, nos movimentos sociais e nas organizações políticas.
Bruno, como ex-jogador de futebol de um time grande como o Flamengo, não é um egresso comum do sistema prisional, conseguiu que seu Habeas Corpus alcançasse o STF garantindo seu direito a esperar a conclusão de seu julgamento em liberdade, enquanto mais de 40% da população carcerária segue presa sem condenação. Acreditamos que Bruno pode e deve trabalhar e ter convívio social enquanto estiver em liberdade, inclusive para honrar com as obrigações alimentícias que deve ao seu filho com Eliza. No entanto, questionamos a posição oferecida pelo Rio Branco Football Club. Bruno é jovem, tem saúde e pode exercer e desenvolver outras ocupações mesmo no universo desportivo, mas que não detenham a visibilidade e importância que os jogadores de futebol possuem no Brasil, inclusive na projeção internacional do país, consistindo em ídolos e modelos para crianças, jovens e toda a sociedade. O documento elaborado pela ONU Mulheres “Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (feminicídios)” que vem sendo implementado em vários estados do Brasil, aduz que o Estado e a sociedade devem garantir o direito à memória das vítimas. Entendemos que o retorno de Bruno à tal posição de destaque, ainda mais envolto a tanta comemoração, viola diretamente a memória de Eliza Samudio e seus familiares e reafirma os compromissos patriarcais da sociedade brasileira.
Defendemos segunda chance a quem comete crimes, mas certamente não defendemos que feminicidas sejam celebrados, como ocorreu logo após a saída de Bruno da prisão, recebido com selfies, pedidos de autógrafos e comentários de apoio na Internet. Definitivamente essa não é a recepção que a maioria dos egressos possui, muito embora não tenham cometido crimes graves contra pessoas. Em uma sociedade que elege políticos que defendem que “bandido bom é bandido morto”, questionamos as políticas de ressocialização serem tão intensamente defendidas justamente nos casos de violência contra mulheres, tratando-se da mesma sociedade que defende que “mulher apanha porque gosta” e que “mulher de roupa curta na balada é estuprada porque mereceu”.
Diante dessa realidade discrepante, nos perguntamos a quem interessa a insistência em colocar problemas estruturais na conta das mulheres organizadas na luta pelo fim da violência de gênero? Por que caímos tão facilmente nessas armadilhas patriarcais de refletir sobre a realidade? Por que é tão fácil responsabilizar as feministas pela negação de direitos que o Estado sistematicamente impõe à toda a sociedade? É oportuno lembrar que a Lei Maria da Penha não nos foi presenteada, mas fruto de lutas que levaram o Estado Brasileiro à condenação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos por sua conivência com a violência contra as mulheres. Como Maria da Penha diz, ela sobreviveu, e pode contar sua história. Eliza Samudio não pôde, assim como muitas não puderam. Mas nós que aqui estamos não seremos silenciadas e seguiremos defendendo sua memória e o nosso direito à vida.
PETIÇÃO ONLINE: Diga não à contratação do feminicida goleiro Bruno pelo Rio Branco Football Club
* Professora de Direito na UFAC.
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